— A felicidade não existe! —gritou o Homem de Chapéu Laranja.
— O medo e a escuridão também não, são apenas projeções mentais —respondeu a Menina Que Costura Sonhos.
— O que eu quero dizer é que o medo e a escuridão mesmo não existindo, quando aparecem teimam em determinar o futuro daqueles que estão por perto. Mas a felicidade é falsa, ela não surge nem de projeções, pois é fingida.
— Projeções mentais tem poder, Homem de Chapéu Laranja, mas só tem o poder que nós canalizamos para elas. A felicidade não é deste mundo, mas eu também não sou. Ela vive dentro de nós e não precisa ser expressada para quem está fora.
— Se você prefere continuar pensando assim, nada posso fazer, afinal, sou um mero observador das estrelas —disse o Homem de Chapéu Laranja voltando-se para o céu.
— Como pode observar as estrelas se ainda é dia?
— Só porque não podemos ver, Menina que Costura Sonhos, não quer dizer que elas não estejam lá.
Sorrindo, a menina virou-se para o homem e disse:
— Exatamente, senhor. Só por que você ainda não viu a felicidade, não que dizer que ela não exista.
— Está enganada menina, a felicidade morava na minha casa, era minha confidente, mas ela me traiu, fugiu de mim, mesmo depois de eu tê-la alimentado e abrigado.
— E onde você morava?
— No Morro da Pedra do Pescador —o homem falou com voz embargada, remexendo a caixa das memórias.
— E por que você diz que ela fugiu?
— Em uma tarde de outono...
— Não seja poético, Homem de Chapéu Laranja, seu coração e suas emoções não cabem em um poema. Seja literal, por favor —disse a menina.
— Está certa. Meu avô era o meu melhor amigo, a vida era colorida com ele, pois ele me fazia ler com os olhos fechados. "Os olhos enganam", dizia ele. Tudo tinha sentido, eu sabia o propósito de estar vivo. Mas em uma tarde tudo ficou cinza, seus olhos se fecharam para sempre, talvez agora ele veja tudo mais bonito e como realmente é. E eu... Bom, eu estou aqui tentando entender o significado do termo "felicidade".
— Como se chamava o seu avô.
— O Doador de Detalhes.
— Ouvi falar do seu avô. Li quase todos os seus livros e realmente fiquei apaixonada pelos detalhes que ele me deu.
— Sim, é verdade. Meu avô foi o grande homem das histórias reais.
— Reais?! Não pode ser. Como ele pode ter vivido tudo aquilo de verdade?
— É que a realidade dele era diferente da minha ou da sua. Ele vivia pelo que você costura, ou seja, pelos sonhos. Ele construía impérios e muralhas indestrutíveis dentro da própria mente. Nada era impossível.
— Engraçado você dizer isso, senhor. Achei que tivesse dito que a felicidade não existia.
— Na verdade menina, eu é que não sei vê-la.
— Mas senhor, você está com seus olhos bem abertos, veja... Escute o vento. Isso sim é felicidade.
A menina falou apontando para o imenso campo de tulipas que se estendia por quilômetros. Ao seu lado havia uma enorme árvore com folhas alaranjadas onde esquilos estocavam nozes.
— É esse o problema, menina: nunca mais pude fechar os olhos e isso me impediu de criar minha felicidade. Quando os fecho, tudo que consigo ver é a escuridão que você diz não existir. E a felicidade nem sequer vem me dar um oi.
— Sinto muito senhor, mas a culpa é sua.
— O que disse, menina?
— Disse que a culpa é sua. O que você guarda aí dentro transforma o que você tem por fora. Por que não faz uma limpeza na sua casa?
— Minha casa está muito bem higienizada, menina.
— Não estou falando daquela casa onde você guarda seus móveis e as outras tralhas, estou falando dessa aqui —disse a menina colocando a mão no coração do homem.
— E como é que eu faço isso? Quer que eu coma sabão?
A menina soltou uma gargalhada e continuou olhando para o homem, balançando a cabeça. Ela estava pensando no quanto os acontecimentos podem ser engraçados: ali estava ela, uma menina, e ele, um homem. Pela diferença de idade era ele quem deveria ensiná-la, mas estava acontecendo o contrário.
— Você já amou, Homem de Chapéu Laranja? Sabe o que é isso?
— Não —o homem respondeu mais para si mesmo do que para a menina.
— Então eu encontrei o problema. O sabão que você deve usar para limpar por dentro é o amor.
— Como assim Menina que Costura Sonhos?
— Bom —a menina pareceu brevemente procurar algo em volta—, veja esta tulipa. É linda não é?
— Sim, é muito bonita, mas o que isso tem a ver?
— Se você ama esta tulipa, o que você faz com ela?
— Tiro-a daí e levo para casa —o homem respondeu como se a resposta fosse lógica.
— Está errado, senhor. Se realmente amasse a tulipa deixaria ela onde está, porque sabe que se levá-la para casa ela vai morrer, e quem ama ajuda a viver.
— Acho que entendi, Menina que Costura Sonhos, mas meu tempo de amar já passou. Hoje sou quase tão velho quanto o meu avô quando partiu.
A menina arregalou um pouco os olhos, impressionada com a ideia do homem. Internamente ela se divertia com situações como essas.
— Está novamente errado, senhor, se pensa que estou falando de protagonizar um romance com uma mulher. Por que não tenta amar algo mais difícil e complexo?
O homem balançou a cabeça tentando pensar em algo que ele conhecesse que fosse mais complexo que as mulheres.
— O que, por exemplo?
— Tente amar a humanidade. Tenho certeza que se o senhor conseguir essa proeza, sem dúvida vai encontrar a felicidade.
— Acho que não posso fazer isso menina. As pessoas já me causaram muitas dores, não sei se posso amá-las. E mesmo se conseguisse, como isso iria me ajudar a encontrar a felicidade?
— Você precisa aprender outra coisa antes de amar. Tem que aprender a perdoar, senhor. Viu? Já descobrimos a sujeira no seu coração que é todo esse rancor que você guarda. Também já descobrimos o sabão e o esfregão que são o perdão e o amor. Agora você só precisa começar a limpar e esvaziar a casa. E não se esqueça de não deixar entrar sujeira novamente. Ah! Quase ia esquecendo, limpe e esvazie a casa, mas não a deixe vazia, decore-a com tudo que há de bom e alegre.
— Menina que Costura Sonhos, você é muito esperta para a sua idade. Com quem aprendeu tudo isso?
— O senhor não sabe a minha idade, mas posso dizer que aprendi tudo com o meu pai.
— E qual é o nome do seu pai?
— Ele tem vários nomes: El Shaddai, Elohim, Shamah, Palet, El Raí, Adonai... Cada um chama de um jeito diferente. Eu prefiro chamar de Deus.
— Deus? E onde ele mora?
— Em todos os lugares e em lugar nenhum ao mesmo tempo.
— E como você o vê, menina?
— Eu faço como o seu avô, senhor. Fecho os olhos.
— Interessante —disse o homem pensativo, tendo aquela velha sensação de reconhecimento—. Bom, menina, eu preciso ir —o Homem de Chapéu Laranja olhava para o relógio no pulso—. Senão vou perder a hora.
— A hora é só um conceito abstrato, senhor.
— Nem por isso deixa de existir menina.
— Acho que o senhor está começando a pegar o jeito— disse a menina sorrindo.
O Homem de Chapéu Laranja sorriu e deu uma piscadela, virou-se e começou a andar pelo campo de tulipas. Admirando as flores pelo caminho, instintivamente arqueou-se para arrancar uma, mas no meio do movimento conteve-se. Sorriu lembrando da Menina que Costura Sonhos. Depois continuou andando compondo um assobio baixo.
Àquela altura a menina já desaparecia no ar, fragmentando-se em milhões de partículas energéticas, assim como tudo ao redor. Logo ela estaria no sonho de outra pessoa, tentando ensinar só um pouquinho de sabedoria, doutrinando e amando a mais um irmãozinho perdido na amargura.
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