Fui posta no mundo por mãos velhas e calejadas. Brutas, diria, mas experientes e necessárias. Passado o choque de ser manuseada com aquele desinteresse apressado, compreendi, se posso empregar esse verbo, compreendi que era melhor assim. Não me podia apegar no primeiro instante. Aprendi, outro verbo que também tenho dúvidas de ser adequado, aprendi que tinha de fazer as minhas escolhas com critério, mesmo que isso acabasse por ser difícil e, em certos casos, impossível.
Cheguei de olhos bem abertos, escancarados, ávidos, curiosos, dois botões redondos. Experimentei, a partir deste ponto vou empregar os verbos que entender – ainda que possam parecer excessivos, desadequados e completamente fantasiosos –, experimentei o que podia classificar facilmente de felicidade. Para além dos olhos que me iriam mostrar tudo o que havia para ser mostrado tinha uma boca desenhada num permanente sorriso. Linha única arrebitada nas pontas, fixada com dois pontos redondos para que não se desfiasse.
Julgava que era única, até me ver rodeada de outras muito parecidas a mim, com pequenas variações que me retiravam a exclusividade. No cabelo de lã, no desenho das boquitas, nos vestidinhos, na cor dos sapatinhos. Todas bonecas feitas de pano e vestidas de retalhos coloridos. Pequenas e silenciosas, metidas com os seus pensamentos que deviam conter os mesmos adjetivos, os mesmos espantos. Ignorei-as. Aumentei a minha vaidade. De facto, alimentei-a e inchei-a. Eu era extraordinária. Especial. Magnífica. Mantive-me calada, sem interagir com ninguém, naquele saco que nos comprimia umas contra as outras.
Selei, assim, o meu destino. O que queria ser, se era provável sê-lo. Eu queria contrariar os descrentes. Nunca aprendi a falar, porém, para me explicar convenientemente. Por isso, observava com atenção o que ia acontecendo. Pensava e insistia em pensar. Definia o mundo através das minhas reflexões mudas e, à medida que progredia nas minhas classificações, que enriquecia o meu léxico, nunca me esquecia de nada. A minha memória tornou-se prodigiosa. Uma pequena máquina que se afinava à medida que era mais utilizada. Seria um sortilégio, mas não tive receio de o utilizar exaustivamente e de me servir do seu poder sem qualquer hesitação. As minhas irmãs, acho que as outras bonecas seriam irmãs, olhavam para mim desconfiadas, com animosidade, um laivo de repugnância. Tinham medo de mim, das minhas ambições, do meu brilho.
Comecei por ser exibida numa feira, pendurada numa barraca que vendia artesanato. Exposta dessa forma miserável, um cordel enrolado no pescoço, enforcada num pau encostado a uma das estacas laterais que sustinha a lona pesada, junto a outros brinquedos. Quando o vento soprava, oscilava penosamente. Quando fazia calor, as minhas fibras queimavam. Quando chovia, ficava completamente ensopada. Cheguei a temer pela minha desgraça antes de desabrochar completamente. Assustava-me ser descartada sem qualquer oportunidade de mostrar os meus méritos. Aquela humilhação era cansativa, mas não podia rebelar-me. Estava vazia até que fosse escolhida para me encher com uma história.
Numa tarde quente de verão, soltaram-me do pau. O rapaz entregou-me à rapariga. Para a menina mais bonita do mundo! Exultei. Cantei alto nos meus sonhos. Eu tinha sido comprada ao feirante e transformara-me numa oferta de namorados. A rapariga cingiu-me ao peito depois de me beijar delicadamente os cabelos pretos. Prometeu cuidar de mim. Prometeu guardar-me para sempre. Houve amor naquele gesto. Eu era amada e, se tivesse um coração, estaria a rebentar de alegria no meu peito de trapo.
Viajei muito. Andava constantemente entre suspiros, risos, juras, beijos. A rapariga apaixonada levava-me sempre consigo na sua mochila. Na maior parte das vezes via também o rapaz que confirmava, embevecido, que a rapariga me tinha, um sinal de que a sua paixão continuava forte e verdadeira.
De repente, tudo mudou. Deixei de sair da estante da rapariga. Os dias passaram. Foram muitos. Via o sol e a claridade, a lua e a escuridão a passar na janela. Depois dos dias, passaram os meses. Eu estava intrigada, zangada até. Não podia ser descartada dessa forma sumária. O meu caminho tinha apenas começado. Eu queria mais mundo, mais emoções, mais amor. Mais viagens e suspiros e beijos.
Uma noite, a rapariga foi buscar-me à estante. Deitou-me consigo no travesseiro e chorou até adormecer. A linha no meu rosto continuava a sorrir, mas, se pudesse, teria se torcido em aflição porque as lágrimas da rapariga eram salgadas e copiosas. Depois dessa noite, fui metida numa caixa de sapatos onde já estavam coisas que tinham o ar macambúzio das lembranças. A tampa foi colocada e a luz desapareceu. Entrei numa noite perpétua e desesperei-me. Ainda tinha tanto para dar!
Gemia em silêncio e depois descobri que os outros objetos que partilhavam comigo aquela prisão também deviam lamentar a mesma sorte. Eram fracos, miseráveis, horrendos exemplos de enjeitados. Enchi-me de orgulho e suportei a provação com toda a dignidade. Eu regressaria… Eu era demasiado importante para terminar assim, estraçalhada e cheia de pó. Sim, eu regressaria.
De vez em quando a tampa era levantada. Surgia o rosto da rapariga e nova coisa era acrescentada à caixa. Mais objetos tristes, mais azarados infelizes. Mais corações partidos que eram emendados com esse sacudir do passado.
Eu esticava-me, ou pensava que me esticava. Exibia-me. Sorria-lhe igual ao dia em que o rapaz me pôs nas suas mãos. A rapariga percebia o meu esforço. Oh, sim. Percebia-o muito bem! Porque se demorava. Antes de recolocar a tampa, a ponta dos seus dedos fazia-me uma carícia no vestido. Suspirava, de olhos baços. E eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, seria resgatada.
O que veio a acontecer. Houve um dia em que a rapariga abriu a tampa da caixa de sapatos. Não foi enfiar lá outro pedaço da sua memória. Agarrou em mim. O meu sorriso imóvel ter-se-ia alargado se pudesse mover aquela linha cosida ao meu rosto imutavelmente sorridente. Quis gritar de felicidade.
Ela acondicionou-me dentro de papel de seda colorido e perfumado. Passou uma fita pelo embrulho e compôs um laçarote. Cantarolava e eu sabia que o amor tinha regressado.
O papel, ao ser afastado de mim, ao me descobrir os olhos de botões, revelou-me o rapaz. Espantado. Também envelhecido. Tinham passado anos. Cinco, dez, eu não sabia contar, quando o tempo não me causava mossa. Ele estava mais moreno e uma ruga de preocupação vincou-lhe a testa. Usava o cabelo curto, uma barba a definir-lhe a linha do maxilar largo. Reparei que os seus olhos contraídos já não brilhavam. A rapariga também tinha crescido, mas, ao contrário dele, tornara-se mais bonita, com uma determinação serena nos traços do seu rosto. Os seus olhos também não brilhavam.
“Devolvo-ta, para que te lembres sempre de mim”; “Dei-ta num dia de sol”; “Pois deste. Para a menina mais bonita do mundo, disseste-me nesse dia de sol”; “Sem a boneca, como é que te vais lembrar de mim?”; “Temos a nossa história que um dia hei de escrever”; “Escreve-a, gostaria de a ler”; “Fá-lo-ei. Embora saiba que nunca a lerás”; “Deixaste de acreditar em mim?”; “Sabes muito bem que sim”; “Vou ficar com a boneca para sempre”; “Eu também pensava que sim, que iria ficar com a boneca para sempre e olha… estou a dar-ta”.
Passei pouco tempo nas mãos do rapaz. Se me senti eufórica por ter saído da caixa de sapatos, cedo percebi que a minha condição não iria melhorar. Fui empurrada para o fundo de uma gaveta que cheirava a amaciador de roupa, fui enfiada no meio de blusas e de camisolas. Rapidamente fiquei enjoada daquele perfume sintético, daquele novo abandono, de todas as vezes em que era amachucada, prensada, amarrotada e esmagada quando ele vinha escolher uma peça para vestir. Resmungava e nutria pensamentos de ódio pelo rapaz que não sabia manter uma promessa.
Numas arrumações motivadas por uma mudança de casa, saí dessa segunda prisão. Fui metida numa caixa grande. A minha esperança tinha morrido completamente. A minha vaidade, esboroada. O meu orgulho, pisado. O meu sorriso, embotado. Os meus sonhos, todas as minhas cores… destruídos. Enganada e estropiada. Afundada em desesperança.
Entregaram-me a um museu. Fui estudada e catalogada, colocaram-me numa vitrina para ser exibida. Menos mal. Sempre era uma caixa com paredes de vidro que filtrava a luz e que me deixava ver caras de pessoas que se admiravam comigo e com a minha beleza restaurada. Voltava a ser especial durante as horas das visitas. No resto do tempo era apenas mais uma no meio de uma coleção de bonecas de vários feitios, origens e idades, mudas e deprimidas. Recusei-me a ficar no mesmo estado de lassidão e desespero. Mantive-me estoicamente firme.
Durante um dia particularmente azafamado, no meio de um grupo grande, a rapariga apareceu com uma criança pela mão. Notei imediatamente as parecenças. Mãe e filha. A rapariga continuava bonita, a pequena iria herdar a beleza materna. Aliás, eram a cópia uma da outra.
Empertiguei-me. A rapariga olhava-me de cenho franzido. Depois, um milagre. O mesmo brilho de quando recebeu a oferta do rapaz, naquele dia de verão, naquela feira, há tantos anos, voltou a acender-lhe os olhos que se tornaram imediatamente límpidos e juvenis. Inclinou-se para a filha. Apontou a vitrina, apontou-me e disse: Estás a ver aquela ali? Tive uma boneca igualzinha a essa.
Fiquei estarrecida. Quis saltar da vitrina para fora, romper o vidro, atirar-me à rapariga, incomodá-la com uma bofetada leve com toda a pujança dos meus braços de pano, para demonstrar a minha indignação. Estrebuchei, descontrolada, num acesso de fúria. Arquejei.
Tiveste-me a mim. A mim! Era eu, eu. EU! Era EU a tua boneca! Foi ele que me ofereceu a ti, foi ele que me meteu aqui dentro. E tu amaste-o tanto, até ao fim das tuas forças. Ele não merecia o teu amor, mas amaste-o. Estive presa com ele, estou presa por causa dele que não tem coração. Oh!, mas tu descobriste essa verdade antes de mim. Choraste e depois curaste a tua dor. Enquanto eu vivi na ilusão de ser um símbolo de algo eterno. Não, não! Não me podes voltar costas. Volta! Eu sou aquele amor puro e inocente que sentiste. Como podes esquecê-lo com essa facilidade? O tempo detém-se quando amamos e fica suspenso. Eu sou esse tempo que não passa, que perpetua o que foi feliz, o que foi maravilhoso, o que foi cintilante. Não queres ficar com essa dádiva? Com essa memória que não se deteriora, que não definha e que não morre? Sou eu, EU! Fica, fica, leva-me contigo. Salva-me. Ele abandonou-te, ele também me abandonou. Mas tu não. Tu és melhor do que ele e do que todos. Tu és a minha única salvação. Tu és a menina mais bonita do mundo.
Mas a rapariga não me escutou os apelos e não voltou para trás. Ela tinha a sua vida e eu já não pertencia à sua vida.
O meu fim tinha chegado. Tão depressa… tão… inesperado.
A cabeça pendeu-se-me. Deslizei. Entranhei-me entre plástico, tecido e silêncio. Escondi-me atrás das outras bonecas. Não queria que voltassem a olhar para mim. Não, por favor, deixem-me em paz, implorava desapontada. Derrotada.
E calei-me, para jamais voltar a pensar e sentir.
Acho que morri voluntariamente… de coração invisível desfeito.
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