O Sol ainda não havia despertado em Hawktall, mas Geonma Mecleod já se preparava para sair. Gostaria de poder dizer que acordara demasiado cedo, mas a verdade é que nem chegara a dormir, o sono a abandonou ao cair da noite, quando com a luz do luar, chegou também seu maior temor.
Sua avó, uma anciã humilde que criou Geonma após o falecimento de sua mãe, dissera-lhe certa vez que deveria ser grata pelo dom recebido. Mas para Geonma, aquilo era uma maldição que havia a aterrorizado nos últimos seis anos de sua vida.
A verdade que o destino deveria guardar, lhe era entregue em suas noites de pesadelos. Sempre que sonhava com um acontecimento aterrador, ele se tornava real. Era como se seus sonhos fossem formados de profecias a serem cumpridas.
Tudo começou quando sonhou que um chicote de fogo açoitava a pele do Sacerdote Roando, e semanas depois, o pequeno templo erguido em prol do louvor à Deusa Prussiya, desabou sobre o velho homem, em chamas.
Depois disso, assustada, procurou conforto nos braços da avó, mas essa lhe foi bem clara: “Você recebeu um dom, minha menina, mas as pessoas nem sempre enxergam com bons olhos os presentes que recebemos dos mares. Agradeça à Prussiya pela benção recebida, mas jamais conte sobre isso aos pobres mortais do Reino”, disse. Desde então, a jovem guardara suas profecias macabras para si, mas ao longo dos anos, o fardo foi ficando pesado demais para seus ombros.
Em busca de aliviar o cansaço emocional que isso lhe causava, começou a escrever, em forma de poesias, seus deslumbres do futuro. A pequena caixa de madeira, fechada com um cadeado e escondida sob o toucador, estava repleta de poemas que se tornaram tragédias em Hawktall.
O último escrito estava agora sendo segurado por suas mãos trêmulas:
“A Rainha vestia-se de vermelho
Criou um monstro, que agora ninguém mais quer
Deu seu amado bastardo, mas eles querem um Rei
É inútil gritar
‘Bem, se querem uma coroa, venham pegar’
Lutou a rainha cheia de orgulho
Enquanto lá fora fazia muito barulho
Uma oração para reanimar o coração do rapaz
Que uma espada abrigou durante a batalha voraz
Minha rainha, é inútil gritar
O vermelho não é tecido
Em seu pescoço sem cabeça, há sangue a jorrar.”
♢
Ranha Dalah estava subindo a escadaria da Grande Catedral de Prussiya, envolta por suas aias e alguns súditos adoradores.
— Minha Rainha — Geonma fez uma modesta reverência. — Perdoe-me a ousadia de atrapalhar seu momento de oração, mas necessito falar-lhe...
— Oh, querida — Dalah sorriu com ternura. — Eu costumo atender às audiências pedidas por vocês na Fortaleza Vermelha na última lua cheia do mês...
— Perdoe-me por insistir, Majestade — o terror tomava conta dos ossos de Geonma, e ela clamava à Prussiya que ele pudesse ser visto através de seus olhos. — É uma questão de vida ou morte.
A Rainha Dalah hesitou por um momento, por fim, decidiu: — Diga ao Grande Sacerdote para abriga-la em seus aposentos. Te encontrarei ao término de minhas orações.
♢
O papel dobrado se parecia com uma poção perigosa. As palavras dentro dele queimavam os dedos de Geonma. Não podia se calar dessa vez, precisava arriscar. Hawktall entraria em guerra, quantos dos seus não sangrariam nos campos enquanto os grandes senhores brigariam pela coroa aconchegados diante de suas lareiras?
A porta se abriu e a Rainha Dalah entrou, acompanhada do Barão Arkalis, um dos mais fiéis membros do Conselho Real.
— Minha Rainha, devo implorar-lhe por uma audiência à sós...
— Quem pensa estar mandando sair, sua medíocre? — não sabia dizer que se o barão ficara deveras ofendido, ou se só estava usando de sua hostilidade costumeira.
— Sr. Arkalis, deixe-nos — ordenou a Rainha. Arkalis permaneceu no quarto, atônito com a ordem. Dalah repetiu: — Deixe-nos. Espere na porta, chamar-te-ei se assim se tornar necessário.
Com uma sutil reverência, Barão Arkalis atravessou a passos largos e constrangidos a porta.
— O que houve, criança? Parece aterrorizada.
Geonma esticou o braço, fazendo o papel quase tocar a rainha. Dalah o leu, e conforme os olhos vislumbravam as palavras negras, seus olhos se enchiam de repugnância.
— O que diabos é isso? Quer ter a cabeça em uma lança, infeliz? — Embora a rainha não tivesse gritado, a voz saiu-lhe como um rojão, cheia de ódio.
Geonma começou a explicar-lhe, da forma mais clara que conseguiu, como funcionava as profecias em seus pesadelos... como elas se cumpriam. Contou sobre a existência de outros poemas, sobre a caixa cheia deles escondida do quarto. Contou tudo à Rainha Dalah.
— Eu a amo e lhe sou fiel, minha Rainha — à essa altura, lágrimas rolavam pela face de Geonma. — Por isso a procurei. Não podia deixar que a profecia se cumprisse. Por favor, não sucumba aos desejos da carne, não dê herdeiros ilegítimos ao Rei... seu filho morrerá, Vossa Alteza... A senhora também morrerá. Mude a profecia, eu lhe imploro, permita que essa não se cumpra... eu não suportaria vê-la se cumprindo.
Dalah caminhou até a lareira acesa ao fundo do cômodo, jogou o papel sobre a lenha e não tirou os olhos dele até queimar totalmente.
— Eu sou fiel a meu marido e meu Rei — forçou-se a sorrir para a plebeia. — Vá para casa e fique tranquila, criança. Foi apenas um sonho ruim.
♢
O sofrimento da Rainha Dalah podia ser ouvido em todas as torres da Fortaleza Negra.
— Pelas águas sagradas, será que perderei minha esposa hoje? — Rei Kahandre, sempre tão imponente e destemido, parecia agora uma criança assustada.
— Tenho certeza que não, Vossa Alteza — respondeu o Barão Arkalis. — Prussiya lhe deu a maior das bênçãos através de Dalah, a Rainha passa pela pequena provação da dor do parto...
— PEQUENA? — Interrompeu o rei com raiva. — Os gritos dela estão a ecoar pelas paredes, homem!
— Senhor, é natural que mulheres gritem nessas situações — Aloys, seu Alto Juramentado, tentou ponderar.
— Rapaz, não me venha dar lições que ainda desconhece. Nem esposa tomaste... mal saiu das saias de tua mãe!
— Perdoe-me, Majestade, não quis ofendê-lo — o Alto Juramentado abaixou humildemente sua cabeça diante da impaciência do Rei.
Um longo instante se passou em silêncio, a agonia da rainha não era mais ouvida. O rei nada disse, mas Aloys sabia que o temor assolava seu peito, se perguntando se e como o sofrimento cessara.
Uma criada adentrou o Salão Real aonde os dois homens se encontravam, suas saias muito sujas do que se podia perceber que eram sangue.
— Voss’Alteza — a criada fez uma tentativa frustrada de reverência. — Nasceu, senhor... é um menino saudável e bonito. Muito grande, por isso a judiação da mãe.
— Um menino? — Barão Arkalis levantara-se, a boca entreaberta.
— Sim, senhor. Um menino!
— Parabéns pelo seu príncipe, Majestade — disse Aloys sorrindo, feliz por seu rei.
Kahandre assimilou as palavras por um instante.
— Um príncipe! Um herdeiro, Aloys! Eu tenho um herdeiro, Arkalis! — o Rei explodiu e felicidade, e então se dirigiu à criada: — Vá, mulher! Toque os sinos! Hawktall precisa saber que seu futuro rei nasceu!
Os sinos não tocavam quando uma princesa nascia, apesar de semelhante alegria, as comemorações eram mais comedidas. Mas quando um herdeiro do trono vinha ao mundo, todos deveriam exultar, era um sinal de que Prussiya abençoava a família real com prosperidade, permitindo a fortificação de suas raízes no reino.
— Komur... — Kahandre disse, saboreando cada letra da pequena e gloriosa palavra. — Seu nome será Komur.
♢
Quanto maior o esforço para se libertar, maior era a dor em seus pulsos e tornozelos. As correntes machucavam. Os gritos desesperados se tornaram pequenos lamentos, já não tinha mais forças para chorar.
— Sua sentença saiu — disse o Guarda Real, atravessando a porta e a fazendo se levantar enquanto removia os grilhões.
— Estou livre? — perguntou-lhe em um fiapo de voz.
— Saberá em breve, acompanhe-me.
Seguiram por um corredor sombrio, cheio de celas vazias. Geonma queria acreditar que os prisioneiros que lá estavam há doze dias atrás, quando para lá fora levada, estavam agora livres. Mas sabia que era uma ilusão. De sua cela pudera ouvir suas cabeças caindo no chão, separadas de seus corpos. Estavam todos mortos agora.
Adentraram uma elegante sala, Rei Kahandre e Rainha Dalah estavam sentados à direita, enquanto o Conselho Real e os Sacerdotes do Reino estavam em pé à esquerda. De repente, Geonma sabia aonde estava: era a Torre da Lei.
— Geonma Mecleod, pelo uso de magia negra e o assassinato de mais de quinze pessoas do reino de Hawktall, incluindo o fiel e bondoso Sacerdote Roando, esse tribunal a condena à morte — antes que Geonma pudesse assimilar as devastadoras palavras, o sacerdote se dirigiu ao rei: — Vossa Alteza, como deve ser cumprida a sentença?
O Rei Kahandre ficou em pé e a fitou. Havia fúria em seu olhar.
— Sendo o assassinato um crime imperdoável, a senhorita Mecleod deverá ser soterrada. Que seus ossos apodreçam em terra e seu espírito encontre com o indigno Rodeiky em sua humilhação eterna. A senhorita não é digna de ser acolhida por Prussiya na vida eterna, não haverá Ritual de Reencarnação.
♢
Enquanto ouvia a terra cair sobre a madeira de seu caixão, esgueirando-se por entre as fendas que surgiram durante o percurso no qual moradores do reino atiraram-lhe pedras, Geonma se lembrou do fatídico dia em que tentou ajudar a rainha.
“Eu confiei nela”, pensou. Quando o pequeno príncipe Komur nasceu, há pouco mais de uma quinzena, Geonma compartilhou da alegria do povo, mas menos de uma semana depois, o pequeno casebre da avó foi invadido por guardas a mando do Rei. Um inquérito de bruxaria foi aberto contra ela.
A avó perguntava-lhe o que estava a ocorrer, mas ela só conseguiu entender quando pegaram a caixa sob o toucador. “O príncipe é um bastardo... Ela traiu o Rei... me traiu também...”, grossas lágrimas rolavam por sua face, o cheiro de terra cada vez mais forte.
Em Hawktall, quando alguém morria, era feito o Ritual de Reencarnação. Os corpos eram queimados em alto mar, para que as almas libertas pudessem voltar aos braços da deusa Prussiya e descansar em paz. A menos que o falecido tivesse cometido um crime imperdoável. Então ele teria seu corpo enterrado, sem fogo e longe do mar, e passaria a eternidade na escuridão de Rodeiky, o maléfico deus derrotado.
— Eu sou inocente — Geonma disse a si mesma, provando o sabor da terra que caía agora sobre seu rosto. — Eu sou inocente e não poderei ser acolhida por Prussiya. Mas o que eu não te contei, minha rainha, é que você será enterrada também.
Fechou os olhos, a terra agora atingia-os. As lágrimas cessaram.
“As profecias sempre se cumprem”, pensou Geonma pela última vez.
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