Aquele tinha sido mais um dia exaustivo de trabalho na Lee & Lewis Publicidade, uma das agências mais conceituadas de Nova York, na qual eu trabalho como estagiária há quase seis meses, tendo que aguentar os meus dois chefes tiranos, exploradores e maquiavélicos.
Às vezes, eu me pergunto se os dois não fizeram algum tipo de pacto com o diabo em troca do sucesso neste ramo. Digo isso por dois motivos: a agência está indo de vento em popa em um mercado conhecido por ser bem competitivo, e também porque Mark Lee e John Lewis são exatamente os tipos de pessoas que se aliariam à forças malignas para subirem na vida. Disso eu não tenho dúvida.
Não, eu não estou exagerando. Meus chefes são praticamente dois demônios. Best Friends Forever de Lúcifer. Só isso para explicar a tensão sufocante que se instala quando os dois chegam no escritório todos os dias. Só isso para explicar também a forma desumana como eles me tratam, sempre me dando mais e mais tarefas, — inclusive servir cafezinho durante as reuniões — sempre exigindo mais e mais de mim para, no fim, não me darem o devido crédito.
Aliás, geralmente, o crédito é apenas deles e de suas mentes brilhantes, já que uma reles estagiária — atenção, palavras dos meus chefes — não tem a menor capacidade e conhecimento de mercado para elaborar um briefing decente, que dirá uma campanha publicitária inteira. Viram? Dois diabos.
Exaurida, eu entro no elevador e aperto o botão que me levará ao subsolo. Trabalho no 13º andar, só para constar. Outro forte indício de que meus chefes tem ligações com forças ocultas, afinal o número 13 é considerado agourento por muitas pessoas. Por mim, inclusive.
O relógio no meu pulso marca onze horas da noite e eu solto um suspiro para aliviar o estresse acumulado ao longo do dia. É isso mesmo, eu estou saindo às onze horas da noite do meu trabalho. Tenho certeza de que, além da recepcionista e de alguns seguranças, eu sou a única pessoa neste prédio.
Estive em reunião com os dois demônios dos meus chefes a maior parte do dia e quando achei que finalmente poderia encerrar o expediente, eles me pediram uma série de relatórios e levantamentos para o primeiro horário de amanhã. Ou seja, tive que ficar até essa hora para finalizar tudo. E para quê? Para amanhã ouvir os dois fazendo críticas e dizendo que eu sou uma incompetente.
Quando a porta do elevador se abre no subsolo, eu ainda não decidi como vou assassinar os meus chefes no final do estágio. São tantas opções...
Enquanto passo o meu crachá na catraca, sacudo a cabeça levemente, afastando tais pensamentos. Me lembro da minha avó e de como ela me repreenderia se soubesse que eu estou desejando algo ruim para qualquer pessoa que seja. O problema da minha avó é que ela não entende que os meus chefes não são pessoas, mas sim demônios disfarçados de pessoas.
Seja como for, tento me apegar ao fato de que este dia infernal está chegando ao fim, que tudo o que eu tenho que fazer agora é chegar no meu apartamento, tomar um banho relaxante, comer alguma coisa e capotar na cama. O fato de eu estar de férias da faculdade também me anima e, quase sem perceber, consigo sorrir.
Mas, quando avisto o único carro no estacionamento — o meu — a revolta toma conta de mim novamente. Eu sou mesmo a última pessoa a deixar o prédio! Malditos chefes! Minha avó que me desculpe, mas me pego planejando a morte dos dois de novo e dou um sorriso maquiavélico ao imaginá-los implorando por suas vidas patéticas e fúteis.
Finalmente entro no carro, coloco o cinto de segurança, dou partida e sigo em direção à saída do estacionamento. Tentando esquecer completamente este dia e meus planos de homicídio, ligo o rádio para ouvir uma música relaxante. Acabo parando em uma estação de notícias 24 horas. A jornalista responsável pela meteorologia diz que a noite será estável, bem como o dia seguinte, sem previsão de chuva.
Por isso, eu estranho quando passo pela cancela do estacionamento, vejo um pedaço do céu e nota nuvens pesadas e escuras se concentrando bem em cima da minha cabeça, além de alguns relâmpagos espalhando-se por toda a parte.
— Nunca confie na previsão do tempo. — digo para mim mesma, antes de passar pela calçada e finalmente alcançar a avenida onde o prédio fica localizado.
Cinco minutos depois, eu estou em uma rua completamente deserta e sinto a revolta novamente tomar conta de mim. Paro no semáforo vermelho e olho para os lados, procurando por mais veículos ou por pessoas nas calçadas. Chego a conclusão de que estou sozinha em Nova York. Até as lojas estão fechadas. Será que o apocalipse zumbi começou e ninguém me avisou? Será que a qualquer momento, milhares de zumbis vão aparecer do nada e me cercar aqui?
Sorrio ao pensar em como a minha imaginação é fértil e aceito o fato de que, apesar de estar em Nova York, esta área é relativamente mais tranquila mesmo, principalmente neste horário avançado. Malditos chefes!
O semáforo fica verde e sigo ao mesmo tempo em que um raio corta o céu. Logo, ele atinge o chão logo a frente do meu carro, enquanto o barulho ensurdecedor de um trovão se propaga no ar.
Assustada e pega de surpresa, tento frear, mas estou muito próxima do clarão e não vou conseguir. Então jogo o carro para o lado, desviando de qualquer jeito. Finalmente consigo frear e, sentindo que fiquei meio surda por causa do trovão, olho meio desnorteada na direção de onde o raio caiu.
Constato que o clarão se foi, o barulho se extinguiu, mas ainda há um pouco de fumaça emanando do asfalto quente. E há outra coisa também. Um homem.
Pisco algumas vezes para me certificar de que não estou imaginando coisas, mas lá está ele. Caído de joelhos no meio da faixa de pedestres, com a cabeça baixa enquanto seus olhos percorrem o chão, como se ele também não entendesse o que está acontecendo.
Seus cabelos, compridos e negros, são molhados aos poucos pela chuva que começa a cair. E então ele olha para cima, fitando o céu. Mesmo à distância consigo notar raiva em seu semblante e vejo-o cerrar os punhos ao lado do corpo, como se estivesse se preparando para bater em alguém.
Um relâmpago ilumina o céu mais uma vez e algo brilha no seu pulso direito. Só então eu desperto desta espécie de transe e resolvo sair do carro. Me arrependo em seguida, quando a chuva incrivelmente gelada me atinge como um choque.
Penso em voltar para o carro e procurar um guarda-chuva em algum lugar da bagunça que acumulo no banco de trás. Mas desisto ao perceber que isto é uma emergência e que eu não posso deixar o desconhecido ali, esperando por ajuda.
Então, repetindo para mim mesma que eu não sou feita de açúcar e que, portanto, não vou derreter, ignoro a chuva e corro na direção da faixa de pedestres. Tento me lembrar do que aconteceu momentos antes e não consigo visualizar em minha memória nenhum pedestre prestes a atravessar a rua. Então de onde este sujeito saiu?
Ele não pode ter caído do céu, obviamente, mas ao olhar para cima, me pergunto se ele não teria se jogado, de livre e espontânea vontade, de um prédio que há na calçada logo ao lado. Será que é isso? Será que eu tinha presenciado uma tentativa de suicídio?
Mentalmente, fico ensaiando o meu discurso:
Não faça isso, meu jovem. A vida é bela para quem não tem chefes como os meus. Seja lá qual for o seu problema, certamente existe uma solução e eu garanto que não é o suicídio. Você precisa esfriar a cabeça, pensar um pouco e não tentar se matar de novo, porque pode ser que da próxima vez, você não tenha a mesma sorte. Aliás, essa sorte pode ter sido um sinal, meu amigo. Não era a sua hora. Deus tem planos para você. Tudo vai ficar bem. Eu acho.
Planejo dizer todas essas coisas piegas, mas ao invés disso, detenho o passo quando o sujeito se levanta, me permitindo dar uma boa avaliada nos seus trajes... Extravagantes, e murmuro surpresa e horrorizada ao mesmo tempo:
— Que diabos...
A roupa, se é que eu posso chamar isso de roupa, — está mais para uma fantasia — parece ser feita de couro ou algo assim. Sua tonalidade é de um verde escuro, quase musgo, com certas partes em preto e outras em dourado, além de outras em um verde um pouco mais claro. Eu não sei exatamente onde termina uma peça e começa a outra, mas consigo distinguir um tipo de sobretudo, que é balançado constantemente pelo vento.
A chuva aumenta, tornando-se torrencial em questão de segundos, e eu me dou conta de uma coisa: o tal sujeito deve ser um cosplay de... Algum personagem que eu nunca ouvi falar.
Com certeza, está acontecendo algum evento assim na cidade e eu tenho vontade de me estapear por só ter descoberto isso agora e nessas circunstâncias.
Eu adoro este tipo de evento e adoraria participar também com meu clássico cosplay de Pikachu, mas... Espera. Tem alguma coisa errada. Se este sujeito é um cosplay, então ele é um cosplay suicida, o que, convenhamos, não faz o menor sentido. Não... Tem que ter outra explicação. E, tentando descobrir qual é, eu me aproximo mais um pouco e o chamo:
— Ei!
Mas ele simplesmente me ignora e continua olhando para o céu com um ódio palpável.
— Maldito... — o ouço xingar entredentes. — Thor! — ele grita a plenos pulmões, me fazendo estremecer e olhar para cima, procurando por algo que justifique tal comportamento.
Mas, tudo o que encontro é o céu encoberto por nuvens enquanto a chuva continua caindo impiedosamente sobre nós.
Será que ele caiu e bateu a cabeça? Será que o raio o atingiu de alguma forma? Será que ele é um maluco, cosplay de um personagem desconhecido e suicida? Eis as questões.
De repente, ele — seja lá quem ele for — começa a andar de um lado para o outro, percorrendo o chão com os olhos como se estivesse procurando por algo.
— Ei! Você está bem? — eu tento de novo, embora o comportamento do sujeitinho esteja começando a me assustar e a minha vontade seja de sair correndo daqui o mais rápido possível.
— Meu cetro... — diz para si mesmo, me ignorando completamente.
Será que ele realmente não me viu aqui? Será que eu estou mesmo derretendo? Tudo o que sei é que o desconhecido parece estar procurando pelo tal objeto.
— Onde está o meu cetro?! Thor! — ele esbraveja com um grito que faz o meu corpo tremer, enquanto olha para o céu com um olhar mortal.
Maluco. Ele é maluco. É nisso que estou pensando, quando abraço meu próprio corpo, sentindo frio por causa da chuva gelada que me molha por completo.
Eu devia voltar para o carro, eu devia ir embora. Este sujeito... Pitoresco não é problema meu. Eu não o atropelei, não o empurrei de um prédio e está claro que ele não quer a minha ajuda. Por tudo isso, penso em dar as costas e voltar para o meu carro, mas não consigo. Não agora que finalmente ele parece ter percebido a minha presença aqui. Não agora que ele finalmente parou de andar feito uma barata tonta e olhou na minha direção.
Sinto medo e tenho vontade de sair correndo, mas minhas pernas simplesmente travam. Sua expressão ainda tem vestígios de ferocidade e revolta, mas o cosplay também parece confuso e hesitante quando me encara.
Seus olhos são penetrantes, intimidadores, traiçoeiros e... Verdes. Mas não verdes do tipo meigo que os verdes costumam ser, mas sim verdes quase... Congelantes. Fico me perguntando se foi isso o que eles fizeram comigo. Se me congelaram. Por que eu não consigo me mexer, afinal?
Não sei quanto tempo se passou, mas em dado momento, o estranho vestido de forma bizarra finalmente desvia do meu olhar e me examina da cabeça aos pés com um desprezo tão palpável que me sinto o cocô do cavalo do bandido. Ou algo pior do que isso. Talvez o mosquito do cocô do cavalo do bandido. É, acho que é o mais apropriado.
Ninguém gosta de ser olhada deste jeito, muito menos eu, que sou tão orgulhosa e só estava tentando ajudar este mal educado. E ainda estou sentindo o meu sangue ferver nas veias e uma vontade louca de ajudar o estranho em uma segunda tentativa de suicídio, — mas agora seria um homicídio mesmo — quando ele arremata a grosseria resmungando, enquanto se afasta um pouco:
— Midgardiana desprezível... Fique longe de mim. Eu não quero sujar minhas mãos com você.
Em choque e completamente sem reação, o observo enquanto ele volta a andar feito barata tonta, procurando algo que só deve existir na cabeça maluca dele. Mas, maluco ou não, este sujeitinho arrogante me ofendeu. Se é para me xingar, que seja de uma palavra que eu pelo menos conheça.
Meus chefes, por exemplo, costumam me chamar de lerda, atrapalhada, imprestável, incompetente entre outras coisas meigas, mas isso? O que foi que este grosseirão disse mesmo? Midgardiana? Midgardiana desprezível? Ah... Isso não vai ficar assim, não vai mesmo!
Sentindo uma raiva latente, eu caminho resoluta até o estranho mal educado e mal vestido, o obrigando a parar diante de mim. Isso parece irritá-lo profundamente, mas eu não ligo. Ao contrário, isso me dá mais coragem.
Por isso, quando ele tenta se mover, eu tomo a sua frente de novo. Ele lança um olhar fuzilador na minha direção. Não me intimido. O meço da cabeça aos pés, como uma retribuição pelo o que ele havia feito momentos antes.
Por fim, para fechar com chave de ouro e sem medir as consequências dos meus atos, fecho a mão direita com força, o encaro com raiva e determinação, e me permito dar o primeiro soco da minha vida no rosto do abusado, acertando o seu maxilar com tanta força que ele simplesmente gira o corpo para o lado e cai sentado no chão.
— Meu nome é Olivia, — faço questão de corrigí-lo — Olivia Mills, seu cosplay desprezível! — rebato com satisfação.
Mas então, aquela onda de adrenalina e raiva que tomou conta de mim e me fez agir deste jeito impulsivo e até violento — diga-se — começa a passar e eu percebo que talvez não tenha sido uma boa ideia ter feito aquilo.
Com certeza, aquele soco tinha deixado o desconhecido ainda mais transtornado e, já que não tinha ido com a minha cara mesmo, agora ele tinha ganhado mais um motivo para... Para... Espera! O que esse sujeito ia fazer comigo depois do que eu fiz com ele?
Engulo em seco ao pensar nas possibilidades e avalio, mais uma vez, voltar para o carro correndo. Porém, mais uma vez, me detenho. Algo no comportamento dele me intriga e não consigo esboçar qualquer movimento ou dizer qualquer coisa.
Isso porque o desconhecido não parece estar com raiva, mas sim surpreso. E com dor, definitivamente eu lhe causei uma boa dose de dor, já que ele não para de massagear o queixo, enquanto faz uma careta. Não consigo conter certa satisfação ao perceber isso. Eu bati em um cara! Legal!
— Ele tirou os meus poderes... — murmura o estranho de repente, olhando para o bracelete metálico no seu pulso direito, como se estivesse confuso e incrédulo.
Droga! Eu não tinha batido em um cara, eu tinha batido em um maluco, em um doente mental. A culpa me consome. Eu sou um ser humano horrível! Ai meu Deus! O que foi que eu fiz?
A chuva começa a passar e a culpa me consome a cada instante, quando finalmente consigo dizer algo. Uma pergunta até então engasgada na minha garganta, que sai engasgada do mesmo jeito:
— Quem é você?
O maluco volta a me olhar e parece despertar dos próprios devaneios. Mas então ele se levanta tão rápido que não consigo evitar um pequeno grito e um sobressalto. Recuo.
Patética. Por que eu tinha que demonstrar que estou tremendo de medo? Isso parece ter o deixado profundamente satisfeito e eu profundamente irritada comigo mesma.
Mas, pelo menos, eu consegui entender por que ele se levantou tão rápido. Quando eu perguntei quem ele era, o sujeito estava no chão e, portanto, eu tive que olhar para baixo e ele para cima. Mas agora, a situação é inversa, já que o estranho é um pouco mais alto do que eu e, assim, eu tenho que erguer o olhar em sua direção, enquanto ele me observa com certa superioridade.
O estranho não gosta de ser visto por baixo, é isso. Um maluco orgulhoso, afinal.
Eu já nem esperava mais que ele respondesse a minha pergunta, quando sua postura se torna ainda mais superior e ereta, — nem parece a transtornada barata tonta de momentos antes — e posso até ver um sorriso discreto no canto dos seus lábios, quando ele finalmente se apresenta pausadamente e de um jeito firme:
— Eu sou Loki. De Asgard. E você... — ele me mede da cabeça aos pés novamente, arqueando uma sobrancelha, antes de me encarar e completar a maluquice: — Midgardiana desprezível... Vai me ajudar a voltar para lá.
Desta vez, o seu olhar de desprezo não me irrita porque estou focada demais em tentar entender o que ele acabou de dizer. A única conclusão a que chego é que ele é maluco mesmo. Doido de pedra, coitadinho.
Maluco, suicida, perdido em Nova York, completamente molhado pela chuva, praticamente atingido por um raio, quase atropelado por mim e socado... Por mim. Eu sou mesmo um ser humano horrível! Onde eu estava com a cabeça quando bati nele, afinal?
Tudo bem, o dia tinha sido estressante ao extremo e ele fez eu me sentir o mosquito do cocô do cavalo do bandido, mas partir para a violência contra uma pessoa mentalmente desequilibrada não tinha sido nem um pouco nobre da minha parte.
Então, tentando me redimir e lembrando de algo que minha avó me disse uma vez, — nunca chamar um maluco de maluco, pois isso o deixa... Maluco — eu me aproximo um pouco, o suficiente para repousar minha mão em um dos seus ombros, numa tentativa de acalmá-lo completamente e mostrar que eu sou confiável, dou o sorriso mais sincero que consigo, mas que com certeza deve ter saído forçado, e me comprometo:
— Eu vou te ajudar Loki, de Asgard. Na verdade, será uma honra.
O tal Loki, ou seja lá qual for o nome dele de verdade, observa a minha mão em seu ombro com uma reprovação perceptível. Lembro-me de que ele é orgulhoso e maluco e que, portanto, não deve gostar de ser tocado, e a afasto lentamente.
Então ele volta o olhar na direção do meu e, por um milésimo de segundo, penso ter visto um novo sorriso em seu rosto. Tão discreto quanto o outro. Displicente.
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