Notas Iniciais
Pode conter gatilhos. Conteúdo com violência com representatividade histórica e contextualizada, sem exaltação do ato. Boa leitura.
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O calabouço era profundo. Sons abafados de gemidos medonhos percorriam as celas. Elas tinham correntes penduradas no teto, algumas áreas das paredes estavam cobertas por limo; outras, manchadas de sangue. Goteiras martelavam sons descompassados e frenéticos diuturnamente. O frio úmido fedia à morte. Nos cantos dos cubículos, era possível ver lentos ratos gordos passeando impacientes para devorarem o próximo defunto. Incontáveis condenados haviam passado por ali e não se sabia notícia de alguém que tivesse sobrevivido para relatar as mais bizarras torturas que sofrera. Os raros anistiados preferiam esquecer.
As pessoas conheciam a fama do calabouço através das narrativas dos soldados que muitas vezes participavam dos interrogatórios. No entanto, eram os verdugos que protagonizavam os sofrimentos dos condenados, usando técnicas sofisticadas de sofrimento físico e psicológico, eternizando as sessões de suplício. Dentre as centenas de prisioneiros desenganados, um deles buscava reconstruir o sentimento de esperança de sair com vida daquele abismo de sofrimento, seja pela fuga, seja pela anistia.
Jean Pierre Janpodriux estava com os braços esticados para cima, afastados um do outro. Algemas de ferro envolviam os punhos, ligadas por grossas correntes afixadas na parede do teto da cela. No pescoço, uma coleira metálica de espessura de um punho, trazia o desconforto dos movimentos. Os pés mal tocavam o chão, os dedos eram o ponto de encontro dos filetes de sangue que brotavam das costas, do abdómen e do tórax, pingando no chão. A calça que cobria sua nudez estava rasgada na altura dos joelhos, respingada de sangue. O peito desnudo suportava um frio cruel e trazia as marcas das cortantes e doloridas chicotadas recentes. A mente do jovem conde buscava pensar na imagem dela para confortar seu corpo e amenizar a agonia.
Sons cadenciados eram perceptíveis aos ouvidos acostumados aos gemidos das celas. Eram passadas delicadas e cautelosas. Jean Pierre levantou o rosto e avistou, no pequeno clarão das poucas tochas que iluminavam seu cubículo, uma sombra projetada. A porta da cela se abriu, produzindo um som pesado e metálico. Uma silhueta de mulher entrava envolvida numa capa negra que a escondia da cabeça aos pés. Colocou-se diante dele e se revelou por fim, deixando cair sobre os ombros o capuz. A pele branca e rosada, os lábios grossos, os olhos fumegados por um verde vivaz e os cabelos ruivos revelavam uma mulher que trazia no coração uma proposta de esperança.
Ao fundo, um oficial mudava um saquinho de moedas de um bolso para o outro.
O conde prisioneiro evitava encará-la, olhava fixamente para o chão. Envergonhado. Seu corpo ainda estava debilitado pela escassez de água, de alimentos e pelas surras demasiadas. Seu corpo atlético exibia manchas vermelhas e roxas das agressões que vinha sofrendo ao longo de duas semanas. Levantou o semblante e falou sustentando uma voz preocupada:
— O que vieste fazer aqui? Estás correndo perigo ao falar comigo.
— Sabes por que estou aqui. Sou capaz de engolir todo meu orgulho e me humilhar perante o rei para pedir por sua vida, mas isso é inútil. Somente você poderá fazê-lo.
— Tenho escolha? — A voz do conde soou fraca.
Adele se aproximou dele desejando beijá-lo ainda que estivesse naquelas condições, continuou:
— Porque conspirou contra meu tio? Porque fingiu ser quem não eras?
— Não sabes quem realmente é o rei. Não tem ideia do quanto ele é cruel, de quanta atrocidade cometeu contra seu próprio povo.
— Eu não entendo. Ao meu lado, você teria tudo. Meu amor, as benesses do rei. Teria uma vida de conforto até a velhice.
— O que almejo não se compra com tesouros, mas com luta.
Jean não parecia disposto a esclarecer nada. Silenciou.
— Amanhã será a execução dos líderes do levante. O rei dará anistia apenas para um único condenado. Não seja orgulhoso, ajoelhe-se perante ele no tablado e peça misericórdia. Ele vai te perdoar, poderemos sair da França e seguir juntos para as distantes terras da Escócia, exilados e felizes.
Ela tocou no rosto dele. Fez menção de beijá-lo, mas ele virou o rosto.
— Lamento Infanta, mas não há mais tempo, daqui a pouco começará uma nova ronda. — O oficial interrompeu.
*****
A maioria era muito pobre, com roupas curtas e rasgadas, pés descalços ou sandálias velhas. Incitados por algumas pessoas da corte, eles gritavam contra a liderança da insurreição. Jean Pierre era conduzido para o palanque da execução, um palco feito de madeira onde o prisioneiro era submetido à punição máxima, a morte pela decapitação. Os ex-líderes do levante contra o rei Philippe eram arrastados pelos soldados. No caminho, eram ofendidos pela população que os chamavam de traidores e hereges. Vociferavam-lhes palavras de baixo calão.
Descalços, vestidos de roupões brancos e com as mãos amarradas para trás subiram no tablado. Já no palco, foram obrigados a se perfilarem, ouvindo a acusação formal de traição à Coroa. Um oficial, depois de ordenar que o povo se calasse, começou a ler os motivos da execução, acrescentando “verdades” aos fatos, fazendo a imagem dos prisioneiros parecerem a pior possível.
Numa sacada, num prédio pomposo, a família real assistia à execução. Fazia parte do protocolo contemplarem execrações públicas dos inimigos. Despreocupadamente, o rei comia uma coxa suculenta de faisão. Deu duas mordidas e jogou o resto no chão onde um tigre adolescente se aproximou. O rei acariciou o pelo exuberante do animal que se deitou ao lado do trono improvisado de madeira, saboreando as sobras da carne. A sacada era baixa, possibilitando uma boa vista de proximidade. Adele estava ao lado do príncipe Louis que tinha assento do lado direito do monarca, enquanto conselheiros sentavam-se do lado esquerdo. Como sobrinha do rei, Adele conhecia suas limitações naquele lugar. Presenciara outras execuções, aprendeu a ficar indiferente. Dessa vez, a situação era peculiar. As mãos suavam, o desconforto machucava profundo. Agoniava ficar impassível, obrigada a tomar essa postura protocolar. Ela ignorava a leitura acusativa e maçante daquele oficial de voz rouca. Aquele discurso soava hipócrita em seus ouvidos de forma desconexa, distante e ultrajante. Seu único prazer era alimentar sua esperança. Seus olhos repousavam sobre seu amado como se tentasse penetrar em seu coração, fazendo a vontade dela tornar-se a dele.
Ao final da leitura, o rei se manifestou sob os aplausos do povo. Sem se levantar de seu assento, colocou uma flor branca numa almofada levada por um jovem pajem. O significado da ato era anistiar um prisioneiro e mostrar o quanto o rei era benevolente. O silêncio tomou conta da multidão. Na última vez, ninguém suplicou pela anistia, preferiram morrer por seus ideários. Contudo, Jean teria suas razões. Havia pensado a noite toda, tentando entender o que significaria tudo aquilo. Procurou pensar no sentimento por Adele. Juntar-se a ela significava trair a causa? Trairia seus leais companheiros que seguiriam para a morte? Curvar-se-ia àquele sistema opressor? Como poderia esquecer tudo e viver seu amor com ela? O que ele realmente desejava? Justiça? Sentar-se no trono do rei?
Com assentimento de cabeça, Jean Pierre pediu autorização ao oficial, sob os murmúrios do povo. Adele sorriu, o coração bateu mais forte e mais rápido. O rapaz caminhou com dificuldade ficando diante do rei, limitado pelo tablado e pelas mãos engatadas. Suas pernas mal o sustentavam, mas sua persistência o pôs de pé, sem tremedeiras. Olhou para o rei, por instantes achou-se no poder de esquadrinhar aquela alma: orgulho, arrogância e avareza, esses predicativos eram a trindade que definia aquele ser. Nada mais. Mirou o rosto de sua amada. Pensou na vida confortável que ela desfrutava todos os dias. Refletiu na falta de empatia dela para com o seu próprio povo, desfrutando daquele mundo de fantasia, isolada da triste realidade que urgia todos os dias nos campos e nas ruas das vilas. Contudo, era bem verdade que Adele o amava, não era um capricho.
O conde olhou sobre seus ombros. Os rostos surpresos de seus leais companheiros. Ao redor, contemplou o povo judiado e amante de seus algozes, pais e filhos ludibriados pelas verdades que internalizaram por gerações. Voltou seu olhar novamente para o rei. Suspirou. Flexionou levemente os joelhos. Num movimento agressivo para frente, lançou cusparadas em direção ao trono real. Um alarido frenético tomou conta do público. Soldados correram e seguraram o condenado.
Adele desmaiou.
Ao som dos tambores, o carrasco de armadura reluzente encaminhou-se até o prisioneiro. A cabeça foi colocada no largo tronco de madeira onde o pescoço ficou à disposição. O carrasco levantou bem alto o gigantesco machado. O corpo acéfalo caiu ao lado e sua cabeça jazia no palco.
Talvez seu ideário o tivesse matado, talvez o seu orgulho.
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