A V I S O ੭ antes de prosseguir com a leitura, esteja ciente de que no decorrer da narrativa serão abordados temas sensíveis, dos quais estão inclusos: abuso sexual, machismo, homofobia e violência. Caso seja sensível a tais tópicos, não recomendo prosseguir à partir daqui. Também gostaria de ressaltar que todos os personagens dessa obra são fictícios, e sua semelhança com pessoas reais é meramente uma coincidência. (;
No mais, boa leitura!
A cidade era escura e fria. Escondido por detrás de grossas camadas de poluição, o céu azul tinha cor de cimento queimado, e os raios solares que entravam em feixes finos não eram o bastante para clarear o dia, que se estendia como uma noite sem fim.
Um grupo de moleques atravessavam as ruas desérticas, ladeando a mureta que separava o asfalto da areia da praia. O mar ao lado parecia piche, e a cada trovoar das ondas que arrebentavam na costa um novo monte de lixo repousava sobre a areia. Um molecote franzino, mancando de uma perna, saltou a mureta com os olhos brilhando, e agitou na cara dos amigos um embrulho amarelo metálico; uma embalagem velha e suja de salgadinho Cheetos.
— Ainda tem a data de fabricação — contou, alegre, espremendo os olhos para ler a impressão miúda. — É de 1996. Que achado!
Seus companheiros concordaram, animados, e o menino guardou a embalagem no bolso da calça remendada com todo o cuidado, exibindo um sorriso orgulhoso pelo resto do percurso.
Atravessaram uma viela escura, agora já distantes do mar, no exato instante em que um raio cortou a escuridão dos céus, num borrão prateado e retorcido. A luz de um dos postes piscou, e o coração dos meninos saltaram contra o peito ao ouvir o ribombar de um trovão.
— Depressa — comandou o mais espichado, de ombros mais largos, que liderava o bando.
Uma cicatriz transversal perpassava os seus lábios secos, e decerto era quem cortava os próprios cabelos a esmo, um emaranhado castanho assimétrico e repicado que mal lhe chegava aos ombros. Estava entre os moleques, que lhe seguiam fielmente como cães sem dono, tinha aparência de moleque, mas não era verdadeiramente um. Sobre a camisa surrada, havia um volume a mais no busto, e o contorno de auréolas instigadas pelo frio.
— Onde vamos mesmo, Maria? — perguntou ansioso o mais mirradinho, de bochechas sardentas e dentes tortos.
— Espere só para ver, João — respondeu, com um sorriso audaz, contornando a rua de prédios de concreto. — Espere só…
Todas as construções, exceto as que se dispunham no coração da cidade, tinham aspecto precário. Pouca ou nenhuma luz era vista das minúsculas janelas quadradas, e sobre a tinta cor de chumbo que descascava nas paredes haviam enormes manchas de mofo verde-lodo. Aqueles prédios eram a habitação do povo, daqueles que não eram os favoritos de Deus, porque nasceram em desgraça; sem nenhum privilégio.
Quem era do povo tinha sangue de lama, valia alguma ao governante do país, o grandíssimo Messias. O povo eram os peões que terminavam sendo sacrificados durante uma partida de xadrez em prol do rei. Viviam em miséria, engolindo migalhas e poeira, se espremendo nos cubículos imundos que lhe foram bondosamente presenteados pelo governo. Mal tinham eletricidade, quem dirá mobília.
Sem renome, sem escolaridade própria, muitas vezes sem saúde, os rapazolas do povo que eram qualificados para tal recebiam treino para servir ao exército brasileiro quando atingissem a maioridade; sua única oportunidade de viver com o mínimo de decência.
Se por alguma razão esses garotos não se enquadravam no padrão requerido pelas academias militares, a vergonha de ser quem eram só se tornava mais intensa: eram despachados para casa, para viver à mercê da própria sorte e rastejarem por serviços insalubres que não lhes renderiam nem a metade do que precisariam para sobreviver.
E as mulheres, ai! As mulheres… nem mesmo as que nasciam em família de sangue nobre podiam se dizer sortudas.
Ainda assim, são as do povo as que mais sofrem, inegavelmente. Não tinham direito à alfabetização, a respeito ou à proteção, sequer eram donas dos próprios corpos: se um homem a quisesse, assim seria e poderia fazer o que bem entendesse; não haveria quem fosse contra.
Mulheres eram abandonadas, esquecidas, suas vozes há muito haviam sido caladas e diante de sua realidade nada podiam fazer para mudar isso. Porque os homens gostavam de violentá-las, de machucá-las, de vê-las sangrando, e os homens comandavam o país.
Foram fadadas ao sofrimento no momento em que se desenvolveram mulheres, ainda no ventre, e assim seria até o fim de suas vidas.
Maria tinha pavor de ser mulher. Fazia o que podia para parecer com um menino, gostava de pensar que era menino, moleque mesmo… porque quando pareceu minimamente com uma garota, percebeu que não queria ser uma.
Sentia arrepios de gelar a espinha quando se lembrava daquele homem sujo que morava ao lado no complexo habitacional, e numa noite esgueirou-se silencioso pelo pequeno apartamento, seus olhos vidrados e maliciosos correndo por todos os seus irmãos adormecidos, e depois fixando-se na mãe… Maria ficou paralisada de medo e não conseguiu dormir nas noites subsequentes àquela invasão.
Sentia tanto nojo e aversão da lembrança que quando ela vinha atormentar, ficava atordoada como se tivesse levado uma pancada na cabeça.
Era engraçado que aquele lapso do passado lhe doía mais do que o presente, onde tinha de viver dia após dia ouvindo o choro copioso da mãe e dos irmãos mais novos, quando não era obrigada a fazer serviços em troca de comida, e esfregava o chão de mármore da casa de famílias nobres até que seus dedos ficassem em carne viva enquanto crianças louras e roliças cuspiam em sua cabeça.
Não… nada disso doía mais em Maria do que a ideia de que podia ser facilmente violada, sem direito de negar e preservar o próprio corpo. Por isso queria tanto ser um rapaz, por isso andava com aqueles moleques que foram dispensados da academia militar. Assim como eles, havia sido rejeitada por tudo e todos, e precisava arranjar jeitos de se proteger para sobreviver.
Maria era muitíssimo corajosa, isso era. Ia conduzindo o grupo até o centro da cidade, se esgueirando pelas sombras e vielas que entrecortavam os quarteirões; escondendo-se dos vigias prostrados roboticamente aqui e acolá. Se algum vigia pegasse moleques do povo permeando aquela parte da cidade… só de imaginar a surra já sentiam dor.
Mas todos ali tinham fome, e como toda boa criança tinham fome de doce.
Mais adiante, o brilho do letreiro rosa-neon do empório de guloseimas faiscou em contraste ao céu cinzento, assim como faiscaram os olhinhos desejosos de Maria e os meninos quando o vislumbraram. Não sabiam ler, mas sabiam reconhecer a figura de uma enorme bala que piscava ao lado das letras.
Ela fez sinal para que avançassem com cuidado, praticamente na ponta dos pés, contornando as lojas quase colados nas paredes e evitando as janelas. Ser do povo por si só já os fazia praticamente invisíveis no dia a dia, mas se uma senhora de boa família reparasse neles se esgueirando por aí, imundos e desajeitados como eram… ai deles!
Não podiam, é claro, entrar pela porta da frente. Seriam pegos no ato! E Maria sabia bem, era esperta e malandra demais. Chegaram aos fundos da doceria, os moleques tremendo de expectativa, e ela com o mesmo sorriso fugaz de sempre sacou um canivete enferrujado do bolso. Enfiou a lâmina na fechadura de uma portinhola esquecida, quase escondida pelas latas de lixo, que não tinha as mesmas cores vívidas que se via na fachada.
Demorou, mas com um clique metálico a porta se abriu. Maria suspirou de alívio, e fez sinal de silêncio antes que começasse uma algazarra. O interior estava vazio, exceto por pilhas e mais pilhas de caixas lacradas que se empilhavam nas paredes.
Não era como o interior vibrante da loja, ao menos não até que Maria passasse a ponta afiada do canivete pelas tampas e uma explosão de embrulhos coloridos inundasse os olhos dos moleques. Eles engoliram suspiros, seus dedos tremiam.
— Encham os bolsos — sussurrou, com um bom punhado de balas de caramelo já em mãos. — Mas fiquem quietos!
E silenciosamente, por mais que estivessem gritando de euforia por dentro, abriram caixas e mais caixas, enchendo os bolsos com todo o tipo de doce: balas, barras de chocolate, pirulitos, chiclete, puxa-puxa, bombons, paçocas…
Tamanho era o júbilo do grupo que mal notaram quando a porta para o estoque se entreabriu, e a funcionária deu meia-volta assim que notou os larapiozinhos surrupiando a mercadoria.
Àquela altura já estavam debochando da própria sorte, sentados sobre os caixotes enquanto iam guardando uns docinhos na barriga, engolindo-os de uma dentada só. Riam abertamente, derrubavam caixas, aproveitavam aquele pedacinho de céu… João estava sentado próximo a porta, comendo a terceira barra de chocolate com nozes quando tudo aconteceu.
A porta se escancarou de supetão, mal tiveram tempo de processar o que estava acontecendo ou de engolir os doces que tinham levado à boca.
Os rifles dos vigias tinham silenciadores, mas jamais poderiam silenciar da mente de Maria o som da bala atravessando a carne, ou o grito de desespero de seus amigos, com os olhos vidrados no corpo estirado ao chão.
João tombou, sem vida, a barrinha de chocolate ainda entre os seus dedos. Do furo em seu crânio jorrava sangue, mais escuro do que Maria imaginou ser, e entre as lágrimas ela sentiu vontade de vomitar, de despejar todo o doce colorido com o qual havia se empanturrado e quem sabe atenuar o vermelho nauseante do líquido viscoso que já empapuçou o piso, grudando na sola das botas de combate dos soldados que entravam.
Eram três. Os rostos estavam cobertos por máscaras de tecido, mas por uma fenda enxergavam os olhos; alienados, frios, sem vestígio de misericórdia.
Maria tentou respirar fundo, mas acabou soluçando. Um dos vigias mirava diretamente em seu peito, e ela viu o dedo dele estremecer sobre o gatilho. Para todos os fins, estavam encurralados; mortos, para ser mais objetiva.
Guilherme, o moleque que era manco de uma perna e tinha recolhido a embalagem de salgadinho mais cedo, cedeu. Caiu de joelhos ao chão, as mãos para o alto enquanto berrava, implorando por misericórdia. O vigia que dantes mirava em Maria voltou-se para ele, seu sorriso sob a máscara era perceptível, asqueroso…
Maria fechou os olhos bem apertado, engolindo um outro soluço. Ouviu o baque surdo do corpo do amigo caindo ao chão, encontrando o mesmo destino de João. Pela primeira vez em tempos, rezou para Deus. Implorou para que ele a ajudasse, para que acolhesse seus amigos no paraíso, para que lhe perdoasse por todos os seus pecados…
— Mas o que diabos está acontecendo aqui? — ela reconhecia aquela voz grave, apesar do timbre agora não ser tão metálico; e o tom mais exaltado. Já a tinha ouvido nas transmissões, nos anúncios oficiais do governo… tudo estava girando, mesmo que ela ainda estivesse com os olhos fechados.
Quando se deu conta, estava de cócoras, vomitando tanto que seu corpo chacoalhava com violência e sua garganta era arranhada por sons animalescos que ela jamais pensou ser capaz de reproduzir.
De vozes distantes ouviu o choro, palavrões e ordens… mas já não era capaz de compreender nada além da dor; que trespassava o físico. Agradeceu a Deus, sentindo as lágrimas secando no rosto, e desmaiou sobre o próprio vômito, mesclado ao sangue dos que em vida haviam sido seus fiéis amigos.
Quando Maria despertou, pensou que estivesse no além-vida.
Encarou o teto imaculadamente branco com os olhos semicerrados por uns bons minutos, notando o quão era macio o leito sobre o qual repousava; muito diferente do puído pedaço de papelão que um dia chamou de cama. Vestia um tipo de bata, uns cinco tamanhos maiores que o seu. O tecido era branco e muito limpo; ela também estava limpa!
Quando as coisas não podiam parecer melhores, Maria sentou-se à maca e observou, com os olhinhos curiosos brilhando de excitação, que estava posto sobre a mesa-cabeceira ao seu lado um jarro de água pura e cristalina.
Sua boca parecia tão seca… bebeu três copos de água do jarro com avidez, lambendo os beiços quando terminava. Era água fresquinha, deliciosa… a primeira vez que bebia algo assim! Tinha sede o bastante para beber uma dúzia daqueles até se saciar.
Mas então notou… aquela sala era muito fria e solitária.
Ora, se estivesse mesmo morta, confinada no paraíso seguro e eterno do Senhor, não deveria estar acompanhada dos amigos? Não deveria sentir uma inexplicável alegria e aconchego? Contudo, contemplou os últimos eventos que se sucederam antes de cair na inconsciência e sentiu-se vazia, triste e temerosa.
Talvez estivesse no inferno. Talvez ficar ali fosse seu castigo por ter carregado seus amigos para o abraço da morte, por ter afanado dos nobres, por não ter se contentado com a própria miséria e definhado sozinha em sua casa no complexo, embalada pelo choro dos irmãos e os gritos da mãe. Era seu castigo eterno por ter violado as leis do Messias.
Maria sentiu as lágrimas mornas descendo por suas bochechas, mas não soluçou. Nem se incomodou em limpar o rastro úmido que manchava seu rosto. Por mais silencioso que fosse, aquele era o choro mais sofrido de toda sua vida, e continuou copiosamente até que alguém aparecesse.
Sobressaltada, encarou com desconfiança o homem que lhe dirigia um olhar bondoso. Por mais chucra que fosse, conhecia seu rosto, e também sua voz; o que a deixava ainda mais amedrontada. Ele esteve na loja de doces, presenciou a morte de seus amigos assim como ela, e agora também estava ali; seja no inferno ou no paraíso, ela ainda não sabia dizer.
O Ministro puxou uma cadeira e sentou-se ao lado do leito no qual estava deitada. Ainda trazia um sorriso afetuoso, que sublinhou as marcas deixadas pela idade em seu rosto.
Maria então compreendeu que não estava morta, ainda.
— Sabe… você é a garotinha mais audaciosa que conheço. — ele começou, parecendo não se importar com a expressão afrontosa da menina. — Eu aprecio isso.
Maria franziu o cenho. Pensou ter ouvido errado, só podia ter ouvido! Mulheres tinham que ser submissas, empertigar-se no lar e aguentar o que fosse de bico fechado; eram os brinquedinhos dos homens. Segundo os dogmas que o governo pregava, mulheres não podiam ser audaciosas! Não! Não! Não! Por que o Ministro disse aquilo?
Estava delirando, só podia estar.
— Mas sei que não é inabalável, assim como todo e qualquer ser humano. Perdeu amigos, estava fraca demais para fazer algo… — o Ministro ponderou antes de prosseguir, e seus olhos bondosos pareceram mais bondosos ainda, se é que era possível — esteve desacordada por dias diante dos maus tratos que vem sofrendo por anos. Me pergunto qual foi a última vez em que teve uma boa refeição.
— Por que o senhor se importa? — disparou, arrependendo-se no ato. O Ministro tinha um semblante tristonho, apesar de não parecer surpreso com sua rispidez. — Me desculpe — resmungou Maria, se encolhendo sob lençóis.
— Porque não acho que eu e você sejamos diferentes. Você entende o que eu quero lhe dizer?
Maria fez que sim, apesar de ver muita diferença entre os dois, porque não queria parecer burra.
Era imatura demais, acostumada demais com o próprio sofrimento… sobretudo orgulhosa. Só ia entender plenamente as palavras do Ministro muitos anos adiante, quando já tivesse descoberto que as coisas nem sempre foram como eram, e que houve um tempo em que tinha direitos, seja sobre seu destino, seja sobre seu próprio corpo.
— Leia, por favor — pediu o Ministro, entregando-lhe um pedaço de jornal.
Sentada sobre o mármore da pia, Maria fez como lhe foi pedido enquanto o Ministro voltava a raspar seus cabelos. Ainda lia pausadamente, mas tinha uma eloquência muito boa, e amava ler! Havia descoberto tantas histórias, tantas coisas interessantes, tantas heroínas e princesas-guerreiras de reinos fantásticos… mas tudo ainda muito distante de sua realidade.
Quando o novo ano começasse, ela teria a idade-limite nas quais os meninos eram recrutados para o colégio militar. O Ministro havia planejado tudo, e eles repassaram detalhe por detalhe tantas vezes que Maria podia recitar sua empreitada mecanicamente, até de olhos fechados.
Vivia escondida, mas não era nada com o que não estivesse, de certa forma, acostumada. E tinha muito a fazer para se distrair, além de não poder falar um “a” sequer em tom de reclamação: dormia sob cobertores aconchegantes, se alimentava bem, tinha água pura para beber… é claro, não por muito tempo.
Quando o plano se concretizasse e Maria entrasse para o exército sob disfarce, as coisas seriam diferentes. Teria de jurar lealdade ao Messias, a parte que mais lhe dava aversão, e servir pacientemente até que chegasse o tempo do desabrochar… desabrochar de que, exatamente, ela não sabia, no entanto gostava da ideia de viver como um menino, coisa que ela sempre quis.
Teria que ser cautelosa, é claro, porque se a descobrissem… a mais leve das penalidades seria uma execução em praça pública. Maria já havia tido uma centena de pesadelos com essa mesma cena, um pior que o outro. Contudo, apesar do medo, não sentia vontade alguma de desistir.
Terminou a leitura da notícia, erguendo os olhos para o Ministro; esperançosa.
— Excelente — ele sorriu, terminando de passar a lâmina da máquina pelo último tufo de cabelo. — É essencial que saiba ler, sobretudo compreender, e que mantenha-se sempre em alerta e bem informada quando nos separarmos. Me diga… o que achou do artigo?
Maria ofereceu-lhe um sorriso triste, sem responder de pronto como tinha costume. Gostaria de poder ficar mais, de viver com o Ministro… quem sabe ele não lhe adotasse como filha mais tarde? Ela nunca soube o que era ter um pai, não conhecia o seu, e estava gostando de viver sob a asa daquele homem tão gentil, que a respeitava como um igual.
— Por que temos de nos separar? — arriscou a pergunta em voz miúda, balançando os pés. — Por que o senhor me escolheu para cumprir com o plano?
Foi a vez do Ministro de sorrir com tristeza, seus olhos muito claros denunciando o sentimento que tentava conter. Afagou o topo da cabeça da garota, vendo-a frágil pela primeira vez desde o dia em que se conheceram.
— Porque em todo Brasil não há outra como você, Maria. Agora, falemos do artigo.
Lisonjeada, começou a despejar suas opiniões. Ainda assim, não compreendia plenamente o que o Ministro queria dizer em suas colocações tão simples; cujo significado se escondia nas entrelinhas.
O uniforme do exército brasileiro era largo, ajudava a esconder seu corpo em constante mudança sob os panos verde-musgo. Maria tinha de prender os seios bem apertados com faixa e gaze, e evitava os balneários em horário de pico como podia. Era um soldado solitário, bem quisto entre seus supervisores.
Até então, não havia a menor suspeita de que ela era, na verdade, uma mulher.
O começo, é claro, foi muito frustrante. Foi enviada para um pelotão muito distante, o que prejudicou sua comunicação com o Ministro, e como se não bastasse o sentimento de estar abastada do homem que considerava um pai, sua menarca se anunciou com dores agudas logo nas primeiras semanas de serviço.
Maria ficou extremamente frustrada, se contorcia de dores e murmurava palavrões quando enfim se via sozinha. Chegou a pensar, por um mísero segundo, que odiava o Ministro e todos os segredos que o cercavam. Porém, aquela seria a mais leve das provações que teve de enfrentar no decorrer dos anos.
Agora já uma moça lá com seus quinze anos de idade, começava a compreender as coisas como eram. Tinha os ouvidos atentos, os músculos bem torneados e uma mente aguçada; era uma pena, no entanto, que fizesse pouco uso da língua afiada, uma vez que preferia se manter quieta para não denunciar sua postura aos superiores, devotos ao Messias.
Seu presente de aniversário havia sido um livro antigo, muitíssimo bem preservado, cujas letras gravadas em ouro no couro da capa destacavam o título: Constituição Federal de 1988. Na primeira folha, uma pequena dedicatória escrita em letra miúda e muito decorada se destacava em tinta vermelha-sangue:
“Para Maria.
Resista.”
Por mais breve que fosse, sentiu o encorajamento vindo daquela única palavra. Resista. E devorou o livro em poucos dias, prestando atenção nas anotações que foram feitas à mão no rodapé, sempre na mesmíssima tinta vermelha.
E Maria nunca havia lido algo parecido com aquilo.
Ela conhecia as leis e deveres impostos pelo Messias, que eram bárbaros se comparados à Constituição, por mais velha que fosse. Em tempos antigos, ela poderia até mesmo ter participação na política de seu país. Veja bem: ela! Que era mulher, que para o atual governo não tinha mais valia do que a matriz de novos soldados.
Quando houve a oportunidade, mostrou ao Ministro o quão feliz estava com o presente, e discutiram ideias o quanto puderam. Mais tarde, Maria ganhou mais livros, com a mesmíssima dedicatória rubra destacando-se na branquidão da primeira página.
Resista.
Os olhos de Maria estavam vidrados no homem sobre o palanque.
Sentia uma aversão que lhe embrulhava o estômago conforme o Messias discursava, e evitava olhar para os companheiros prostrados ao seu lado, temerosa de que os amigos do exército que havia cativado pudessem se compadecer das ideias do porco que tinham por governante.
O Messias era o responsável por reger o país, líder tanto político quanto religioso. O posto era assumido pelo filho primogênito da mesma família há pelo menos setenta anos, sem que o povo pudesse interferir, de modo que vivessem num looping eterno, sofrendo com a crueldade de um Messias após o outro.
Era irônico pensar que, de início, o povo acreditava que o Messias seria a salvação para um Brasil em ruínas.
Foi o próprio presidente quem se nomeou como tal, e pouco a pouco dissolveu a política, destruiu templos e proibiu encontros religiosos que não fossem estritamente católicos, impôs leis embasadas em suas próprias concepções, iniciou uma verdadeira caça às bruxas aos homossexuais, e segmentou seu povo, lançando uma enorme parcela destes à pobreza extrema.
De acordo com o Messias, as minorias tinham de se curvar às maiorias. Com isso, ele queria dizer que todos teriam de se submeter aos homens de poderio aquisitivo, sobretudo a ele.
Maria sentia-se nauseada, mal prestava atenção às palavras que aquele homem horrendo dizia, aos risos, como se tudo fosse um grande circo erguido ao seu bel-prazer.
Desviou os olhos do Messias, sentindo a boca tremer involuntariamente num sorriso quando viu o Ministro sentado entre os demais homens que compunham a cúpula fiel do governo daquele homem sem escrúpulos. Maria sabia que o Ministro não aprovava os ideais do Messias, e que por dentro estava tão desgostoso quanto ela.
Continuou correndo os olhos pelos homens no palanque, e reparou numa mulher miúda encolhida às sombras, parcialmente escondida por uma enorme coluna esculpida em mármore.
Maria não a reconheceu de imediato, uma vez que a mulher parecia bem mais franzina e soturna do que estava acostumada a ver nas transmissões feitas para o país. Seus olhares se cruzaram, e a primeira-dama do Brasil deu-lhe um sorriso cúmplice antes de bater com a mão direita, fechada em punho, sobre o lado esquerdo do peito rapidamente.
Sentindo um arrepio súbito que lhe desceu gélido pela espinha, Maria voltou sua atenção para o Messias, que ainda vomitava asneiras com animosidade, e revestiu-se de uma expressão rígida.
O feriado de sete de setembro já não existia no calendário brasileiro.
Messias, o nome que se dava ao atual governante, por mais patriota que se declarasse, era uma verdadeira cadela para com seus aliados europeus, e o país havia tornado-se não só incrivelmente dependente de nações estrangeiras, como explorado ao limite pelos mesmos em seus recursos naturais.
O ano era 2091, mas o Brasil parecia ter regredido para 1500.
Naquela data outrora tão marcante, o Messias e seu filho iriam a um jantar com seus aliados estrangeiros. Maria, ainda sob seu disfarce, foi um dos soldados convocados para fazer a escolta e garantir a segurança do Messias e seu sucessor.
Durante a escolta, o filho do Messias lhe cutucou as costelas, um sorriso divertido e os olhos desfocados de quem havia bebido mais do que podia aguentar. Maria sentiu medo, mas lembrou-se que o rapaz pensava que ela era, na verdade, um homem.
— Ei! Soldado 76, não? — apontou para o pequeno retângulo metálico preso ao peito do uniforme, onde se lia a inscrição. Maria apenas concordou. — Fiquei sabendo que te acham fodão no seu quartel. Não é à toa que está aqui, de todo modo.
Maria ficou quieta. Não achava que aquele molecote valia seu esforço para engrossar a voz, tão pouco merecesse meia palavra sua, sequer.
— Também fiquei sabendo que encontraram umas bichinhas lá — soltou um riso escandaloso, e Maria notou que alguns dos soldados que a acompanhavam também riram, baixinho. Teve ânsia de vômito no ato. — Se você encontrar algum boiola no seu esquadrão, quero que você fuzile ele. E deixe o corpo ao sol para todo mundo ver! — o rapaz tropeçou, aos risos, e Maria foi quem o segurou pelo gola da camisa social, impedindo uma queda. Ele continuou rindo, e deu-lhe palmadas no ombro. — Isso é uma ordem do seu próximo Messias, entendeu? Mate qualquer bichinha que encontrar por aí.
Respingos de sangue salpicavam o rosto de Maria.
Arfando, seu dedo ainda estava sobre o gatilho da arma, cuja munição fora esvaziada no soldado caído ao chão.
O coração de Maria batia com tanta força contra as costelas que o som do sangue bombeando ressoava em seus ouvidos, abafando o barulho do choro copioso do outro soldado, encolhido no canto do balneário com o torso ainda desnudo.
Maria fechou os olhos. Tinha que pensar, rápido, e num flash se recordou dos últimos acontecimentos.
O dia foi longo, seu corpo dolorido implorava por um bom banho; luxo com o qual agora havia se acostumado, por mais que a água do quartel fosse fria como gelo. Mal entrou no balneário e percebeu a exaltação nas vozes que se sobrepunham umas às outras.
Quando ouviu o barulho abafado de uma pancada certeira afundando na carne, concluiu que não teria o momento de tranquilidade pelo qual aguardou o dia todo.
— Ei, 76! — um soldado emergiu do canto de uma fileira de armários, o filete de sangue que escorria de seu nariz manchava os dentes amarelados, expostos por ter aberto a boca num sorriso doentio. Esteve com ela no dia da escolta. — Me ajude aqui. Acabei de achar… duas bichas. Desacordei um, o outro está chorando, assustado. Vem logo, porra!
As pernas de Maria pareciam ter se tornado pedra. Ela se moveu mecanicamente, seguindo os passos do soldado até um dos boxes no final do corredor. Ao colo de um jovem rapaz aos prantos, um outro, completamente nu e oscilando entre consciência e inconsciência, tinha a marca de um golpe na bochecha.
— Me dê sua arma, 76 — pediu o soldado, o sangue agora pingando de seu queixo. — Se esses viadinhos pensam que podem me bater…
— Não — Maria não precisou forçar a voz. Ela saiu grave, mordaz, e o soldado a encarou com desprezo.
— O que você disse seu…
Contudo, ele não chegou a concluir sua ofensa. Maria lhe deu uma rasteira, o soldado escorregou no chão molhado e caiu, batendo a cabeça contra um dos boxes.
Seu corpo tremia incontrolavelmente, mas ela sabia o que tinha de fazer. Sacou a arma, e descarregou toda sua munição no verme que jazia ao chão, agora lavado com o próprio sangue.
Maria abriu os olhos de novo, chutou o corpo desfalecido no piso e precipitou-se para os outros rapazes. Embalou o que ainda estava acordado, petrificado pelo medo com seu amante bem firme nos braços.
— Para todos os efeitos, estávamos no banho quando esse cara pegou no meu pau. Eu agi de imediato, e vocês, como bons devotos às leis messiânicas, vieram me ajudar assim que entenderam o que aconteceu — fixou seus olhos nos lacrimosos do rapaz, enxugando seus cantos com os polegares. — Você entendeu, não entendeu?
Ele aquiesceu, estático; parecia desacreditar que ela não somente o havia salvado, como estava acobertando.
Sem ter o tato para dizer algo mais reconfortante, Maria lembrou-se do gesto da primeira-dama. Levou o punho direito ao lado esquerdo do peito, dando uma batidinha suave contra o peito. O gesto bastou para fazer o rosto do rapaz se iluminar.
— Meu nome é Túlio, aliás. E o dele é Diego. Qual o seu?
Ponderou, mas enfim respondeu:
— É Maria. Meu nome é Maria.
Ninguém contestou sua versão dos fatos quando os apresentou aos seus superiores pouco após o conflito, e o corpo do soldado ficou ao sol por alguns dias antes que o cheiro se tornasse insuportável demais.
Por melhor que as coisas tivessem terminado, Maria não deixava de sentir uma pontada de desgosto. Não conseguia se imaginar matando alguém, e tentava culpar os próprios instintos por fazê-lo, distanciando-se da cena dos balneários encharcados de sangue viscoso e escuro, tal qual o sangue de seus amigos que um dia escorreu pelo chão do estoque de um empório de doces.
Como um todo, sabia que não poderia reclamar. Agora contava com dois leais companheiros, cujos ideais eram gêmeos dos seus, e suas presenças foram reconfortantes o bastante para que ela não entrasse em colapso nos dias que se arrastaram.
Apesar de poder fazê-lo em raríssimas oportunidades, era muito reconfortante poder visitar o gabinete do Ministro e conversar sobre o andar dos planos e a proximidade do desabrochar.
Maria continuava perturbada, de certa forma, por ter cometido um assassinato. Despejar todas suas preocupações sobre o Ministro foi inevitável, embora ela sentisse uma culpa corrosiva por preocupá-lo com seus problemas quando sabia que ele lidava com coisas piores; como o Messias em pessoa.
Por mais cansado que estivesse, o que se evidenciava no qual havia envelhecido em méritos de aparência, o Ministro continuava tendo um bom coração, e ouviu Maria com carinho.
— Infelizmente, minha querida, violência sempre termina em violência — suspirou, uma vez que ela terminou seu relato. — Mas se quer mesmo saber o que penso, aquele homem já estava morto de alma. Um corpo desprovido de alma, por sua vez, é desprovido de humanidade, e fornece enorme perigo para aqueles com quem convive. Infelizmente, pessoas assim são comuns se considerarmos o nosso líder… — Maria aquiesceu. — Salvou duas vidas, Maria. Foi muito corajosa, e não deve se martirizar como faz.
Não conseguiu conter seu sorriso, tamanho foi que sentiu suas bochechas doerem. A aprovação do Ministro, que havia se tornado uma figura paterna, lhe significava muito.
— Seus cabelos estão ficando compridos… venha cá, deixe-me cortá-los para você.
“Vem então o tempo de primavera, e com ela o desabrochar das flores. Antes do aniversário de Cristo, as coisas serão como deveriam ser.”
Maria guardou o bilhete escrito na caligrafia requintada do Ministro com um sorriso nos lábios marcados pela antiga cicatriz.
Mais cedo, naquele mesmo dia, ouviu de seus superiores que houve uma agitação na capital de São Paulo: o povo havia se unido para saquear um grande mercado situado na área nobre.
Estava acontecendo.
Nos livros que o Ministro lhe presenteou, as fotos mostravam que o estado do Amazonas tinha uma beleza imensurável, rico de fauna e flora. Era um enorme manto verde sobre as águas cristalinas… já agora…
Manaus era tão cinzenta quanto a capital do país. Desprovida de vida, não se viam sequer mudinhas de plantas brotando em meio às rachaduras no concreto das calçadas, tão pouco se ouvia algum som da vida animal que antes residia ali em abundância; nem mesmo o gorjear de um único pássaro solitário. Além do que, o ar tinha o cheiro ocre de fumaça, e Maria tinha a impressão que o chão sob os seus pés fumegava.
Mas ela não conseguia sentir-se triste, não na situação que lhe trouxe ali. Podia ouvir os gritos à distância, pairando no ar denso e quente, desde o momento no qual desembarcou na cidade. Contudo, não eram pavorosos gritos de lamento, mas sim de resistência, e seu peito inflamou de orgulho enquanto marchava com o restante do pelotão em direção à balbúrdia.
Tinha alguns bons aliados ali, entre eles Túlio e Diego. Sempre descobria novos companheiros quando faziam aquele mesmo sinal: o toque do punho direito ao lado esquerdo do peito. Inevitavelmente, lembrava-se da ocasião em que viu o gesto pela primeira vez, e seus pensamentos vagavam em torno da primeira-dama.
Ela também estava resistindo, indo contra as leis opressoras estabelecidas por aquele ao qual uniu-se em matrimônio. E Maria a admirava cada vez mais.
Alcançaram a praça da cidade, e os olhos de Maria se encheram com a vista, de modo que ela teve que conter seu sorriso. O povo avançava sobre os poucos vigias que ainda se mantinham de pé, e muitos deles não mais traziam os rifles à mão: foram tomados pelos cidadãos, que não vacilaram um segundo sequer enquanto expeliam toda sua fúria sobre aqueles que durante décadas foram os responsáveis por “mantê-los na linha”.
O grupo de Maria avançou, e enquanto alguns soldados retaliavam os civis, Maria e seus amigos os afastavam da cena, ajudando um bom tanto a fugir. Quando seus olhares se cruzavam, rapidamente tocavam o punho direito sobre o lado esquerdo do peito, acima do coração, e sem usar de palavras incentivavam uns aos outros: resista!
Maria já tinha perdido a conta de quantos chamados havia recebido para conter os civis pelos cantos do país. Consequentemente, havia perdido a conta de quantos ajudou a escapar por entre os dedos dos soldados tiranos. Alguns, é claro, não deixaram aquela traição passar despercebida, mas tiveram um súbito fim antes mesmo que pudessem abrir a boca para protestar.
E aquilo não mais a atormentava.
Em tantas idas e vindas, e com o tempo do desabrochar cada vez mais próximo, Maria mal viu o Ministro nas últimas semanas, sequer trocaram mensagens através de seus aliados.
Tamanha era sua saudade que seus dedos formigavam quando se encontraram naquela tarde fria e enevoada, e ela se corroía de vontade de abraçá-lo. Infelizmente, não podia, uma vez que o Messias estava ali.
E estava se borrando de medo.
A sala de reuniões do prédio era larga, e estava quase vazia. Quatro soldados, nos quais estavam Maria e seus colegas, se dispunham nos quatro cantos do cômodo, enquanto sentavam-se à mesa de mármore branca e comprida o Messias, seu sucessor e o Ministro. Numa tela projetada à altura de suas vistas, eram reproduzidas imagens das câmeras de segurança do local em tempo real.
O povo estava ali. Eram tantos em número que engoliam os soldados que tentavam contê-los, e em questão de segundos estimava-se que conseguiriam derrubar os portões e marchar até o prédio. O ataque aconteceu de súbito, pegou todos desprevenidos, e foi feito um chamado urgente para o transporte do Messias à uma localização segura.
Era tudo uma questão de tempo, seja para que o helicóptero convocado chegasse ou para que o povo tivesse a cabeça de seu ditador em mãos.
Gotas grossas de suor escorriam pela testa do Messias, mas seu filho, por sua vez, não parecia assim tão preocupado, e sentava-se com os pés sobre a mesa, sustentando esse sorriso presunçoso.
— Não se preocupe, papai. Dei ordem para os soldados fuzilarem a ralé. Quero ver como eles vão chegar até aqui com o crânio estourado — ria, se repetindo sempre que o Messias endurecia na cadeira, assistindo aos seus seguranças serem massacrados.
O rapazola só pareceu preocupado, de fato, quando notou uma ausência na sala.
— Onde está a mamãe? — perguntou, afoito, tirando os pés da mesa e esquadrinhando o cômodo, como se ela pudesse estar escondida no bolso de alguém.
Maria chegou a sentir uma pontada de piedade, que se dissolveu em ódio quando o Messias abriu a boca para responder:
— E quem se importa com ela? Talvez seja melhor deixá-la para trás. Quem sabe assim esses miseráveis não nos dão um minuto de paz. — e então, como se não tivesse acabado de vomitar tal desprezível covardia, cruzou os braços e comentou casualmente — Sabe… acho que vou tomar um bom caldo de cana quando toda essa merda acabar — riu.
Àquela altura, sequer o Ministro escondeu sua expressão de desgosto.
Minutos se estenderam como horas, e o Messias consultava seu relógio, impaciente. Fazia novos chamados, berrava com o comunicador… e nada. Os portões que davam acesso ao prédio estavam quase cedendo, chacoalhavam no ar como se fossem tão leves quanto uma pluma.
No entanto, antes que as pesadas grades de ferro fossem ao chão, uma figura pequenina se adiantou até os portões, reproduzida pela filmagem das câmeras. Todos ficaram com os olhos vidrados na tela quando a mulher levou o punho direito ao peito, batendo com ele sobre seu coração, e o povo e todos os soldados que haviam sobrevivido pararam de súbito.
Com outro gesto da primeira-dama, os portões foram abertos, e os civis entraram aos montes, contornando-a ao passar.
A sala de reuniões caiu em um silêncio mortal, e enquanto o Messias compreendia o que havia acabado de acontecer, uma veia saltava em sua têmpora. O filho parecia atônito, balbuciava como uma criança chorosa, e quando o pai explodiu, aos berros, seguiu seus passos obedientemente para fora da sala.
Em um grande tumulto, o grupo rumou até o heliporto no topo do prédio, ouvindo a movimentação e os gritos que entravam pelas janelas abertas dos corredores. O Messias esbraveja, suava como um porco, mas seus olhos o denunciavam: estava apavorado.
Alcançaram o heliporto vazio, e Maria sentia a tensão acumulada em seus ombros. Olhou para os companheiros, Túlio, Diego e um outro chamado Marcos, e antes que seus olhares cúmplices terminassem sua conversa, a voz calma do Ministro cortou o ar:
— O senhor pensa mesmo que vai fugir?
O Messias empalideceu, atônito, mas manejou juntar algumas palavras e formar uma resposta:
— Que porra toda é essa, Victor? — ao seu lado, o Messias-filho continuava aterrorizado, e sua expressão débil denunciava que não entendia um terço do que estava acontecendo.
— Consequências — o Ministro concluiu, com um suspiro. — Anos de tortura, miséria e humilhação… estamos na mesma página? Ah, por acaso, eu já te apresentei Maria? — apontou-a entre os quatro militares, e ela abriu um sorriso de orelha a orelha. — O melhor soldado do pelotão. E também uma mulher. Aquelas a quem você tanto despreza.
— Puta — cuspiu o Messias, enraivecido. — Puta! Assim como aquela desgraçada da minha mulher. E vocês vão ter o que merecem. Ah, vão ter sim! Nada que um bom estupro não resolva, pra colocar vocês no lugar — o Messias-filho foi o único a rir.
Maria sentiu-se nauseada, mas seu peito se encheu de orgulho quando viu seus amigos erguendo os rifles, com os pontos da mira infravermelho marcando diretamente a testa do Messias, que cambaleou para trás.
— Se é tudo que você tem a dizer… não vou sentir muito pela sua perda. Um ignorante a menos no mundo é uma benção! — o Ministro sorriu, balançando-se sobre seus pés. Os sorrisos no rosto do Messias e filho desapareceram. — Mas esperemos Alice! A pobre mulher que te aguentou por anos não merece perder o espetáculo, merece? Depois de toda a barbárie que você a fez… quero que ela tenha o gosto de olhar em seus olhos e ver a vida escapando por eles.
O Messias fraquejou. Encarava os arredores, afoito, procurando uma maneira de fugir. A porta pela qual entraram estava bloqueada por Maria e os soldados, não havia rastro do helicóptero no céu, e a última saída era se atirar pelo parapeito… e cair direto para os braços da morte. Enquanto isso, seu filho, encolhido à sua sombra, chorava copiosamente.
Alice, a primeira-dama, não demorou em aparecer. O barulho de seus saltos batendo no concreto eram como música para os ouvidos de Maria, e quando sua figura emergiu da porta, seus aliados abriram sorrisos gêmeos.
— É muita gentileza de vocês terem me esperado. Imagino que não tenha sido fácil aturá-los — indicou o marido e o filho com a cabeça, e sua boca se torceu em desprezo.
— Vagabunda! — o Messias berrou, como se fosse surtir algum efeito. Alice apenas riu, balançando a cabeça.
— Ora, antes vagabunda do que estúpida como você! Estivemos planejando isso por anos, bem debaixo de seu nariz… e é claro que você nunca desconfiou. O que eu, uma mulher, poderia te fazer, não é mesmo? Fez questão de me lembrar isso muito bem quando me aplicava suas correções — o Messias parecia pálido como um cadáver, e recuou até suas costas baterem contra as grades que o protegiam da queda. — No entanto… fique tranquilo. Não tenho pretensão alguma de te matar.
Maria fez uma careta confusa assim como os demais, exceto pelo Ministro, que com um aceno pediu-lhes para abaixarem as armas. Obedeceram, com muito custo, pois todos ali tinham mais do que um bom motivo para estourar os miolos do Messias.
— Eu pretendo apenas — Alice continuou, — dar ao povo o que é do povo.
— Maria, querida, faça as honras — pediu o Ministro, apontando para o peito do Messias.
Não foi necessário especificar mais do que isso. Maria ergueu o rifle, mirou no local indicado, e com um toque no gatilho o corpo do Messias estava tombando para trás. Ouviram o grito de júbilo do povo, que abafava os berros de dor do Messias.
Entrementes, o Messias-filho atirou-se no chão de joelhos. Arrastou-se até a mãe, os olhos cheios de lágrimas, e tentou agarrar sua saia.
A antes primeira-dama o acertou com uma bofetada certeira, sua expressão transbordando de nojo, e o vergão vermelho do contorno de seus dedos marcando a cara do filho.
— Mamãe! Por favor, mamãe, por favor…
— Eu tentei… — ela suspira — tentei fazer com que você enxergasse a verdade. Infelizmente, conheço você, o bastante para saber que não vai mudar. A estupidez de seu pai foi como uma herança hereditária… e vai lhe conceder o mesmo destino que o dele — acenou vagamente para os soldados, dando as costas ao filho. — Que seja rápido, por gentileza.
Foi Túlio quem disparou, seu tiro certeiro alojando-se ao centro da testa do rapaz. Diego o ajudou a atirar o corpo por sobre a grade, e uma nova onda de gritos preencheu o ar.
Por alguns instantes, ficaram todos parados, contemplando o que haviam acabado de fazer. Maria foi a primeira a se pronunciar, a voz soando áspera depois dos bons anos forçando-a para ter um timbre masculino:
— O que faremos agora?
Victor, o Ministro, a encarou com ternura, mas foi Alice quem respondeu, após um suspiro:
— Tenho de consertar as merdas do meu ex-marido. Vamos precisar de ajuda, é claro… a resistência continua enquanto houver uma pessoa que seja apoiando os ideias do antigo Messias. E depois, quando as coisas estiverem estáveis, acho que precisaremos de uma eleição.
— E já não era sem tempo! — comentou alegremente o Ministro.
Mais de uma década havia transcorrido até então, e o Brasil dos tempos atuais já era diferente do Brasil que Maria havia nascido e conhecido.
Alice, eleita oficialmente a primeira presidenta após séculos da ditadura messiânica, havia progredido, entre tantos outros, em seus projetos que visavam diminuir a poluição no país. Victor, o então vice e antigo Ministro, continuava sendo seu braço direito em todas as empreitadas, e o povo não poderia pedir por representantes políticos melhores; tanto que continuavam a reeleger ambos, uma vez que não simpatizavam com os demais candidatos.
O céu sob suas cabeças continuava acinzentado, mas quando Maria fez uma pausa no trabalho para admirá-lo, podia enxergar nuances azuladas e o contorno borrado de nuvens brancas feito algodão movendo-se sempre adiante.
Com um suspiro satisfeito, enxugou o suor da testa e continuou trabalhando, empilhando tijolo por tijolo conforme erguia as paredes do que seria a primeira escola à moda antiga na Praia Grande. Sem os valores impostos pelo Messias, o ensino não seria uma doutrinação, e as crianças do povo, meninos ou meninas, voltariam a ser alfabetizadas.
Os seus irmãos e irmãs de Maria que resistiram aos anos de miséria estavam ali, ajudando-a. Já eram moços, tinham tantas cicatrizes quanto ela, mas tinham se tornado fortes, e muito orgulhosos da irmã que tinham. Haviam também os antigos amigos, aqueles que participaram de tantas travessuras como o assalta à loja de doces, carregando sacos de cimento para lá e para cá enquanto riam em bom tom, contando piadas e relembrando as memórias mais felizes de suas infâncias.
Após todos aqueles anos, Maria não tinha mais medo de ser mulher. Seu corpo e vontades agora eram protegidos por lei, e eram rigorosamente punidos os homens que insistiam em violá-los.
As coisas haviam progredido após tantas batalhas, e uma triunfal vitória. Havia, porém, um longo caminho que ainda deveriam percorrer, sempre em direção ao progresso, que veio por meio de sua resistência.
E Maria queria continuar resistindo, prontamente havia decidido desde que foi dado voz ao projeto de construção da escola pública em Praia Grande. Mas ela não lutaria em batalhas físicas, não mais.
Maria queria ser professora, combater a ignorância cortando o mal pela raiz e dando luz ao precioso conhecimento. Afinal, se não fossem todas as coisas que lhe ensinou o Ministro, ela permaneceria acostumada com o regime no qual vivia o país, resignada com seu destino miserável.
E assim, ela continuaria resistindo, e todos os conflitos não teriam acontecido em vão. Maria resistiria contra aqueles que sustentavam os ideias do Messias até seu último suspiro de vida.
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