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Lívia Porto


Se pudesse escolher como você gostaria de partir de vez desse mundo, o que elegeria? O Ju escolheu se transformar em poeira de estrelas.


Короткий рассказ Всех возростов.

#crônica #humor #humor-mórbido
Короткий рассказ
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There's a Starman, waiting in the sky...

Falar de morte não é assunto que faça sucesso nas rodinhas em festas, bares, baladas... As pessoas param de sorrir, guardam as mãos em bolsos imaginários, literalmente um velório é estabelecido, acabando com todo o clima de comemoração.

Contudo, sempre (ah, sempre...) há aqueles que, em qualquer conversa de que estejam participando, arranjam uma forma de pôr o tópico em discussão.

Foi assim que conheci o Ju.

Juclécio Augusto Ribeirão, para os não íntimos.

Ele fazia questão de repetir seu nome e sobrenome quantas vezes fossem necessárias até que o interlocutor estivesse plenamente ciente de quem era.

Nem era difícil de entender o porquê... com esse nome... meu Deus.

“Minha mãezinha era muito fã de um cantor de sua época chamado José Augusto. Meu pai tinha um amigo de nome Juclício... ninguém mais discutiu depois que fui registrado e até hoje ‘tamos aí.”

Pois bem.

Ju não era um cara dos mais fanfarrões da vizinhança; gostava era de ficar em casa, com seus bichos (vários) e livros, os quais devorava sem se dar ao trabalho de mandar notícias à Nave Mãe. Nós, de quando em vez, éramos compelidos pela culpa cristã dos amigos desnaturados e lhe fazíamos visita, certificando-nos de que estava vivo, as crianças – os bichos – estavam alimentados, e tudo reinava na santa paz.

Nossos encontros não eram frequentes. A razão? Ju rodeava a conversa e sacava cada causo, dos mais pitorescos aos mais absurdos, sobre personalidades que morreram.

Ju era parça da Morte, só podia ser. Ô homem pra exaltá-la.

Eu quase desisti de manter contato com ele na última vez que nos vimos.

Vou explicar.

Convidaram-nos pra uma after party na marina, lugar de gente chique e elegante, pelo menos era como eu achava que fosse. Ju estava reticente de ir... fizemos aquele esforço pra convencê-lo, “sua presença nos alegra...” e tal... a real era que nenhum de nós se havia convencido de que fosse a melhor escolha, mas a culpa cristã estava lá.

Por fim, ele decidiu “dar essa chance a vocês (nós); eu irei”. Foi mesmo. E o maior espalha rodinha aconteceu.

Havia um grupo de umas 10 pessoas conversando animadamente sobre amenidades: política, economia, pauta de costumes, esses assuntos agradabilíssimos. Eu estava em silêncio, fazendo o monge tibetano pra não ser estraga prazer dos outros. Ju estava meio lá, meio cá. Nossos amigos se entreolharam e deduziram, com certa tristeza, que ele estava era preparando uma das suas.

Não demorou cinco minutos.

—Vocês sabiam que o Fulano de Tal morreu enforcado de cabeça pra baixo?

“Como isso era possível?”, perguntei pra mim mesmo, e não falava do tipo de morte.

—Ele foi colocado de uma forma que, ao puxarem a corda, ainda que sob a força da gravidade, ele ficou pendurado nela, mesmo que de cabeça pra baixo. Outro que morreu de forma estúpida foi...

E seguiu desfilando seus conhecimentos inúteis praquele grupo de desconhecidos.

Queria jogar Ju do píer.

Terminando sua palestrinha, perguntou a cada um de nós como gostaríamos de morrer.

As pessoas, incrédulas, não sabiam o que responder. Chamá-lo de maluco era bem pouco àquela altura.

Ele começou, já que ninguém queria falar.

—Eu gostaria de morrer entrando no horizonte de eventos de um buraco negro (Ju era apaixonado por astronomia). Imaginem a visão daquele nada bem diante dos olhos, a espaguetificação deformando o corpo, tempo e espaço se contorcendo...

Os olhos do homem brilhavam com a possibilidade.

Ele levantou o rosto pro céu e contemplou as estrelas, embora esse mesmo céu estivesse encoberto. Prosseguiu.

—Imaginem só! Sem dor, apenas a queda livre... o que haverá lá dentro?

Um dos convivas, um pouco mais entorpecido pela bebida, soltou essa:

—É quase uma forma poética de morrer, não é?

Ah, pra quê... Ju encontrara sua alma gêmea. Abraçaram-se e choraram de emoção: ele, pela nova companhia em sua obsessão; o outro, pelo grau de pileque que havia escalado até ali.

Claro que a rodinha abriu... quem queria continuar a conversar com um adorador do Hades?

Passaram alguns meses. Sentimos falta de Ju. Ligamos, ninguém atendeu. Mandamos mensagem... nada.

Preocupados, nos dirigimos à casa da montanha, que era a forma carinhosa de nos referirmos à ladeira onde ele sobrevivia. A casa ficava no cume, literalmente.

Chamamos, chamamos... nem os bichos fizeram barulho.

Após um tempo ali, mais inertes que os moais da Ilha de Páscoa, um vizinho de baixo (todos os vizinhos eram de baixo...) veio em nosso socorro. Contou que havia uma semana, Ju se mudara com a filharada.

“Ele foi em busca do sonho.”, disse o senhor. “Disse que doaria seus filhos e partiria em rumo ao desconhecido”.

—Pra onde esse cabra foi? — nos questionamos.

Não deu um dia, veio a notícia:

“Primeiro brasileiro parte em missão ‘suicida’ em direção ao buraco negro super massivo que reside no centro da Via Láctea”

Ju havia se juntado a outros dois voluntários, um ucraniano e outro chinês, em um experimento inédito na história da Humanidade: seriam, não se sabia como até ali, transportados para o horizonte de eventos de um dos buracos negros de nossa galáxia.

E foi assim que nos despedimos de Ju: levou tão a sério sua forma inusitada de morrer que fora transformá-la em realidade.

Se conseguirá, nunca saberemos.

Preciso reconhecer que há certa lírica em morrer como se deseja.


31 мая 2021 г. 20:09 0 Отчет Добавить Подписаться
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