O demónio sentava-se confortavelmente numa poltrona.
Curiosamente, ele não achava estranho tê-lo ali, materializado à sua frente. Sentira desde sempre aquela presença, ao longo da sua vida, a batalhar com o anjo que ele também guardava no seu interior – e se era a metáfora gasta de sempre, todos temos connosco um anjo e um demónio que disputam a nossa alma, ele também não saberia dizer, pois naquela fase em que estava prisioneiro de uma terrível insónia tudo lhe parecia natural.
Por isso não se assustou com o demónio. A primeira coisa que fez foi olhar em volta para ver se o anjo também estava ali, mas não o encontrou. A segunda coisa que fez foi olhar para a garrafa que segurava pelo gargalo de onde bebia diretamente. Nem estava a metade, por isso aquilo não era uma ilusão provocada pelo álcool. Não bebera tanto vodka assim… A terceira coisa que fez foi arranjar um assento para si para encarar o demónio.
Não estava com medo. Estava… intrigado. Estava também exausto e isso fazia-o apático. Quase temerário.
Se o demónio tinha concedido aparecer-lhe daquela forma tão real, sentado naquela maneira descontraída como uma pessoa qualquer, como se fosse um convidado normal a quem ele tivesse aberto a porta da sua casa, ele não devia temê-lo. Não era o que se costumava sempre dizer? Enfrentar os próprios demónios, os medos interiores para poder superá-los? Nunca pensara que isso iria acontecer assim. Ter aquela criatura negra ao alcance da sua mão. Se esticasse um braço iria senti-lo como alguém, não era uma simples imagem ou efabulação.
Puxou um banco estofado para perto da poltrona com uma mão. A outra não largou a garrafa. Sentou-se. Colocou a cabeça entre os ombros e fixou os pés. Agora que estava de frente para o demónio não era capaz de olhá-lo. Um peso incomensurável oprimia-o. Nascia do coração que parecia recoberto de chumbo e espalhava-se pelo seu organismo como um líquido gelado a fluir nas veias, em vez do sangue quente e vivo. Pousou a garrafa no chão e esfregou as faces inchadas. Tinha estado a chorar convulsivamente, poucos minutos antes, afogado nas suas misérias e nas suas deceções. Nas suas cobardias pequenas que todas juntas formavam outro lastro dentro de si.
Perguntou com a voz abafada pelas mãos:
- O que fazes aqui?
O demónio inclinou a cabeça, movimentou-a de um lado para o outro como se quisesse experimentar o pescoço recentemente adquirido. Uma espécie de conjunto de vértebras estalou sinistramente.
- Pensava que sabias…
- Eu? Eu… não te chamei. Não sei de nada – desculpou-se.
De repente, sentiu-se envergonhado. Por ter chorado, por ter cedido, por ter bebido, por tudo o que nunca conseguia deixar de ser se permitisse o silêncio assentar. Olhou para a garrafa. Ia para tomar um gole da bebida, mas desistiu. Estava tonto e fraco. Não estava bêbado, não estava. Naquela fase, ele situava-se naquele limbo perigoso em que podia parar e recuperar a lucidez ou descambar para uma vergonhosa inconsciência alcoolizada, pejada de penumbras, de lamentos, de gemidos, de pesadelos.
Engasgou-se com um soluço. Que maior pesadelo do que ter o demónio ali, consigo, a tentá-lo?
- Tu sabes…
- Não sei de nada – insistiu.
- Esta noite está a ser muito difícil.
- É mais uma noite – suspirou.
Arrancou as mãos peganhentas do rosto. Respirou fundo, percebendo que o ar lhe faltava mesmo insistindo para que passasse pelas vias respiratórias que ele forçava. Tinha a garganta estrangulada pela tensão que lhe esmagava os músculos, todos os músculos do corpo rígido e relutante.
- Porque vieste? Estás sozinho… – observou o demónio num tom jocoso.
Ele apertou os lábios, agastado com a zombaria.
- Tenho trabalho amanhã. Uma sessão fotográfica…
- Não devias ter vindo. Sabias o que irias encontrar nesta casa vazia. Não podes ficar numa casa vazia. Por isso a enches de tudo e mais alguma coisa. Música, filmes, festas, falsa alegria, refeições abundantes, amigos ruidosos, amigos interesseiros, mulheres, filhos, primos, conhecidos… Gritos! Até prantos!
- Sou uma pessoa sociável.
- Uma pessoa sociável que não deixa que alcancem a alma solitária que se aninha, amedrontada e encolhida, nesse exterior todo bonito e perfeito.
Ele apertou os lábios. Assentou os cotovelos nas pernas, passou as mãos pela cabeça num movimento áspero.
- O que fazes aqui? – desconversou, repetindo a sua dúvida. – Não preciso de ti… aqui.
A bocarra do demónio arrepanhou-se nos cantos, na imitação sórdida de um sorriso.
- Tu precisas de mim. Sempre precisaste. Continua a ser insuportável.
- Estou melhor, agora.
- Estás melhor porque o teu fingimento consegue ser mais refinado… Mas tens deixado pistas. Muitas pistas.
- Não quero… seguir por esse caminho. Nunca quis!
- Ah… Espantoso! Então podes explicar-me porque me dei ao trabalho de aqui estar? Julgas que não tenho mais nada de interessante ou útil para fazer do que estar aqui sentado a escutar a tua patética autocomiseração? Que cena foi aquela, há pouco? Esmurravas e pontapeavas as paredes, gritavas como um louco! Choravas como uma maldita mulher! Julgas que já não sei como funcionas quando estás desfeito ao ponto de chegares à rutura? Oh, meu amigo, não é novidade nenhuma! Tenho convivido com a tua instabilidade todos os dias! Todas as noites! Durante todos estes anos! Conheço-te porque sou parte de ti. A tua parte melhor…
- Tenho também um anjo.
- A sério? Onde está ele?
- Tu mandaste-o embora.
- Só faço aquilo que me pedes para fazer. Se estou aqui foi porque me pediste ajuda. Queres coragem e só a minha coragem te vai manter no caminho certo. Até ao fim e sem vacilar.
- Não…
Ele negou suavemente. Teria chamado pelo demónio? Provavelmente. Estava desvairado quando se entregara, mais uma vez, ao desespero que o vazava de qualquer esperança. Fechou os olhos… Depois de chorar sentia-se sempre melhor, com menos dor. Menos encurralado, aprisionado na noite. Oh, era de noite, lembrou-se… Não conseguia dormir porque tinha uma voz insistente dentro de si que lhe dizia. Faz. Faz. Faz.
Fazer o quê? Fazer o que tinha de fazer.
Fazer o quê?, repetiu assustado.
A voz tinha-se calado. Pois claro, a voz era daquele ser amaldiçoado e negro.
Fechou os olhos. Agora chamaria pelo anjo. Eles que debatessem entre eles e o deixassem em paz. Ele ficaria a assistir à discussão, à luta equilibrada entre as duas noções que haveriam de se anular, um equilíbrio perfeito que enformava o mundo e a sua pobre vida destrambelhada de tanto conflito e ele haveria de adormecer, finalmente, cansado por ser sempre igual. A luz contra as trevas, o branco contra o preto. Iria dormir pouco, mas naquele ponto já não podia fazer mais nada. A noite estava perdida… Se aparecesse na sessão fotográfica com olheiras iria dar mais trabalho às tipas da maquilhagem. E pronto, seria só isso. Alguém perguntaria pelo que tinha estado a fazer e ele diria que estivera a ver uma temporada inteira de uma série.
A voz insidiosa e tentadora reapareceu:
- Os teus berros de desespero, os teus apelos lancinantes por tranquilidade. Imploras por descanso, por insensibilidade. Dizes que estás farto de sentir. Dizes que não aguentas mais.
A voz enchia a sala e os seus ouvidos. Era o demónio a falar. Dentro dele ou refastelado na poltrona. Era igual. Apenas mudava o volume do som.
- Dizes que queres luz. Rezas por iluminação, por sabedoria, por discernimento. Qual luz?!! Nunca tiveste luz. Nunca soubeste o que era a luz. Pensas que tens um anjo a proteger-te? Não, não! Fui somente eu, este espírito maligno, este demónio. Sempre foi escuro aí dentro! Sempre, sempre, sempre!
Num impulso, ele levantou-se e apontou-lhe um dedo.
- Cala-te!
O demónio gargalhou. Ele estava a tremer sem controlo, cada vez mais frio e indefeso.
- Calo-me? Chegaste ao fim da linha…
- Tenho… muitas coisas. Família, talento, amigos… Tenho uma grande riqueza – retorquiu e tornou a sentar-se, mole, no banco. Bebeu mais um pouco de vodka. O líquido ardeu-lhe na boca e no esófago, bateu-lhe no estômago como uma bofetada. Fez uma careta.
- Isso é conversa barata de psicólogo… O que sabem eles? Tanto curam e salvam, como entregam gente à morte. A estatística só prova que são aldrabões. Uma profissão como outra qualquer.
- Sim, tudo depende de cada um – concordou ele, agarrando na falha que encontrou naquele argumento. – Tudo depende da força de cada um. E eu sou forte. Eu vou ser forte. Prometi sê-lo.
- Patético!
- Não me vais tentar.
- Não preciso. Tu já sabes o que queres fazer… Tens aqui a tua oportunidade para seguires em frente com essa ideia que te martela a cabeça há tanto tempo. Desde que te lembras, não é? Estás sempre a definir uma linha para o teu tempo. Depois de fazer isto, depois de fazer aquilo e ponho um fim. Amanhã, depois de amanhã. No ano que vem, naquele dia que poderá ficar bonito porque eu já não vou estar no mundo a sujá-lo. Mas vais conquistando pequeninas vitórias que te vão ajudando a dar um passo e depois outro. Hoje até correu bem… Hoje até consegui dormir… Hoje vi algo que me deixou satisfeito… Mas depois há um dia em que o edifício colapsa e vais ter de refazer tudo, a partir desses escombros.
- A vida é um ciclo eterno.
- As vidas começam e acabam.
- Viver. Morrer. É normal.
- Muito normal… Chega um dia que é o último e apagamos a luz.
- Eu não tenho luz – suspirou ele.
Encurvou as costas, compreendendo que estava a aceitar os ditames do demónio. Sentia-se terrivelmente cansado, porém ainda sem sono. Desperto numa ebulição de sentimentos contraditórios que lhe espicaçavam a alma, ao ponto de senti-la aos encontrões contra o esqueleto, tentando libertar-se daquela carcaça arrebentada e esgotada. Chegara a uma idade perigosa, de decadência, de falta de autoestima, de dúvidas. Se antes sentia dores, agora pareciam-lhe ampliadas.
E a sua alma desejava soltar-se. Havia uma maneira…
Mas então faria o que o demónio queria e ele não lhe estava a apetecer ceder àquela criatura nojenta que troçava da sua fraqueza. Por uma simples questão de orgulho pessoal. Ainda conseguia destrinçar alguma dignidade naquela hora desamparada.
A coisa negra da poltrona soluçava numa casquinada irritante. Tinha escutado todos os seus pensamentos
- Isso, isso… Tu sabes o que queres. Eu ajudo-te.
- Não me vais ajudar. Vais ser como todos os outros… No último momento, vais desertar-me.
- Eu nunca te desertei… Não estou aqui quando não está mais ninguém?
- Eu também estou aqui. E só eu estou aqui… Mais ninguém, mais nada!
Espreitou através das pestanas húmidas, estava outra vez a chorar. Lágrimas lentas e silenciosas. Quentes, quando ele se sentia frio como um pedaço de gelo a vogar num oceano ártico. Olhou de baixo para cima na crença vã de que o demónio se tinha esfumado, mas a besta vil permanecia, a aguardar, sorridente e faminto.
Uma faixa de claridade insinuou-se à sua esquerda. Havia ali uma vidraça, portas que abriam para o jardim da residência. As portadas estavam entreabertas e deixaram passar aquela luminosidade fraca que funcionou como um toque divino que lançava calma nos tormentos. Afinal, o anjo sempre tinha vindo… Ele esboçou um sorriso triste. O demónio observou:
- Um novo dia…
- Sim – sussurrou ele. O anjo manifestava-se trazendo o sol nascente. A sua alma aquietou-se.
O demónio arreganhou os dentes.
- Um novo dia – repetiu. – Mais dor, outras batalhas inúteis, derrotas… Outro dia em que te vais esforçar para que tudo funcione sem que ninguém perceba a impotência e a raiva, as tuas desilusões. Outro dia de mentiras ignóbeis, outro dia a usar uma máscara. Outro dia que vai ser mais um peso no teu coração que já não aguenta mais!
Ele olhava calmamente para a luz azulada filtrada pelas frestas das portadas que balançavam suavemente com a brisa estival de uma madrugada calma. Entre a escuridão da noite que se despedia principiava a haver um pequeno brilho. Do fim havia um princípio e os princípios determinavam os fins. Ciclos. Ele era um ciclo. Em movimento. Imortal. Não iria esgotar-se assim. Ele disse:
- Amor…
- O quê? – espantou-se o demónio com um espasmo.
- Amor. Um novo dia. Mais amor.
O demónio arquejou, soltou uma rosnadela.
- Amor! – troçou. – Difícil de encontrar no meio da confusão, da escuridão, do desespero. É impossível amar quando temos o coração pesado com outras preocupações.
- No entanto, ele existe…
- Não!
- O amor é eterno. – A voz dele continuava a ser suave. Falava para si próprio, uma reflexão que verbalizava e que lhe parecia certa e irrevogável. Uma verdade que se tornava mais verdadeira se fosse falada. Como uma prédica. A sua alma também o escutava, expectante, encolhida num canto do seu interior, um punho de calor. Repetiu: – O amor é eterno. O amor fica sempre, depois de tudo.
Um riso escarninho, as patas asquerosas da alimária matraqueavam o chão.
- Ilusões, ilusões! – gania o ser hediondo. – Estás a enganar-te!
- Estarei?
O sol nascia. Era mesmo um novo dia.
- Estarei? – insistiu, com mais convicção.
Encheu os pulmões de ar. E sorriu.
De manhã, encontraram-no.
O silêncio enchia a casa. Era um santuário. Um mundo em suspensão. Um pequeno mundo.
Ele estava no quarto. Ao seu lado, a garrafa parcialmente bebida. Nunca ninguém saberia o que ele tivera de lutar, o que ele tivera de superar.
Encontraram-no…
Morto. Ou vivo. Vocês decidem.
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