"Teremun significa amado por seu pai."
Era o que minha mãe me dizia. Sangue seco e encrostado no canto dos lábios, que sorriam levemente. As mãos calosas passavam pelos meus cabelos, me balançando enquanto eu fitava a porta trancada por fora, esperando pela hora em que ele voltaria.
Desde cedo eu havia aprendido a diferenciar os passos dele no corredor.
Desde cedo eu aprendera a ficar silencioso como um rato, a nunca o fitar nos olhos. Nunca responder, nunca me meter entre eles, fingir que não existia.
Essas eram as regras. Eu as cumpria, na maior parte das vezes.
Ás vezes, meu corpo se movia entre eles, quando todo o chão parecia manchado do sangue da minha mãe.
"Amado por seu pai." Minha mãe repetiu, a voz ausente.
Quando eu o fitava nos olhos enquanto ele sangrava a nós dois, eu não via isso.
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Eu nasci em Alexandria, onde a mistura entre oriente e ocidente sempre foi visível. Palco histórico de grandes escolas, a segunda maior cidade do Egito.
Minha mãe teve as contrações na calada da noite, com meu pai em viagem. Sozinha ela realizou o parto, como todas as mulheres do deserto antes dela.
Minha mãe dizia que meu primeiro suspiro me falhou, e eu vim ao mundo com lábios azulados e em completo silêncio. E assim eu permaneci por minutos, sem provar a vida, enquanto ela pedia um milagre, e prometia me entregar à seu deus se eu tivesse alguma chance de viver.
Ela dizia, com um sorriso gentil, que de forma repentina eu abri os olhos, como nunca havia visto nenhum recém-nascido fazer, e o berro que eu dei ao mundo de 'eu estou aqui' foi o som mais lindo que ela ouviu na vida. O berro de quem havia lutado desde os seus primeiros minutos de vida.
Em um dos países do mundo que mais odeia as mulheres, eu tive a sorte de nascer um homem. Diante da pobreza e da crise existente sob o governo do ditador Mubarak, eu tive a sorte de vir de uma família abastada. Eu me sentia amado pelos meus pais profundamente, e uma das memórias mais antigas era a de estar nos ombros do meu pai andando pela praia de São Estêvão, e ver aquele grande cachorro nos observando da enseada.
Os olhos luminosos nos meus, o pelo de uma cor quase dourada ao sol da tarde. Ele era grande como um lobo. E ainda assim quando eu o apontei para meu pai, excitado, ele não o viu, o animal correndo entre os barcos.
Eu nunca esqueci aquela tarde. Eu nunca esqueci aquele cachorro, que anos mais tarde descobri se tratar de um lobo dourado africano.
Eu nunca esqueci a risada do meu pai, ou como nossa mãe me fez limpar os pés da areia ao chegar.
Eu nunca esqueci, porque foi o último momento de paz que tivemos.
Em algum momento depois disso, as pessoas começaram a sussurrar sobre a cor dos meus olhos, e o quanto minha pele que era pálida demais, tão diferente da dos meus pais, não estava escurecendo como ele esperava.
As pessoas começaram a sussurrar.
E meu pai começou a as ouvir.
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Quando eu tinha oito anos, nos mudamos para o Cairo. Eu não tinha certeza se para fugir da crise que se abatia, ou era meu pai tentando fugir das pessoas, dos dedos que apontavam. E eu me perguntava se ele sentia algo ao ver o rosto dela daquela forma, sempre machucado.
Uma parte tola e infantil minha se perguntava se aquilo que minha mãe sussurrava no meio da noite era verdade, se eu era amado pelo meu pai.
E eu odiava isso.
Como eu odiava os gritos dela, como eu odiava os gritos dele, como eu odiava ter que me esconder, ou pensar sempre se seria daquela vez que ela terminaria morta. Como eu odiava o fato de ninguém olhar duas vezes quando ele a estapeava na rua, tentando arrancar dela a confissão de algo que eu, na época, não entendia.
Eu me odiava.
E eu o odiava.
"Teremun significa amado por seu pai."
Se isso era amor, eu não queria ser amado.
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Quando eu tinha 10 anos, eu vi o cachorro-lobo de novo. Estava voltando da escola, e ele saiu de um dos becos. Era ilógico pensar que fosse o mesmo, mas quando eu vasculhava minha memória, não conseguia ver a diferença, além de ele parecer menor do que lembrava.
Na hora não me perguntei o que uma espécie do deserto fazia no meio da cidade.
Nos encaramos, os olhos dourados nos meus, sem desviar, pelo que me pareceu uma eternidade.
Foi quando começaram os tiros e gritos.
Meus olhos desviaram por um instante, o coração ainda mais acelerado, fitando a rua de onde vinham os sons excruciantes de alguém morrendo.
Quando voltei os olhos ao lobo, ele havia sumido.
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Quando eu tinha 12 anos, o corpo da minha mãe não se ergueu do chão.A forma quebrada agonizou no corredor, sem direito a assistência, sem nenhuma chance. Ele nunca seria preso, nunca haveria justiça na terra por ela.
"Teremun significa amado por seu pai." Foram as palavras em agonia, a mão segurando a minha. E dentre o turbilhão do que sentia naquele momento, eu senti raiva por ela desperdiçar seus últimos instantes em algo em que não podia acreditar.
Eu nunca acreditaria que o assassino da minha mãe pudesse amar.
Ela havia me ensinado a prece dos desertos, do seu povo que vivia livremente nas caravanas em busca de seu oásis. Da vida que ela deixou para trás ao se apaixonar por alguém que seria a sua ruína.
E mesmo cínico e descrente depois de anos, eu ainda orei a tudo que fosse verdade, que na morte ela voltasse ao que mais amasse, como ela dizia que voltaria. O povo do deserto sempre volta ao deserto. Se torna o vento, se torna o tudo, se torna o guia dos que virão.
Uma parte de mim se odiou por eu estar aliviado, por ela conseguir finalmente ter essa liberdade, mesmo que fosse me deixando para trás.
O rosnado baixo no corredor me fez erguer os olhos dos últimos instantes dela, e eu o vi.
Ele estava ali, parado na entrada do quarto. Pelo escurecido pela penumbra, mas ainda assim dourado.
Como naquele dia no beco, os olhos me fitaram por uma eternidade. Quando a mão dela afrouxou, desviei e vi que ela sorria, também olhando o lobo.
"Teremun significa amado por seu pai." Ela repetiu, entre o sangue. Os olhos continuaram abertos, mesmo quando a mão soltou a minha de vez.
Quando olhei para cima, minutos ou horas depois, o lobo não estava mais lá.
E eu então percebi que todas as portas continuavam trancadas.
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Eu não tinha ideia do que aconteceria comigo, mas eu não esperava um melhor tratamento. Mesmo que com ela eu fosse continuamente ignorado se não tentasse intervir, eu não esperava misericórdia de um assassino.
Naquela noite eu fugi para as ruas do Cairo, mesmo sabendo que ele me buscaria. Eu ainda assim, mesmo odiado, mesmo com a sombra da dúvida em seus olhos, era seu único filho. Sem ela, as pessoas que nunca a conheceram ali, sempre trancada, não percebiam a estranheza da nossa aparência, acreditando que havia herdado os traços maternos.
Eu fugi pelas ruas escuras, tão vazias naquela hora, exceto pelos gatos que navegavam nos becos como donos, sabendo de seu direito sagrado naquela terra.
Pés descalços, eu ainda sentia o sangue dela nas minhas mãos, como se eu mesmo a tivesse condenado. Quando dei por mim, estava as margens do rio, olhando as águas escuras e poluídas.
Eu pensava se poderia me tornar areia do deserto também, e ir até ela.
Ele estava lá, na ponte, me fitando daquela mesma forma, que já era quase familiar. Os olhos dourados nos meus, intensamente, de forma que não vi o homem que havia subido as grades até ele saltar em queda livre e desaparecer nas águas.
Alguém começou a gritar, pessoas apareceram olhando para baixo.
Eu dei meia volta e retornei ao meu inferno.
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Ele não encostou uma mão em mim. Nem para um tapa, muito menos para um abraço.
Era como se não existisse quando estávamos sozinhos.
Era como se ela também nunca houvesse existido.
O sentimento de querer desaparecer ainda surgia com o passar dos anos, enquanto crescia, estudava e procurava uma maneira de sair das grades que me prendiam, antes que fossem meu túmulo como foram o dela.
E a cada momento em que esses pensamentos infestavam minha mente, eu ouvia o uivo e ao olhar pela janela do meu quarto a noite ele sempre estava lá.
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No verão de 2006 eu finalmente quebrei as correntes e me mudei para Luxor. De dia trabalhava no museu, como guia, com o que aparecesse, de noite me dedicava à escola de medicina. Depois de presenciar tanto a morte, eu queria poder ver o milagre do contrário.
As ligações dele foram ignoradas, as cartas nunca abertas, o dinheiro na conta nunca usado. Eu ainda me beneficiava do seu nome, por acreditar que era o mínimo que ele me devia depois de tudo.
De certa forma, na vida dele me tornei areia do deserto, fugindo entre os dedos de suas mãos.
Eu nunca mais vi meu pai.
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Quando comecei a residência no hospital, o lobo dourado africano estava lá, andando pelos corredores.
Eu sabia por muito tempo o que ele era, mesmo que meu pensamento lógico não quisesse aceitar. Seu pelo dourado brilhava na luz das madrugadas, enquanto ele seguia de quarto em quarto, invisível aos demais.
E assim como ele chegava, ele ia.
Embora ele nunca partisse sozinho.
Eu podia ouvir as pegadas que o seguiam, mesmo no corredor vazio. Às vezes, risadas infantis, e ver a silhueta da vez que o flanqueava. Por vezes, ele parava e me fitava daquela forma. Eu me perguntava se terio o visto partindo com minha mãe, se tivesse erguido a cabeça daquela vez.
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Eu retornei ao Cairo na primavera de 2011.
Naquele ano a tensão que vinha crescendo por todos os anos seguintes pareceu finalmente explodir em um grande caos nos países árabes, e não foi diferente para o Egito. A 'primavera árabe' trouxe consigo a insurreição popular do Egito; depois de 30 anos de ditadura, a população queria Mubarak fora, eles queriam a abertura política, democracia. Depois que o presidente da Tunísia caiu, era nossa chance.
Não foi algo que surgiu da noite para o dia, mas o ponto da explosão foi a explosão da igreja em Alexandria, matando 21 pessoas. Há anos se matava por religião, mas parecia que naquele momento os olhos se abriram para isso. As tensões religiosas, a crise, as péssimas condições de moradia e a censura levaram as pessoas às ruas, e os hospitais estavam cheios da noite para o dia.
No quarto dia, a internet e celular foram cortados no país, um toque de recolher foi instaurado, e a população ficou à mercê do governo e dos policiais que invadiam as manifestações violentamente. Sangue cobriu as ruas de várias cidades do Egito, mas principalmente Cairo e Alexandria. Sem uma voz para mostrar ao mundo o que acontecia, os manifestantes eram massacrados.
Cansado de ver os corpos que chegavam tarde demais, as equipes médicas começaram a ir às ruas, e lutando contra a violência removíamos pessoas da zona de conflito.
O lobo estava lá, ao meu lado a cada passo. Assim como eu, ele estava cheio de trabalho naquelas duas semanas que seguiram. Países interferiam, barricadas nas ruas. Pessoas se armavam com o que conseguiam pôr em mãos.
Eu vi pessoas se ajudando, eu vi pessoas se matando e naquele ponto eu pensava se um dia aquelas ruas ficariam limpas de todo o sangue.
Aconteceu a noite, na rua Al Sahafa, próximo ao hospital El-Galaa, enquanto um grupo médico levava feridos na ambulância, inclusive um dos cabeças das manifestações populares. Os tiros perfuraram a lataria como faca quente na manteiga, facilmente. Morto o motorista, o carro fora de controle bateu contra o muro, os médicos foram arrastados para fora.
Aconteceu em um beco sujo, com sangue escorrendo nas pedras e o som de tiros e gritos retumbando na noite escura. O som agonizante, enquanto o sangue preenchia minha garganta, e tudo que eu via eram as botas dos soldados e gritos que eram silenciados.
Quando o silêncio se tornou completo, o lobo estava lá, me esperando como sempre.
Diferente de todas as outras ocasiões, dessa vez ele se aproximou de mim.
Em frente aos meus olhos, ele se ergueu em suas patas traseiras, sua altura ultrapassando tudo o que poderia imaginar. No rosto de animal, seus olhos dourados como os meus me fitaram como não era fitado há muito tempo.
"É hora de voltar para casa, Teremun." A voz dele era profunda, e mesmo que nunca houvesse a ouvido antes, era conhecida. "É hora de vir com seu pai."
Sua mão estendida para mim era humana e a aceitei sem hesitação.
Ao redor as ruas desapareceram e se tornaram o deserto. A areia abaixo dos meus pés não me queimava e eu podia ver as caravanas à frente que seguiam com a familiaridade das velhas histórias antes de dormir.
O oásis me esperava, eu podia ver entre as palmeiras ela me acenando, me recebendo depois de todos esses anos.
Anúbis me guiou pela mão gentilmente e eu finalmente entendi o que minha mãe me dizia por todos aqueles anos, afinal, desde meu primeiro momento de vida, ela havia me entregue a ele. Na minha alma, eu sempre seria um de seus filhos, eu era apenas um empréstimo temporário para a vida.
E ele esperou pacientemente para que eu retornasse para casa.
"Teremun significa amado por seu pai."
De mãos dadas com meu pai, em direção à minha mãe, eu finalmente retornava ao lar.
Se tivesse olhado para trás, teria visto meu corpo abandonado entre sangue e outros corpos no beco. Nunca reclamado por ninguém, apenas mais um número que nunca seria divulgado.
No dia seguinte o ditador finalmente renunciou e deixou um saldo de 3000 feridos e 42 mortos, apenas os números divulgados, quando a população sabia que esse número havia sido bem maior. A junta militar assumiu o poder até as próximas eleições.
Egito estava livre.
Eu estava livre também.
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Notas finais
Aye, espero que tenham gostado.
Então, o lobo dourado africano, ou Canis anthus, é de onde os egípcios tiram a representação da cabeça do deus Anúbis. Eles podem ser encontrados no deserto africano, principalmente no Egito e Senegal.
A insurreição do Egito, assim como a primavera árabe e a situação da mulher do Egito – um dos piores países do mundo para se ser mulher – foram assuntos dos quais sempre tive interesse em falar, então fiquei feliz com a oportunidade.
E sim, eu fiquei olhando o google maps para decorar o nome das ruas do Cairo e usar aqui, me culpem. Tinha que entrar no personagem, e espero que tenha funcionado!
Okuduğunuz için teşekkürler!
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