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1

PRELIMINAR

Vae para trinta annos que estão publicados os Contos phantasticos. Em boa verdade, nunca mais passei os olhos por este livro, que me apparece agora como obra de um extranho. Não tornei a lêr esses contos, não por um affectado desdem pela minha obra, desdem que condemno em todo o escriptor que se não preoccupa com a coordenação definitiva dos seus trabalhos, mas porque este pobre livro ficára ligado a impressões dolorosas cuja renovação evitava.

Foram reunidos em volume em 1865 os Contos phantasticos no meio das refregas da conhecida Questão de Coimbra; publicára a maior parte d'elles no Jornal do Commercio, em cuja collaboração litteraria auferia uns tantos réis com que ia seguindo o meu curso na Universidade. De repente achei-me cercado de odios; cortaram-me os viveres na empreza do jornal, nas aulas de Direito tiraram-me a mesquinha distincção academica, os criticos espalmaram-me rudemente, os livreiros recusaram-se a dar publicidade ao que escrevia, e os patriarchas das lettras com o peso da sua auctoridade sorriam com equivocos sobre o meu valor intellectual, chegando a circularem lendas depressivas do meu caracter e costumes que só consegui desfazer{VI} com uma vida ás claras e cheia de ignorados sacrificios. Outro qualquer ter-se-hia rendido.

Vi-me forçado a inverter as bases da minha existencia, abandonando a Arte que me seduzia, porque me abandonara a serenidade contemplativa, e lancei-me á critica, á erudição, á sciencia, á philosophia. N'este campo os meus erros e exageros bem merecem ser perdoados. Só muito tarde é que consegui conciliar em mim estas duas tendencias do espirito; mas não pensava em reimprimir os Contos phantasticos, a não sêr um dia em uma collecção de cousas avulsas constituindo a ingenua miscellanea das minhas Juvenilia.

Uma carta do meu bom amigo Antonio Maria Pereira surprehendeu-me, manifestando o desejo de fazer uma nova edição d'estes Contos. Como recusar-me a uma tão honrosa proposta?

Resalvei a condição de revêr isso de que nem já formava ideia. Foi assim que tive de lêr os Contos phantasticos, do rapaz de vinte e dous annos que existiu em mim, e a frio pude julgar da impressão por elles produzida. Achei ali uma fraca penetração do mundo subjectivo ou moral, encoberta com o esforço das comparações poeticas e dos epithetos; desgostou-me o estylo em que a prosa se confunde com o verso,—apresentando ainda a falta de nitidez de quem não pensa com segurança; e emquanto ao drama da vida, que é o thema eterno das obras de arte, notei tambem pouco movimento, as situações são narradas em vez de succedidas.

O que salva então o livro?

Uma pequena cousa, que é tudo,—a paixão. Ao fim de trinta annos ainda achei ali calor, a ardencia de um organismo que se queima, a vibração sensorial de uma mocidade plena que se lança de peito aberto ao combate da vida.

Foi esta paixão flagrante que fez com que esses Contos não ficassem esquecidos no Jornal do Commercio de 1865; voltando então de umas ferias para Coimbra, felicitou-me{VII} Eça de Queiroz, affirmando-me que nos cafés em Lisboa cortavam-se os folhetins, quando traziam algum conto meu. N'esse mesmo anno José Fontana quiz publical-os em um livro, que seguiu o seu fadario, sendo o mais glorioso o andar na algibeira do celebre engenheiro João Evangelista, que morreu devorado por uma violenta paixão amorosa. O pequeno livro estava na mesma afinação da sua alma. Cartas, que ainda guardo, me fallaram da impressão de um ou outro conto, por esse tempo.

Tudo isto me lembrou ao sentir que effectivamente o fogo que ha n'esses mesquinhos quadros se communica. E n'este dilemma dos dois amores, em que ainda se debate o espirito, attrahido para a arte e seduzido pela sciencia, hoje repassando as paginas d'este livro, é com uma certa piedade saudosa que o deixo reviver na publicidade, e lhe inscrevo com a frieza do Qualificador inquisitorial: Feitas as emendas necessarias póde correr.

Fevereiro de 1894.

THEOPHILO BRAGA.

{VIII}
{1}

As azas brancas

I

Sempre o mesmo olhar doloroso! uma constante expressão de magoa, esse abandono, que é o tedio da vida! Porque é que na flôr dos annos, quando a existencia se purpurêa com todas as graças que se entrevêem apenas em sonho e se veste das alegrias que a rodeiam, como uma criança enfeitando-se distrahida com as florinhas espontaneas, tu, bella, sentida, deixas reflectir pela transparencia da tua face pura um clarão pallido e incerto como de agonias e desespero, como a phosphorecencia de um grande mar que estúa? Diante de ti sente-se uma oppressão estranha, a mudez sagrada de uma grande floresta, o terror gélido, de quem entra na caverna de uma sibylla. Porque é que os teus vinte annos, as fórmas arrebatadoras{2} do teu flexuoso corpo de sylphide, que verga pela dôr, mais languido e gentil do que a palmeira solitaria embalada nas bafagens mornas vindas da amplidão remota do deserto, como é que toda esta adolescencia, que te cinge como auréola de encanto e attractivos, me faz ter medo de ti, me prende a voz temerosa e balbuciante, que ousa ás vezes perguntar-te:

D'onde vieste? Em que scismas? Que véo te acena e está chamando de longe? Porque te escondes dos olhos que choram de vêr-te assim desolada, na consternação de uma angustia intraduzivel por palavras humanas? Porque não fallas, e nos contas o que soffres? Porque te deixas ficar horas esquecidas com a mão firmada ao rosto, suspensa n'uma contemplação divina, irradiante, de um modo, que ninguem ousa dizer se és da terra, se és a incarnação de alguma essencia archangelica que anda errante no mundo a sanctificar o amor no soffrimento?

II

Ás vezes o teu semblante, onde se póde lêr um enigma que se não destrinça, tem a lividez de cera, e a claridade que parece conter em si o jaspe. Então julgo vêr-te uma santa, sob o aspecto de penitente que acha em cada successo da vida uma tentação occulta nas apparencias mais risonhas, no folguedo mais descuidado e innocente, do{3} mesmo modo que o áspide se esconde no alegrete das mais perfumadas flôres ou o somno lethal na sombra da mancinella verdejante e copada, aberta ao sol, como uma escrava sustentando a umbella com que abriga do rigor das calmas a voluptuosa odalisca.

Os vinte annos são a alegria, a innocencia, a expansão; ainda não viveste bastante para provar o travo amargo da vida, não sabes conhecer a tormenta que ha de vir pela nuvem que negreja, nem a bonança pelo santelmo, nem os parceis pelo refluxo da vaga marulhosa, nem o porto pelo perfume embalsamado da terra. Tu passas na vida como um meteoro fulgurante que não procura aonde irá caír, como uma creatura somnambula que não vacilla, não hesita diante do abysmo que transpõe, nem deixa possuir-se da attracção irresistivel porque a desconhece. A vida é assim para ti; passas despreoccupada do mundo, levada na ondulação saudosa d'essas vozes interiores que te segredam mysterios indefiniveis que fazem sentir o desejo de voar para o alto, até perder-se no azul.

Os teus cabellos, quando os deixas cair destrançados sobre os hombros de marfim, agitados pela brisa vespertina que vem confidenciar comtigo á janella, que olha para o occidente, esses cabellos louros, extensos, são como as cordas de uma harpa, em que as imagens incoerciveis de teus pensamentos vêm fallar do céo, do amor, no frémito ligeiro, quasi imperceptivel das vibrações que só tu comprehendes.{4}

Consternada e muda como uma estatua, a Niobe grega, o teu silencio incute uma sublimidade prophetica; parece guardar a impressão do sêlo mais tremendo do Apocalypse,—a missão da mulher forte.

III

Quem sabe se é o amor que a transporta assim para as solidões, como a pomba que vae esconder-se na rocha alcantilada? O amor que esmalta a vida de harmonias e encantos, que acorda as virações para levarem longe o pollen fecundante, que abre o calyce das flores para as abelhas tocarem os nectarios deliciosos, que une o gemido do regato trepido com o ruido, brando que adormece, do canavial que orna as margens sinuosas? O amor é um amplexo, a identificação; como poderia divorcial-a com a vida, mudar a sua alegria em uma tristeza que é como o presentimento do sepulchro? Aquelle segredo incommunicavel opprime, aterra como a sphinge propondo o enigma.

Ella cada vez andava mais desfallecida, pendia de cansaço, offegava; mas procurava illudir os disvelos da familia com um vigor que não tinha, como succede ao naufrago quasi a afferrar a terra, de que a ressaca da onda o afasta, e que hesita se deve luctar mais tempo, se deixar-se engulir nas voragens do oceano. Gravitaria ella em volta de um mundo em que procurasse absorver-se, e{5} a vida da terra, de cá, fosse como o refluxo que a impellia para longe? Pobre flôr, que se debruça nas bordas da sepultura, será uma illusão quanto a sua alma ingenua sente? Serão uma mentira todas as harmonias que se modulam lá dentro? O tapiz verde da relva fresca, lubrica, que a chama para vir doidejar ali n'um volteio feérico, febril, esconder-lhe-ha o lodo de um charco estagnado que a ha de engulir para sempre?

Tenho medo de vêl-a assim, com os olhos fitos no horisonte, n'essa morbidez do extasis; a vertigem póde sacudil-a, e precipitar-se, como a borboleta prateada e indiscreta. A sua alma eleva-se para o céo; porque vôa tão cedo para cima a nevoa da madrugada, de uma alvura nitente? A andorinha quando parte, vôa na aza da rajada hybernal que a arrebata.

Mas o mundo acariciou-a sempre; porque se esconde pois e foge d'elle? Será a reminiscencia viva do foco de luz d'onde saiu, que lhe inspira tamanha anciedade, e lhe abre n'alma uma saudade vivissima, que mata? Ás vezes está tranquilla, immovel, como quem escuta a toada de um concerto mavioso que embala e com que se adormece. Oh, quem ousará despertal-a? Seria perturbar a crystalisação de uma gota de orvalho que se transforma em perola. Outras vezes tem o olhar pavido, firme, de quem contempla e pasma ante uma visão immensa e augusta. Que apparição risonha virá fallar-lhe? Eros, na solidão remota da noite? Será o desejo de vêl-o, o desalento{6} do impossivel, que a fazem reconcentrar assim n'essa dôr? Uma lagrima era a gota do oleo aromatico da alampada escondida; em vez de fazel-o desapparecer, envolto na nuvem branca e etherea, a lagrima trazel-o-hia como um grande astro que attrae após si myriades de planetas.

IV

A tarde declinava amena, festiva, com o ultimo lampejo de graça que deixa presentir já a melancholia do outomno. Emma ergueu-se da mesa; o rosto estava deslumbrante de transfiguração, possuida do sentimento do infinito, que lhe dava uma expressão sobrehumana, excelsa, que se não podia fitar, similhante á Seraphitaenlevada nas illuminações swedenborgianas, ao transpôr os precipicios icarios, inaccessiveis dos fiords da Norwega.

N'aquella tarde parecia oppressa por uma angustia mais intima. Segui-a, queria admiral-a na altura a que se remontava, queria que me fizesse herdeiro do seu manto prophetico, no instante em que se librasse no carro de fogo, como Elias. E ella era bem a prophetisa do deserto. Approximei-me. Estava serena e placida, como quem mergulhára no oceano da contemplação. De mais perto vi que dormia, com um somno hypnotico. Ficára-lhe um sorriso estampado nos labios; parecia o involucro de uma chrysalida mysteriosa;{7} a borboleta voára para a luz, abandonára-o na terra.

Conservava então um livro sobre o regaço; a mão inerte repousava sobre a pagina. Um leve signal notava uma phrase profunda em que a alma se lhe absorvêra: «Um anjo está presente a um outro, quando elle o deseja

Procurei vêr de quem era o livro. Era escripto por Swedenborg, o patriarcha dos theosophos do norte, o que levou mais longe as relações com o mundo invisivel. O livro intitulava-se: A sabedoria angelica da omnipotencia, omnisciencia, omniprezensa dos que gosam a eternidade, a immensidade de Deos.

Emma acordou de subito. Senti um estremecimento de terror, começava a comprehender a sua solidão. Eu mesmo tinha estudado a segunda vista, colligido alguns phenomenos de suggestão que se passavam no meu espirito, conseguira por uma excitação nervosa perenne a hypnotisação voluntaria.

V

Tambem no livro De varietate rerum descreve Jeronymo Cardan a faculdade que tinha de experimentar o extasis espontaneo, e de tornar objectivas as imagens creadas na sua mente: «Quando eu quero, vejo o que me apraz, e isto não só com o espirito, mas com os olhos, com essas{8} imagens que eu via na minha infancia. Mas agora creio que ellas são o resultado de minhas occupações. É certo que nem sempre possúo esta faculdade, comtudo não a tenho senão quando quero. As imagens que eu vejo estão sempre em movimento; é assim que vejo as florestas, os animaes, os diversos paizes e tudo quanto eu quero vêr. Creio que a causa de todos estes effeitos está na actividade da minha imaginação e n'uma vista penetrantissima. Desde a minha infancia tinha de commum com Tiberio Cesar o poder vêr na obscuridade mais profunda, como em pleno dia. Porém não conservei muito tempo esta faculdade. Apesar d'isso vejo ainda alguma coisa, postoque não posso distinguir bem o que vejo; e attribuo este effeito ao calor do cerebro, á subtileza dos espiritos vitaes, á substancia do olho, e á energia da imaginação.» (Lib. IV c. 43.)

É esta uma qualidade vulgarissima nos povos do norte, principalmente os insulares, conhecida sob a denominação de Second sight. Ahi a imaginação tendo pouca variedade de paizagem que a fecunde, volta sobre si o que ha edificado e exagera-lhe as proporções. Por isso as theogonias do norte são terriveis. As avalanches suspensas a precipitarem-se, os nevoeiros diffundidos por toda a parte como um sudario immenso e frio, a aurora dos polos a desdobrar-se esplendida, tudo faz sonhar de um mundo phantastico, escutar essas toadas vagas, indefiniveis dos espiritos que se annunciam pelo ressoar de uma harpa longinqua.{9} O dom da visão é commum; é assim na ilha de Ferroë. Que virgens se não ostentam n'uma apparição repentina, e que o vidente procura, sem nunca mais poder encontral-as! Balzac, o observador sem egual do coração, sentiu toda a poesia do norte no poema de Seraphita; é um mysterio, o enlace da philosophia e da poesia, um extasis indecifravel de Swedenborg, contemplado nas fiords da Norwega. O delirio de Seraphita é o problema incessante da percepção immediata; o seu amor é mais puro que o ideal de Dyotima, é elle que lhe dá a segunda vista.

Taishatrim e Phissichin são os nomes que em lingua gaëlica se dão aos que tem esta faculdade. Os factos observados são innumeros, o seu estudo é dos nossos dias. Kant combateu a doutrina visionaria de Swedenborg, mas não attendeu que este phenomeno physico era todo sentimental; viu no patriarcha dos videntes do norte um impostor. A vida exemplarissima de Swedenborg é um desmentido completo e irretorquivel aos argumentos d'esta ordem.

Como explicar a inspiração continua, a segunda vista? A alma paira entre dois mundos—o physico com que se relaciona pelos sentimentos, o psychico com que se relaciona pelos presentimentos; se é attrahida para o mundo dos corpos, predominam n'ella os instinctos, e as sensações, todas relativas, só lhe advém pela presença dos objectos; se a alma por um desejo vehemente se eleva do estado de anima ao de spiritus, os sentimentos{10} desprendem-se do nexo das relações terrestres, e conhecem tudo independente das sensações pela representação subjectiva. É o que acontece aos poetas, cantando a belleza de fórmas não sonhadas, a reminiscencia de harmonias não ouvidas.

VI

Emma estava n'aquella tarde tão affavel! tinha por certo a consciencia de ir em breve completar-se na essencia de algum anjo. As suas fallas eram como suspiros. Lançou-me um olhar interrogativo, de quem temia fazer-me uma pergunta indiscreta. Eu desconhecia-lhe aquella affabilidade de seraphim, costumado a vêl-a sempre aéria, desdenhosa do mundo, radiante como na transfiguração do Thabor. Apertei as mãos d'ella entre as minhas, queria tirar um som d'este instrumento celeste, cujo segredo de harmonia era só percebido pelos anjos. Se podesse desferil-o, havia de perguntar-lhe o motivo de tanta tristeza, a intensidade d'essa dôr tão intima, tão espiritual, que se não póde exprimir na materialidade phonica da palavra. Ella adivinhou o meu desejo:

—Tens uma vontade energica?—perguntou-me quasi a medo e de um modo sybillino. Seria uma phrase abrupta para qualquer, e inintelligivel até; eu porém que devo á actividade só d'esta{11} faculdade tudo quanto sou, as grandes dôres, os impulsos irresistiveis, as glorias sonhadas, a realisação dos mais exiguos appetites, que a encontro na intensidade absoluta do Fiat, que é Deus, que a vejo nos grandes factos do espirito, a Religião, o Direito e a Arte: na religião manifestando-se emotivamente na fé; no direito, no accordo dos contractos individuaes; na arte, no ponto onde os gostos diversissimos se harmonisam, isto é o bello; eu, repito, comprehendi aquella interrogação na sua plenitude. E começava a conhecer mais o poder da vontade porque acabava de observar o resultado do acto em que a exercera.

Emma fitou-me com um olhar profundo; o semblante era magestoso e santo, como o frontispicio de uma cathedral da Edade média; as flexas, as linhas architectonicas a infinitivarem-se para o alto, eram os seus cabellos; o olhar, o olhar que me opprimia n'esse instante, era mysterioso como uma ogiva sombria. Tive o medo do neophyto, quando ouve mugir a caverna, e escoar-se a brisa gelida e olorante pela fenda do penhasco, e quasi que se esvae em terra sem sentidos, ao vêr attonito as convulsões do hierophante. Emma perguntou-me se eu cria nas relações com o mundo invisivel. Hesitei um instante, depois volvi:

—Creio, mas não as sei demonstrar por uma fórmula, que, embora refutavel, tenha valor philosophico.—Ella ouviu-me com o pezar e serenidade de uma joven esposa na sua viuvez, que{12} ouve o filhinho a perguntar-lhe pelo pae. Depois murmurou, encostando a face sobre o meu peito:

—És tão novo ainda, e porque matas em ti já o sentimento pela reflexão? A reflexão é fria, é terrena, não comprehende sem decompôr para recompôr. Como se ha de ella elevar ao simples, ao absoluto, que tem por attributo supremo a indivisibilidade? A luz, que é incoercivel, não se espelha na face quieta do lago? O sentimento é assim; só elle te póde levar além das relações e das contingencias. A substancia é unica; esta essencia d'ella é que prende pela unidade a multiplicidade dos attributos. Todas as vezes que te absorveres na unidade que te allia como attributo ou modo á substancia, entraste na essencia de todas as cousas, porque o simples que actua n'esse momento em ti, é o mesmo em que tudo existe. Vibra em ti a harmonia universal.

E continuou com palavras quasi imperceptiveis. Estava em extasis, no extasis da abstracção, como o sentia Newton quando determinava a essencia de uma ordem de factos complexos, na lei que havia ficar eterna, e a que havia imprimir o seu nome. Tive vontade de lançar-me por terra, diante d'aquelle espirito incomprehensivel; precipitava-me se ella me dissesse como satanaz, quando arrebatou Jesus ao pinaculo do templo:—Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me.{13}

VII

Quando Emma saiu da sua mudez sublime, recostou-se sobre o meu hombro com uma graça infantil:

—Ainda não sabes porque ando triste? Olha, uma tarde, puz-me a escutar o murmurio de um regato; parecia-me ser uma musica interior. Tive vontade de saber o que dizia, de confidenciar com elle, de communicar minha alma, que aspirava n'uma sêde de amor. Ao trepidar mavioso da vêa crystallina, scismava, devaneiava, enleiada, embevecida. Adormeci. Pareceu-me então aquelle cicio, como de azas de um cherubim que baixasse a meu lado; via a claridade de alvura de suas roupagens longas, estava silencioso ao pé de mim. Mostrava a expressão da serenidade augusta, uma apparencia que consolava. Acordei, e o mundo affigurou-se-me um desterro, a vida um carcere, tinha uma impaciencia de voar, de fugir, o desejo irrepresivel de tornar a vêr o semblante risonho d'aquelle que me veiu mostrar o mundo intransitavel para a vida, como sarçal espinhoso. De outra vez appareceu-me, brilhante como Iahveh na sarça ardente. Era sempre silencioso. O amor emmudecia-me diante d'elle, quiz seguil-o na visão que se esvaecia lentamente, mas o corpo estava preso aos limos terrenos, como o cordeiro que se prende nas urzes do matagal. A ancia do extremo esforço despertou-me.{14} Foi assim que nasceu essa melancholia profunda, concebida diante do impossivel. Mais tarde conheci o mysterio da vontade; isolei-a em mim, para revocar o ente dos meus sonhos á realidade de um instante. Quasi que me abrasava na intensidade do querer. Elle appareceu-me mais triste. Perguntei-lhe se amava? Sorriu-se. Que era preciso para completarmos uma mesma essencia? o sorriso converteu-se em uma alegria doida, e disse-me vagamente—vôa da terra. Nunca mais tornou a visitar-me no desolamento em que vivo. A vida assim é o vegetar do lichen na humidade das lagrimas derramadas de hora em hora. Porque não hei de voar da terra?

VIII

Ouviu-se trindades n'esse instante; cerrava-se a noite, frigida; o luar vinha saudoso. Emma pediu-me para deixal-a só. Por alta noite via-se a luz derramar-se pela vidraça do seu quarto, luz viva, silenciosa, como da alampada do philosopho hermetico surprehendendo a natureza em algum dos seus segredos mais reconditos.

Emma lia no livro predilecto, que eu deparára aberto sobre o regaço. Pouco depois começou a alvorada. Quando o silencio era mais solemne e a natureza inteira parecia reconcentrar-se em santos mysterios, sentiu-se em casa um estrondo surdo, como o baque de um corpo morto, depois{15} o bracejar, de quem se debatia nas vascas do paroxismo. Ergueram-se á pressa, foram apoz o ecco. Era no quarto de Emma. Seria algum pezadello longo? A porta cedeu á promptidão do soccorro. Foram encontral-a em terra, morta, a pouca distancia do fogão, que saturava o ar ambiente de exhalações carbonicas. O corpo já estava frio; o rosto tinha a pallidez do marmore. A pouca distancia d'ella estava aberto o livro fatal das exaltações mysticas de Swedenborg.

Lia-se esta phrase profunda:

«A innocencia dos céos produz uma tal impressão na alma, que os que são affectados d'ella guardam um transporte que lhes dura toda a vida, como eu mesmo experimentei. Basta talvez ter uma minima percepção para ser para sempre mudado, para querer ir aos céos e entrar assim na esphera da Esperança.»

Seguiam-se outras palavras. Tive medo de lêr mais, porque começava tambem a sentir a seducção da melancholia e reconcentração subjectiva, que leva ao suicidio.{16}
{17}

O véo

Tive apenas um amigo na infancia.

Sinto abrir este conto com a minha personalidade; e, sem pretenções a humorismo, nem a estylo digressivo, conheço que a pessoa de um auctor inculcando-se na sua obra produz o effeito desagradavel, que o senso esthetico original de João Paulo nota no quadro em que o pintor agrupasse tambem a palheta, o cavallete e os pinceis. O valor da personalidade pouco é; os antigos comprehenderam-n'a perfeitamente, quando deram o nome de persona á mascara que o actor trazia para reforçar a voz. A personalidade que se toca, serve para o trato da rua; a individualidade, o caracter, revelado na vontade, são immanentes no livro, são o livro. Antes porém de fechar o parenthesis ahi vão algumas linhas sobre a pessoa do meu unico e primeiro amigo, um alter ego, ou fidus Achates, como diriam{18} dois estudantes de selecta. Não nos démos de repente. Tinhamos o mesmo nome de baptismo, faziamos annos no mesmo dia, começámos a versejar ao mesmo tempo; a affinidade electiva entre nós não provinha d'estas coincidencias, nunca reparámos n'ellas; era uma amizade de terror, respeitavamo-nos. Na eschola fômos sempre antagonistas; quando passámos a estudar latim, ficámos surprehendidos ao vermo-nos algemados ao hora, horæ. Ainda os mesmos desforços, o mesmo orgulho. Então já nos consultavamos sobre alguma duvida de syntaxe, como de potencia a potencia. Mais tarde encontrámo-nos sobre o mesmo banco a ouvir as prelecções estupidas de logica, a logica que nos havia de tornar máos, capciosos, ergotistas. Já não nos temiamos, eramos amigos, tinhamos necessidade um do outro. Depois vieram as confidencias estreitar mais esta affeição. Foi elle o primeiro a fazel-as. Não sei se era amor, compaixão ou cynismo a primeira aventura que me contou. Era assim:

«Eu tive uma prima, não sei em que gráo, culpa das subtilezas canonicas. A pobre criança possuia uma morbidez voluptuosa no olhar, não os tirava de mim. A côr morena dizia tão bem com as linhas nitidas da physionomia arabe, que ella sabia animar com um ár doloroso de uma melancholia expressiva, que se lhe reflectia na face! Eu ficara orphão de mãe e costumara-me a brincar sósinho; ella procurava-me na minha solídão, sentava-se junto de mim; o seu olhar incommodava-me.{19} Mas tinha medo de fugir-lhe, doía-me esta indifferença e para disfarçal-a trepava acima das arvores carregadas de fructos do pomar onde passavamos o verão, e de lá deixava cahir aquelles que mais se douravam com os raios do sol de agosto, os que me expunham a maiores perigos. Ella aparava-os no regaço com a affabilidade com que se queria associar aos meus folguedos.

«Afinal teve vergonha de mim; córava, escondia a face entre as mãos, ficava pensativa e depois fugia-me. N'este tempo contava eu algumas lições de desenho; os meus arabescos tinham uma frescura de innocencia, uma rudeza que parecia uma creação pura arte medieval. Eu tinha a monomania de esboçar cabeças. Não sei quem na familia, me pediu que fizesse o retrato d'ella. Fil-o. O caso deu-lhe uns longes de similhança, tive vergonha da verdade; quando ella me agradeceu com um sorriso timido, eu rasgava o papel com a crueldade de uma criança que brinca. Não a tornei a ver n'aquelle dia, escondera-se a chorar. Não tinha culpa d'esta frieza brutal; a falta de carinhos perdidos logo no berço, a verdade d'esse verso eterno de Virgilio:

Est mihi pater domi et injusta noverca

tornaram-me taciturno, incredulo antes de tempo. Ás vezes obrigavam-me a brincar com ella. Uma vez fômos todos banhar-nos no Atlantico. A pobre criança tambem foi. As marés eram gigantescas;{20} era dia para mim de um orgulho immenso, gostava que me vissem nadar; mostrava uma superioridade minha. O acaso seguia-me o desejo. Uma onda envolveu no seu marulho a infeliz Branca; no refluxo levou-a comsigo. Desfalleceu de susto e foi levada pela vaga, como Ophelia na corrente. Quem sabe se ella no seu coração tecia alguma corôa para mim.

«Abracei-a pela primeira vez, impellido por uma força interior; sustive-a nos braços, estava fria, pallida. Quando abriu os olhos teve vergonha de mim; era já o pudor de senhora. Trouxe-a sem custo para a praia, e continuei em carreiras no dorso da vaga, que se encapellava. Fôra o meu primeiro passo para homem.

«N'esse mesmo dia brincámos, jogando o anel, um divertimento infantil, de que ainda guardo saudades. N'este folguedo de crianças o que tem o anel é sentenciado pelos demais a levar beijos e abraços, ou a dal-os, segundo o capricho. Tinha o anel a filha do feitor que brincava comnosco, Annita, uma rapariga de uma candura estreme. Branca pediu-lhe em segredo que ao percorrer a roda deixasse cair o anel entre as minhas mãos. Assim se deu. Um perguntava o que promettiam a quem tivesse o anel. Cada qual se lembrou de uma prenda innocente e insignificativa; Branca prometteu um beijo e um abraço muito apertado.

«Eu não devia contar-te mais, porque me sinto infame! Este beijo perdeu-a para sempre, como o beijo de Paulo e Francesca di Rimini. Branca foi{21} crescendo, tornou-se formosa á luz de uma esperança fugitiva, como a flôr de um vaso, quando recebe, ao estiolar-se, o calor ephemero do ultimo raio do sol da tarde. Quando ella me sorriu com amargura, e córou de sua queda, sorri tambem por compaixão, illudi-a. Que fazer, se eu era tão novo, inconsciente, e queria divertir-me, gosar o mundo?

«Uma vez tinha eu voltado pela ante-manhã de uma festa louca. Dormia a somno solto, prostrado pela fadiga, esgotado da orgia desenfreada. Senti uma mão fria passar-me de leve nas faces, acordei.

«Era ella! Appareceu desmaiada, como a vi uma vez ao luar silencioso, com uma côr que lhe realçava a candidez, e disse-me:

—«Vim vêr-te na despedida do tumulo. Desde que adoeci nunca mais me appareceste. O esquecimento é frio e pesado como a lagem sepulchral. Eu não queria dizer-te isto, não quero magoar-te; perdôa. Olha, hoje acordei de um sonho tão lindo! deu-me forças para levantar-me do leito e vestir-me de branco para vir contal-o a ti só. Como não choraria minha mãe que me vela se o soubesse! Não sei se velava, se dormia; minha alma parecia voar, suspensa n'uma como cadencia, vaga, quasi imperceptivel, confundia-se com ella até perder-se no céo. Acordei de subito; restava-me só a illusão. Olhei em roda; a alampadasinha tornava a solidão pungente, augusta; pavoroso o silencio do meu quarto. Comecei{22} a lembrar-me de ti, dos passados tempos; estava já na terra. Foi quando descobri a meu lado uma apparencia angelical, a falar-me de mansinho uma linguagem que eu mal entendia: que o Senhor o enviara para chamar-me. Eu não pude voar, voar com elle, e sinto agora que a alma me foge; venho dizer-te adeus.

—E o que lhe respondeste?

—Elle continuou:

«Disse-lhe que os sonhos mentiam sempre, que elles a matavam.—«Não são os sonhos que me matam, gemeu a desgraçada, é a realidade, a realidade. Bem o sabes, e esse que tudo vê. As recordações são para mim como um remorso. Que noites, que vigilias inteiras a pensar em ti! cada palavra tua, que eu decorava, era um poema de amor e esperança; ao repetil-as na mente diziam-me quanto a alma anceava, e mais ainda, mas enganaram-me sempre. Lembras-te d'aquella noite? Oh! meu Deus, meu Deus. Não sabes quanto me fizeste soffrer! Não conheceste a profundidade do golpe quando o descarregaste! Disseste-me essas palavras só para perder-me. É impossivel que isto te não dôa? Quando me appareceste n'aquella noite era o luar tão sereno, tudo confidenciava comnosco. Estava adormecida quando chegaste. Depois de me estreitares nos braços e beijares as faces geladas pelo rociar da noite, porque sorriste de um modo incomprehensivel? Descobriste-me que não casavas commigo, que outro havia polluido a minha candura!{23} Era uma blasphemia brutal. Deixei-me cair em teus braços, sacrificando-te a virgindade para que a reconhecesses. Desde essa noite não me tornaste mais a amar. Illudi-te? Porque assim me fugiste? Uma lagrima só rehabilitava-te diante de Deus. É tarde, muito tarde. Vim só para despedir-me e perdoar-te. Adeus.»

—E tu que lhe respondeste?

«Voltei-me sobre o outro lado, e continuei a dormir.

—Prosegue.

«Foi um pezadello atroz aquelle somno. Julgava-me em uma orgia immensa, na hora ominosa do sabbat nocturno. Um bando de mulheres volteava reunido em uma corêa desenvolta, n'um tripudio infernal, ao redor de um carvalho lascado pelos raios que se cruzavam a espaços na solidão e escuridade absoluta da noite. Dançavam como possuidas do mesmo furor que inspirava a corneta de Oberon. Quando eu ia mais arrebatado pelos requebros voluptuosos, enlaçado a um par ligeiro e flexivel, senti um leve suspiro a meu lado, que se perdeu nos áres. Era como o segredo de uma magoa que eu bem conhecia. Parei. Adormecera a ler uma ballada dos peregrinos do Rheno contada por Bulwer. Junto a mim descobri uma figura de mulher linda, etherea; o semblante tinha a serenidade de uma grande agonia que cauterisa, uma tristeza mais vaga do que a impressão de saudade que a lua desperta quando se reflecte n'uma lagoa quiéta. Era como um seraphim{24} quando chora. Não pude olhal-a; a candura do seu antigo amor exprobrava-me o cynismo. A viração que ciciava não repetiria tão brandamente o que ella disse:

—«Não sabes como te amo ainda além da campa! o gelo do sepulchro não pôde apagar o fogo em que os teus olhos me abrazaram. Esqueci o teu desprezo para perdoar-te. Para que havia ter mais esse flagicio na eternidade? Que destino, que felicidade a nossa, que regosijo no céo, se não houvesses ludibriado este amor! Nossas almas absorver-se-hiam na essencia de um anjo, enlevadas n'um sonho de harmonia, até despertarmos no empyreo. Assim precipitaste-me na mansão das penas e soffrimentos, onde o meu espirito se apura. O amor terreno tenho-o expiado no fogo. Vês este cendal de alvura transparente? estava quasi a tornar-se brilhante de gloria! Pedi a Deus este momento tão breve para poder agora ver-te; o goso fugitivo de contemplar-te, a esperança de te achar triste, scismando em mim com pezar e saudade, a troco de mais cem annos de novos soffrimentos! Cem annos mais, depois de te encontrar nos braços de outras descuidado, rindo desvairado n'uma orgia dissoluta. Oh, mas eu não sei senão perdoar-lhe.»—E desappareceu-me, continuou elle, como um meteoro fugaz, quando passa nos céos, e deixa após si um rasto luminoso. Acordei.

«Em casa ouviam-se gritos, alaridos, como de um successo repentino e funesto. Fui a vêr. Disseram-me{25} que Branca desapparecêra. Cheguei a convencer-me da realidade do sonho, que um anjo a levára comsigo. Perguntei debalde. Passou-me pela mente um presentimento horrivel. Branca costumava ir sentar-se sobre uma rocha que se debruça sobre o mar, e em cujas furnas as vagas restrugem com um stridor surdo, como o anceio do ultimo esforço n'uma lucta desegual. Protegida pelo nevoeiro da madrugada, mais veloz que a ondina da mythologia slava, a pobre fôra saciar os pulmões ralados da febre lenta que a devorava. Houve quem a visse dependurada na aresta dos fraguedos, o véo branco que levava fluctuar ao vento, como n'um adeus de despedida. Ella sentira n'esse instante a attracção do abysmo, lembrou-se d'aquella tarde de agosto, em que eu a salvara, trazendo-a com um abraço á vida; quiz morrer com a recordação mais doce que levava do mundo. Precipitou-se. E o mar murmurava sereno e manso, como a embalar-lhe o seu ultimo somno.

«Comecei então a sentir uma paixão por ella, depois de morta; se a terra a tivesse escondido, eu a iria arrancar ao repouso sagrado da sepultura, beijal-a, animal-a com o fogo do meu delirio, despedaçal-a n'estes braços convulsos, e cair tambem inanime. Queria sentir bem junto do peito o contacto gélido de um corpo que eu tantas vezes apertei, das faces que eu devorava, quando ella se dava aos caprichos da minha vertigem. Havia n'este amor um pensamento de halucinado,{26} um tanto de selvagem, de monstruoso; impellia-me uma inquietação continua, sentia em mim um como ranger de puas do remorso, a voz que interroga Caim. Fugia, não queria consolações. Eu ia sentar-me tambem na rocha escarpada, a vêr o mar, procurando a serenidade que me inspirava a contemplação do sepulchro da minha amada. Vinha visital-o, á busca d'esse allivio de que fala o poeta do Oriente.

«Eram decorridos já tres dias, não se vira mais o corpo de Branca; o mar queria-o para si, mas eu tinha uma vontade fervente, absoluta, o desespero de tornal-a a vêr linda, roxa, núa, desfigurada. Era o mais que podia soffrer. Ia a maré na vasante, no fim da tarde, as ondas gemiam brandamente no areal deserto, as virações da noite sopravam frias, humidas das bandas do poente. Quando desci da rocha escarpada, encontrei inesperadamente o corpo de Branca estendido na area. Era uma criança descuidada, adormecida; a onda que a tinha despido para namorar-lhe a alvura do corpo, viera deposital-a na praia. Ia a precipitar-me para ella, unil-a a mim no frenesim d'essa loucura. Tive medo! recuei sem encaral-a. Temi profanal-a com a vista; estava quasi núa, de costas, com os olhos no céo, como pedindo á noite que viesse recatal-a no seu manto de trévas. Quando tornei junto d'ella com o lençol para a envolver, senti uma ancia de passamento, a lucidez de quem entrevê a eternidade: conheci que o cadaver de Branca se voltara{27} de bruços, furtando á vista profanadora o verticello pudibundo da flor que eu fizera pender sobre o caule e cahir emmurchecida. O inexplicavel deixou-me um terror que ainda me dura...»

Não tive animo para lhe pedir que continuasse.{28}

{29}

A estrella d'alva

(CONTO MARITIMO DO SECULO XVI)

N'isto andava tudo, que se não poderiam pôr os olhos em parte onde se não vissem rostos cobertos de tristes lagrimas, e de uma amarelidão, e trespassamento de manifesta dôr, e sobejo receio que a chegada da morte causava, ouvindo-se tambem de quando em algumas palavras lastimosas, signal certo da lembrança, que ainda n'aquelle derradeiro ponto não faltava dos orphãos e pequenos filhos, das amadas e pobres mulheres, dos velhos e saudosos paes que cá deixavam, etc.

Hist. tragico-maritima, t. I, p. 55.

O sol esmaltava as côres limpidas do horisonte com uns cambiantes de purpura e de azul, cujo cariz incompleto e vago reflecte a melancolia suave em que a alma se concentra n'essa hora fugitiva da tarde. O horisonte fechava-se lentamente, como o véo de um templo que se cerra. As virações travéssas da noite volitavam encrespando a face trémula das aguas, que lhes respondiam ás caricias inquietas, confidenciando com um murmurio sonoroso e confuso. O galeão soberbo da India singrava{30} ufano, buscando em prôa a terra querida da patria; levado nas azas das monções propicias, a vela branca desfraldada aos ventos, tinha o garbo da garça altaneira que se libra vaidosa por sobre as ondas, que ella vae roçando de leve. A flamula ondulante, hasteada no tope do mastro de mezena, serpeava nos áres como em adeus silencioso ás ribas odoriferas do Oriente, a despedida ao paiz dos sonhos e das maravilhas. A natureza como que se absorvera nos encantos d'esta hora; havia um segredo intimo em cada toada perdida d'este concerto do declinar do dia.

Longo tempo um mancebo encostado á amurada do navio, com os olhos fitos na corrente das vagas, permanecêra absorto n'um scismar incessante, como quem atava na mente as apparencias de um sonho mentido, como quem procurava alentar a ultima esperança que prende á vida, e que é como a hera das ruinas. Conhecia-se-lhe na respiração comprimida no peito, que offegava de cansaço, o esforço acintoso com que procurava afastar da lembrança um sentimento funesto.

A pallidez retincta nas faces cavadas pelas insomnias longas e afflictivas, era a expressão dos pensamentos tenebrosos, confusos, incoherentes, que vinham povoar-lhe a anciedade das vigilias. Quem o visse sentiria uma dôr egual áquella, uma vontade irresistivel de entornar-lhe em sua alma o balsamo das consolações, com a prodigalidade do affecto com que a moça desenvolta de Magdala vinha derramar aos pés do divino{31} Mestre os perfumes inebriantes da sua urna de alabastro.

Quem o visse na mudez expressiva d'aquelle desalento, no desamparo e soledade de todas as alegrias da vida, sentia-se levado para elle, como por um condão fascinador, que ás vezes possuem certos olhares que ninguem póde fitar e de que se tem medo. A brisa fresca da noite, que soprava do poente, como trazendo-lhe o presagio do ocaso de suas esperanças, vinha volatilisar a lagrima timida e ingenua que tremeluzia viva na pupilla scintilante.

A este tempo appareceu sobre o convés do galeão alteroso um outro vulto, todo armado contra a rajada asperrima da noite, que se ia cerrando:

—Ainda aqui, Fernão Ximenez? embebido n'esse longo scismar em que o passado se te affigura doloroso e feio? Para que foges de teu irmão? Bem vês que eu procuro distrair-te d'essa agonia lenta que te vae minando a essencia debil da vida, d'esse espasmo da atonia que produz em ti a mudez do sepulchro. O que tens tu em uma vida de criança, innocente, sempre desprevenida, para que o occultes a teu irmão, ao amigo que soffre com o teu soffrimento, e que exulta com as tuas alegrias? Uma ave, quando é levada para um paiz distante, longe do ninho que lhe ouviu balbuciar os primeiros trillos de amor, quando lhe falta a bafagem tepida das auras em que se espanejava contente, desfallece á{32} mingua, prisioneira, ralada pela saudade pungitiva que lhe amofina o sêr. Tu, pelo contrario, á medida que os aromas quasi imperceptiveis da terra abençoada da patria nos vêm dar força para affrontar as tormentas escuras, as cerrações e os cabos perigosos, perdes o animo ante uma dôr imaginaria, e deixas-te apossar de uma ancia, que um instante só de reflexão tranquilisaria. Vamos, serena o teu espirito; seja-te o meu coração o porto almejado onde encontres abrigo. Que receias pois? temes encontral-a na volta desposada, nos braços de outro? Conta-me a verdade toda; amas?

—Se com vinte annos apenas haverá quem não tenha sentido ainda esse desvario divino, que acorda de subito em nós todas as potencias da alma, que rasga brilhante a manhã de um eden terreal, dando realidade á vida, e que a um tempo vibra o estertor e o cicio horrivel dos que se confrangem no barathro do desespero que elle gera! Eu amo, sim. É um amor que tem purpureado de risos todas as horas que me absorvo a pensar n'ella. Para mim é o resumo de todas as bellezas do mundo. Onde a vista depára uma apparição grandiosa, deslumbrante, ahi sinto uma reminiscencia d'ella; ás vezes procuro em vão formar na mente o composto do semblante engraçado, quero tel-a presente pela imaginação á minha idolatria; mas a phantasia não póde reunir em uma mesma auréola de encantos tudo quanto ha de mais puro no céo e na terra. Eu estou doido. É{33} o frenesim d'este amor que me enlouquece. Eu não a vejo, nem sei mesmo já se existe, mas sinto-a como a essencia de um licor suavissimo e volatil, que inebria a distancia os sentidos. Ella fluctua-me pairando ante a vista, como um nevoeiro da madrugada que se esvaece nos áres ao romper da claridade, e de que o sol faz realçar a alvura esplendente. Ella nunca me disse que me amava. Quando só em pensamentos a escuto, a dizer-me segredos intraduziveis, parece-me a bayadera indiana requebrando-se flascida, com uma morbidez encantadora, a voltear brandamente ás vibrações remotas das gandharvas, instrumentistas do paraizo. Eu vôo na mesma ondulação de harmonia, e sonho um goso indefinivel, que me exacerba mais as angustias cruciantes, quando desperto á realidade. Eu não sei mesmo se me ama. Costumado a brincar desde criança, unindo as nossas orações infantis em noites de tormenta, quando seu pae andava sobre as aguas, esta confiança torna impossivel o mysterio, que alimenta todo o amor.

—«Aldonça! repetiu desapercebidamente Gaspar Ximenez;—a mesma, a que me torna aguerrido, audaz para affrontar estas regiões nos términos do mundo; a que jurou um dia ser minha e me prometteu a mão de esposa, que eu beijei e apertei tremulo, convulsivo!

Fernão Ximenez comprehendeu estas palavras. Foram como um clarão subito, que lampeja e cega. Os olhos arrasaram-se-lhe de agua, sem as{34} lagrimas poderem rebentar. Era incrivel o que se passava em sua alma. A colera, a alegria, a contrariedade das aspirações mais ardentes da vida, o desinteresse sublime de um coração generoso debatendo-se tudo n'aquella alma deserta de esperança! Gaspar Ximenez continuou, como delirando:

—Amas tambem Aldonça? Como ella é meiga e docil! É a rola innocente do sacrificio. Ella ha de querer a tua felicidade. O que eu disse era uma loucura. Amo-a como irmã apenas; ama-a tambem, mais do que eu, e será tua.

Ao ouvir estas palavras, proferidas com uma accentuação dolorosa, por uma abnegação quasi impossivel, Fernão Ximenez não poude represar mais tempo as lagrimas, que lhe rebentavam ferventes dos olhos. Os soluços entercortaram-lhe a voz. Elle jurára dar-lhe tambem um dia a maior prova de dedicação.

A este tempo, ouviu-se um berro do gageiro gritando da gávea:

—Mestre Fernão Mendonça, um negrume espesso se alcança no horisonte, que levamos, pois que a não ser a cerração do cabo, mais me parece presagio de tormenta.

O mar começava já a cavar-se. O piloto mandou logo ferrar o traquete, cassar a escota á bijarrona, e que o homem de quarto amurasse mais para sotavento, antes que a borrasca rebentasse de chofre. Instantes depois a marinhagem tripulava afanosa sobre o convés; a noite estendera{35} pela amplidão dos mares o seu manto gélido de sombras, como um sudario de morte. O vento frigido sibilava na enxarcia; parecia uma serpente escamosa quando assovia na floresta intrincavel. A orchestra da procella rompia sonorosa e esplendida, como a retrata Virgilio n'um incomparavel hemistichio.

—Por San-Thiago, disse Fernão Ximenez, saindo da mudez do espanto em que o deixára a longanimidade do irmão;—adivinhava-o o diabo do gageiro, pois já as ondas guidam os castellos de prôa, e lambem a ponta do gorupés. Diabo! que se tivesse mando no timão amurava mais para sota-vento, e talvez que escapassemos á furia da tormenta.

Continuava o ennovellar das vagas como grandes cordilheiras sacudidas por um vulcão subterreo. Instantes depois, o moço descia para o porão, e as marés gigantes em vagalhões, salvavam o baixel. Soltos, desencontrados dos quatro pontos, os ventos cáem de estouro sobre o galeão.

—Que San-Thiago, o bom apostolo das Hespanhas, seja comnosco, murmurou o homem do leme, ao apagar-lhe uma maré a luzinha da bitácula. Que o bom Jesus dos mareantes nos ampare n'esta tribulação, Ave Maria!

A tempestade recrudescia surda á voz do pobre homem de quarto, que não sabia já o rumo que levava. Pouco depois, as ondas envolveram-n'o no seu marulho, e o sorveram no pelago insondavel.{36}

Sem governo, o galeão altivo, cruzando-se sobre duas ondas que rebentaram sobre elle, estremeceu como aluido pelo cavername e costado; o mastro grande, gemendo sobre si, estalou, e sumiu-se na corrente das aguas. Por instantes ninguem respirou. Só o capitão Fernão de Mendonça, conhecendo que o temporal amainara, gritou com intrepidez:

—Salta arriba!

A tempestade amançara consideravelmente; via-se espelhado em todos os semblantes um sorriso de esperança, illuminado ao clarão diaphano do santelmo, que reluzia no tope dos mastros.

—Salvé! salvé, oh Corpo Santo!—gritaram todos possuidos de um regosijo expansivo.

—Podemos agora contar com a bonança,—disse a voz animadora do padre capellão,—que o sacro fogo de Santelmo se nos mostra risonho e mensageiro de paz. Oxalá que sem mais desgraças possamos dizer como o malaventurado soldado das Indias, o bom Luiz de Camões:

Vi nos ceus claramente o lume vivo,
Que a maritima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.

—Mestre Fernão de Mendonça!—interrompeu o gageiro,—o galeão tem um enorme rombo na prôa, e d'aqui a meia hora estaremos todos no fundo, se vos não apraz lançar esta lancha ao{37} mar.—E foi-se cantarolando aquellas trovas do Auto da barca do Inferno, do popular Gil Vicente:

Á barca, á barca, boa gente,
Que que queremos dar a vela;
Chegar a ella, chegar a ella.

O tom frio com que dissera a ruim nova fazia julgal-o filho da rajada, como se cria nas incarnações da mythologia grega. Ouvida a falla do capitão, foram saltando todos para o batel. Pouco depois a náo soberba da India começara a afundar-se. Ao vêl-a sumir-se, o padre capellão lançou-lhe a benção, e proferiu uns versiculos da oração dos mortos. A mudez tornava mais sublimes estes instantes. Era como na morte de um heroe, que baqueia ferido no auge da luta. As lagrimas borbotavam dos olhos dos velhos mareantes ao perderem para sempre aquelle companheiro das refregas. O batel não podia com a tripulação toda; o mar estava brazeiro e a cada momento entrava-lhe pela borda.

Assim foram andando á mercê das correntes, sem que transluzisse no horisonte escuro um clarão de esperança. O ranger dos remos fazia lembrar de hora em hora o estertor de uma vehemente agonia. O mar e a fome infundiam n'alma o tedio da vida.

O mar continuava roleiro. A este tempo uma onda encapellada rebentou quase de choque sobre{38} o batel. Era preciso alijar para alivial-o. O capitão deitou sortes, para vêr os que iriam ao mar. Caiu a sorte sobre o intrepido gageiro. Pero Gutterrez, um velho marinheiro, atirou-se de livre vontade. Fernão Ximenez parecia de tal modo embebido na dor funda que alentava n'alma, que não sabia o que se passava em volta de si. A sorte fatidica caira tambem sobre o irmão. Despertou da abstracção dolorosa, ao abraço fraterno extremo. Repentinamente comprehendeu tudo com a lucidez de que o espirito se apossa nos momentos solemnes da vida. Deteve-o um instante:

—Uma vez sacrificaste ao meu amor todas as tuas esperanças! É bem que o reconheça; agora estimo a vida só para dal-a por ti.—E desprendeu-se dos braços do irmão, com a resolução do desespero, e arrojou-se á voragem.

Gaspar Ximenez permaneceu attonito, interdito ante o estranho heroismo. O sol ia já alto, o céo tornava-se limpido e sereno, o horisonte abria-se immenso, como a expansão de um pensamento de alegria. Depois de haverem remado bastante ainda, descobriram-n'o a distancia seguindo extenuado o batel. A energia sublime do seu heroismo e dedicação commovera todos os corações. Quizeram unanimes recebel-o, estava já sem forças, quasi immovel. O amor fraternal resplandecera com espanto. Os membros regelados começaram de novo a sentir vida com a reacção do calor.

O mar ia amansando progressivamente, e antes{39} do cair da noite viram com pasmo e alegria doida alvejar uma vela. Saudaram-na com a celeuma do regosijo. Quando passados dias chegaram a beijar a terra de seus paes, Fernão Ximenez foi professar, cumprir o voto n'um mosteiro, para não tornar o amor do irmão impossivel.{40}
{41}

Lava de um craneo

Quantas risadas se escutam perdidas no ár, que ás vezes são um punhal invisivel, brandido por mão diabolica, um veneno propinado a occultas, que infunde na vida o desalento, o tedio, a indifferença por todos os grandes sentimentos que nos agitam e nos elevam! O riso é a expressão mais energica do desespero, quando elle tem um timbre satanico, que gela, e se repercute na alma como o estampido de uma detonação que fulmina; então, mata mais do que a ponta de um estylete penetrante, embebida no aconito baço, que fere e não deixa vêr a cicatriz. Quem não ha soltado uma vez na vida uma d'essas risadas, que não seja uma loucura, uma impiedade, uma provocação, uma mentira, talvez um crime? Um dia ri tambem d'esse modo; é remorso que ainda hoje me punge.{42}

Eu vivia ignorado, obscuro, trabalhando na minha agua-furtada, alimentado pela febre da aspiração, pelo pensamento de exageradas vigilias; era a contumacia da desesperação que me dava forças, e me fazia caminhar incansavel sem saber para onde. Este vacuo da existencia amputava-me para todas as distracções, via em tudo uma futilidade, sentia-me máo, com uma vontade de torturar, de contradizer, de estar sempre em hostilidade com todas as idéas que não fossem as minhas. A dialectica fôra para mim uma arma, que ao passo que a manejava com mais presteza, me tornava mais intolerante. A solidão déra-me por um excesso de vida subjectiva uma susceptibilidade tactil, tornava-me perscrutador, analysta; pretendia lêr em todas as physionomias, deprimil-as ante a minha consciencia, como um juiz boçal, que não póde convencer-se de que o réo que interroga esteja innocente. Saía para as ruas, a luz opprimia-me, a multidão atropellava-me, sentia-me olhado, como nos tempos do absolutismo theocratico aquelle que vergava ao peso do anathema.

Um dia saí para respirar o ár livre de uma bella manhã de verão; uma veia sarcastica, provocadora, não deixava harmonisar-me com a serenidade da natureza. Vinha pelo mesmo passeio um sujeito magro, fumando uma ponta de cigarro. A distancia ainda comecei a analysal-o; cada vez que o fitava sentia em mim uma hilaridade irrepressivel; parecia-me uma cara insignificativa.{43} De mais perto representava-me uma incarnação do grotesco, do comico objectivo, como se encontra nas goteiras das cathedraes da Edade media. Trazia uma vestimenta velha, esfarrapada, que produzia uma antithese perfeita com a sua edade. Mais ao pé, vi que tinha um fulgor de vida nos olhos, o movimento, a expressão de uma intensa actividade interior. Eu tinha caminhado para elle com um riso mofador, com pretensões a observal-o, este casquilho em quinta mão, e fui-lhe ao encontro a pretexto de accender um charuto.

Conheci então o valor da phrase com que o povo exprime um desgosto intimo e repentino: caiu-me o coração aos pés. Via n'aquelle fato esfarrapado de escovado, a lucta de uma alma, que arcava com a miseria, de um homem, que aspirava á decencia, e que proseguia temeroso, como conhecendo que a vestimenta o degredava e o destituia de importancia, que um descuido qualquer o expunha aos apupos da vadiagem. Assim explicava commigo aquelles áres affectados de elegancia, que despertaram a risada, que resôou só dentro em mim. Era tambem criança, tinha uma figura trigueira, uma certa vivacidade de movimentos, uma timidez que se não accusa e se transforma em reconhecimento á menor consideração.

Pedi-lhe lume com um tom levissimo de ironia. A affabilidade desarmou-me; o coração doeu-se ao primeiro impulso de sua crueldade. Tinha{44} vontade de confessar-me seu amigo; era-o n'esse instante, com todas as veras de alma.

Dias e noites a imagem do pobre rapaz a fluctuar-me na mente; eu estava indisposto commigo, procurava equilibrar a vida de modo que podesse alcançar essa virtude sublime da bondade, filha quasi sempre da serenidade e da superioridade de espirito. Era ainda cedo para mim. Não tornára mais a vêl-o: julguei-o uma apparição diabolica, que viera inverter uma acção innocente da vida em uma preoccupação, que me perturbava a tranquilidade.

Uma noite, saia eu do theatro: o frio regelava os membros, a escuridão era profunda como as trevas visiveis de que falla Milton. Esperei á porta que escampasse. Por um acaso feliz deparei a meu lado com o mesmo sujeito que um dia soube inverter-me um riso insignificativo em remorso. Tinha ainda a mesma compostura, esse apuramento que fazia rir os que não soubessem penetrar os dolorosos mysterios da sua existencia.

O pobre rapaz, não sei que franqueza leu no meu rosto, que se chegou para mim. Poz-se a commentar o espectaculo; pouco depois, estiou e partimos juntos. Até aqui nada de interessante.

—Quanto mais estudo (disse-me elle, cansado de andar e de fallar), tanto mais se me alarga a solidão do espirito; cada dia encontro menos pessoas com quem prive, caminho, e a cada passo me vão ficando mais longe. Quem não entender{45} isto e se revoltar contra a minha frieza, dirá que é orgulho, e egoismo até; os que se doerem de mim dirão que é misanthropia. A meditação é como um segredo, que pésa quando não ha a quem se conte; mas se eu encontrasse uma mulher a falar-me de amor, sacrificava-me a ella, para vêl-a mais ditosa que a pobre Frederica de Göethe. É a primeira vez que conversamos. O meu amigo deve estranhar esta liberdade; sou assim, amo a franqueza quando não busca rodeios para convencer, e tem a força da expansão sincera, a ingenuidade simples, que não sabe alliar a amisade com as pragmaticas. A franqueza d'este modo admira-se, e eu tanto mais, porque a tenho visto sempre usada como pretexto para dizer insultos impunemente. Acho-me solitario no meio da sociedade, e tenho ainda não sei que terror de me vêr perdido, atropellado entre as massas. Vivo assim desde criança; como criança fui tambem poeta, cantei porque tinha medo, queria distrahir-me. Eu chamo-lhe meu amigo, porque me escuta; era quanto bastava para lhe ficar reconhecido. A maior parte das pessoas que me ouvem riem-se de mim. Falo sobre a genese das religiões, a origem dos governos, as relações da arte com a sociedade, todos os grandes problemas que nos agitam; abanam a cabeça, e dizem com ár compassivo: «Utopias dos vinte annos.» Outras vezes, descrevo a formação da terra, procuro explicar as evoluções da anthropogenia com a cosmogonia, o aperfeiçoamento{46} dos sêres e a sua decadencia pelo gráo do calor que a materia conserva e vae irradiando; obedeço á pressão da causalidade que me obriga a explicar a mim mesmo os phenomenos que vejo, e riem-se, perguntam-me onde estudei, que diplomas tenho das Academias, e voltam-me as costas ludibriando-me, porque não querem admittir a sciencia sem a auctoridade, vêem como profanação um leigo explicar o que só está á altura da intelligencia dos cathedraticos. Tenho tido muitos d'estes desgostos na vida. Os homens que têm certa bondade, tambem me dizem, que a edade me fez todo idealista, que os annos me darão um caracter pratico de que careço. Ás vezes, tendo passado a noite em vigilia a pensar, cheio de frio, com fome, canso-me a fallar, para receber, ao cabo de um esforço inaudito, uma gargalhada brutal. Deos sabe quanto custa affazer-me á solidão absoluta. A solidão, é verdade, devasta o espirito, porque obriga á representação interior, dando-lhe um relêvo maior do que a realidade. Serão utopias tudo quanto tenho na cabeça? É uma lei natural. Ha na vida intellectual dois periodos, um de creação, outro de realisação. Hoje concebo um ideal que não posso determinar; porque ha de vir tempo em que saberei sómente dar fórma ao que senti. Convem não rir desapiedadamente de todas as theorias da mente febril da mocidade, porque ao approximar-se a edade esteril da força, quem ha de realisar o que não ideou? Bem sei que um grande poeta{47} disse antes de mim: «Uma grande vida, é um pensamento da mocidade realisado na edade madura.» Em tudo isto vejo uma força desoladora no homem, que o domina em tudo, e era pela analyse d'ella que poderiamos entrar na essencia dos actos de sua vida—é o egoismo. Quando o homem se vê compellido a reconhecer uma superioridade no seu semelhante, fórma d'elle um semi-deus, porque, então já não é outro homem que o sobrepuja. Christo é uma idéa transmittida ás gerações, que ellas concretisaram em um nome para comprehendel-a. E depois, porque um homem egual a nós a manifestava, o egoismo salva-se fazendo-o—filho de Deos. Arranca-se a Illiada das mãos de Homero, porque o orgulho do homem não consente que o homem o exceda. Vico representa na sua hypercritica a humanidade. Perguntamos, quem inventou a alavanca antes de Archimedes demonstrar a sua lei? quem descobriu o parafuso, a serra, bases de toda a mechanica? O egoismo occultou quanto pôde o segredo; apenas a mythologia responde com uma divindade allegorica, um Saturno, Perdice, Pan e Triptolemo.—

O pobre rapaz falava de um modo precipitado, convulsivo, como se lhe faltasse o ár. A escuridão da noite não deixava lêr-lhe no rosto a volubilidade da expressão. De repente, parou á porta de um casebre velho, situado em uma viella estreita e infecta. Pediu-me para subir. Eu não podia resistir-lhe; cada palavra vibrava-me cá{48}dentro como um arranco. Fomos tacteando nas sombras, por um caracol de escadas carcomidas, que nos faltavam aos pés. Ia-se-me esclarecendo o mysterio d'aquella existencia. Por fim chegamos a um quarto pequenino e baixo, com um ár mephitico, saturado de fumo de tabaco. Elle acendeu uma vella de cebo roida dos ratos, que tinha presa no gargallo de uma garrafa; a enxerga com uma manta embrulhada achava-se a lastro. A miseria arripiava-me. O pobre rapaz deitou-se sem forças; vi-lhe então, á luz mortiça, uma pallidez cadaverica. Tive medo do seu silencio. Elle estava envergonhado de tanta indigencia, e procurava rir-se, ridicularisando-a:

—Não extranhe vêr-me n'esta trapeira; ha uma analogia entre ella e a minha cabeça, onde as idéas refervem em tropel confuso, e se conflagram e se destroem. Estas teias de aranha são ás vezes a minha distracção nas horas de enfado; divirto-me como o Mascara-de-ferro, como Spinosa, Magliabechi e Silvio Pellico. É em que me pareço com os grandes homens. Deixemos isto; conversemos a serio diante de quem não sabe rir-se de mim. Eu tambem tenho pensado na organisação de uma sociedade perfeita, como Platão e Cicero, Campanella, Thomaz Morus e Fenelon; mas só encontro essa perfeição no momento em que os vinculos do direito que prendem as nossas relações sociaes, e os mysterios e terrores que as religiões incutem, fossem excluidos pelo desenvolvimento completo da idéa{49} do Bello; quando deixassemos de praticar uma acção, que vae contra as maximas do direito ou da religião, não por ser injusta ou immoral, mas porque repugna ao sentimento do bello. A Arte sobre tudo! é ella só que nos póde alcançar conjunctamente a perfeição plastica. Assim a anarchia, a negação absoluta de todo o governo fóra de nós, constitue o ideal do estado; a lei era a consciencia de cada um, a consciencia sempre incorruptivel a todo o interesse egoista. Porque a Arte é synthetica, mais do que a religião, a philososphia e a moral, porque só ella faz o accordo incondicional das vontades por uma emoção universal. Como chegar um dia a esta perfectibilidade! Não se vae lá de repente, a natureza não dá saltos. As revoluções pela idéa pódem tudo; não se confia n'ellas, nem se emprehendem, porque os resultados só os gosa o futuro. É esta sciencia nova da Sociologia que ha de levar mais longe a humanidade. A Edade media, o grande lethargo depois da civilisação da Grecia e Roma, foi ampliada pela passividade mystica do christianismo; é uma impiedade que ninguem talvez acredita. A esmola, a onzena sobre a bemaventurança, era o principio da dependencia e da desegualdade, a aniquilação do trabalho e da actividade; a reprovação dos juros, o stigma impresso sobre o judeu, elemento industrial na sociedade nascente, eram a inercia do capital e do espirito de empreza. A verdadeira doutrina é um cathecismo popular de economia social. É por esta{50} sciencia que nos ha de vir a libertação, desde que o homem reconheça que produz mais do que consome. O trabalho é o unico titulo da propriedade, a sanctificação da vida. O trabalho é para mim uma consolação, um orgulho; sou como Plauto, que fazia rodar um moinho, e nas horas de descanço escrevia as suas comedias; como Spinosa, que gravava vidros para se alimentar nas horas em que se absorvia no quietismo do pensamento e ampliava a synthese physica de Descartes á moral humana; eu toco na orchestra de um theatro; de dia penso.

E o pobre rapaz parou em meio, de cansado; depois recomeçou, fazendo-me a historia do trabalho:

—O homem ao destacar-se do ultimo élo da cadeia dos sêres, sentiu-se forte e senhor da terra. A natureza offerecia-lhe por toda a parte seus peitos uberantes, e este rigosijo de harmonia ligava a sua existencia á vida pantheistica do universo. A grandeza do homem n'este cyclo genesiaco, symbolisaram-na os escriptores sagrados no reflexo de graça e de innocencia que descia das alturas sobre a sua fronte; os escriptores profanos, menos inspirados pelo idealismo espiritual, retrataram-a na plastica, nas fórmas gigantes do corpo e na magestade homerica de uma estatura heracleana. N'este primeiro dia, foi o homem como os anjos, via e falava face a face com a divindade; n'este primeiro dia foi um gigante da terra, dominava pela força cyclopica. Ambos{51} os dois mythos têm um fundo de verdade revelada pela inspiração e intuição do passado aos prophetas da historia. Senhor e rei na creação, o homem deixou-se enleiar no seio voluptuoso da natureza. Admirou e caiu adorando. N'esse instante descobriu a sua nudez, e escondeu-se; sentiu a fome e a sede e as dôres do desterro. O outro mytho, mais violento e terrivel, para filiar n'essa queda o naturalismo e anthropomorphismo, fal-o mergulhar no bruto, e o satyro, o minotauro, é o homem a confundir-se na cathegoria inferior dos primates. Á queda succedeu a rehabilitação, como ao occaso a nova aurora de luz. Era a lei eterna das antitheses. Foi o trabalho o signal da rehabilitação, será o caminho para a apotheose. Sic itur ad astra. Nos mythos do Oriente, tenebrosos e tragicos, o trabalho é um stigma que pésa sobre o homem, é a dor, a atribulação, é a terra produzindo cardos e espinhos, fecundada pelo suor do seu rosto. É o enigma da vida a ser iniciado pelo soffrimento e o soffrimento a retratar a vida nomada da raça primitiva, na sua passagem através do dezerto. Nos mythos do Occidente é sublime o ideal do trabalho: ahi é a gloria dos semi-deuses, é a vida errante mas heroica. Chiron ensina o mysterio da força. Os trabalhos de Hercules, os trabalhos de Theseu, eis outros tantos passos para a elevação do homem, perdidos hoje completamente nas sombras imperscrutaveis do mytho. Nos trabalhos de Jason e dos Argonautas está{52} symbolisada a inauguração do commercio de toda a raça jonica. No Oriente, o trabalho é uma fatalidade religiosa, um anathema do primeiro passo do homem. O christianismo, creado no berço de todas as religiões, vindo da Asia, transportou comsigo o mesmo dogma fatidico, mas com expiação. Suavisou o golpe da espada flammejante, que lançou o homem fóra do Eden. Exagerou a culpa para perdoar o castigo; suscitou no interior do homem uma luta, luta escura e tremenda, um eu a combater outro eu, a carne a revoltar-se contra o espirito, a confusão e o cahos onde havia a ordem e a harmonia, e para este dualismo desesperado apontou como panacêa—o trabalho. D'esta idéa proveiu um diluvio de sangue para rehabilitar a raça futura; foi o sangue dos martyres; a arca fluctuante a egreja; o ramo de oliveira, representando a paz universal e a fraternidade a cruz. Só tarde estes symbolos foram comprehendidos; tinham sido como o enigma da Sphinge, que devorava os que iam passando. O christianismo ao ideal do trabalho-pena ligou a universalidade. Na Edade média a ordem social era classificada pela propriedade territorial; a posse era a caracteristica do senhor, o trabalho da cultura o ferrete do servo. A Edade média feudal é uma antinomia na historia; a influencia manifesta do christianismo é a communa. O abraço dos povos pelo trabalho do commercio e da industria, eis o segredo das riquezas de Pisa, Gand, Veneza, Genova, Bruges e Florença, ao pé da barbarie dos{53} estados feudaes. Virtus unita fortius agit. No dia em que o homem descobriu a alavanca, o parafuso, a força da agua, foram outras tantas fadigas de que aliviou seus hombros, sobrecarregando-as na natureza. Hoje o trabalho não é o sello da culpa segundo a antiguidade biblica, não é o signal da escravidão como na Edade média, nem o tributo dos párias, como concebia Aristoteles: hoje é o symbolo da dignidade do homem. São as machinas que vão conseguindo pouco a pouco esta realeza do homem sobre o universo. O hymno do trabalho eleva-se por toda a parte, e as strophes perpetuam-se ao estrepito das grandes descobertas de Galvani, Fulton, Watt, Pascal. Pelas machinas ganha o homem tempo á custa da força, mas força dispendida pela natureza. Virá uma epoca em que elle se liberte do trabalho material; abre-se então outro horisonte mais vasto—o trabalho da intelligencia. Prometheu ergue-se dos rochedos caucasicos, não para roubar o fogo celeste, porque é Deos, mas para atear aquelle que occultou longo tempo no encéphalo. O homem desprender-se-ha da animalidade para absorver-se no anjo. Se elle se destacou de uma animalidade inferior, não está terminada a sua progressão ascencional. Esta theoria explica já a prodigiosa actividade e precocidade intellectual d'este seculo.»

A voz foi-se-lhe enfraquecendo, até que se calou; estava macilento, tiritando de frio; a vista com um brilho phosphorecente, felino. Depois de{54} alguns instantes de silencio, disse-me com um modo secco, que não comprehendi logo:

—O succo gastrico é bastante corrosivo e dilacera-me as fibras do estomago.

Conheci que era a fome que lhe dava esse aspecto, essa consumpção em que o via prostrar-se. Disse-lhe que esperasse um instante, e sai á pressa para comprar em uma espelunca uma posta de peixe. Quando voltei, a luz bruxuleava quasi a extinguir-se; o pobre rapaz estava voltado para a parede. Sacudi-o. Achei-o frio, com a rigidez cadaverica.{55}

22 февраля 2018 г. 19:31 0 Отчет Добавить Подписаться
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