Sentada sozinha às seis da manhã em uma cama que não era sua, Catarina percebeu a maior tragédia de todas. Não era nada do que tinha lhe dado cãibra no coração até ali. A tragédia era que, apesar de nunca ter conseguido nada do que queria, ser feliz dali pra frente, em algum momento, era inevitável.

Em Janaúba conta-se do tatu-bife, espécie que deixa em seu rastro cheiro de comida temperada em casa. Carne de caça mais cobiçada, mas ocorre que sua única motivação é fugir de predador. Por isso mesmo o cheiro. Então ninguém nunca conseguiu caçar um. Se um dia ninguém mais se atiçar com seu cheiro, ele perderá a razão de viver e morrerá sozinho, e então será possível comer sua carne. A cidade sabe que só poderá comer tatu-bife quem, do fundo do coração, não quiser de jeito nenhum.

Abrirei minhas asas de anjo, como muito me foi pedido, como muito me foi projetado. Mas toda pena que cair, ou que de mim arrancarem, vou deixar uma faca afiada no lugar. Pra que, ainda que um dia eu me veja pesado demais pra voar, eu possa rasgar de volta todos que me impediram de voltar pra onde eu pertenço.

A conversa tinha sido adulta, madura, asséptica. Ele tinha sido muito importante pra mim, mas era hora de ir embora. Ai de mim quando um suspiro anunciou um arraste no guarda-roupa, que anunciou um saco de papel, que veio me parar na mão. "Seu presente de aniversário adiantado," ele disse. Só aí, em vez de pensar do jeito adulto, maduro, projetei a ausência dele no meu aniversário, no meu retrato, no meu velório. Então, ali mesmo, velei e cremei seu fantasma, porque ele me acompanharia.

"Leia muito e leia de tudo", "kill your darlings", " história é conflito" são conselhos burros que substituíram o mito do artista sofrido e genial pelo mito do artista asséptico, estoico, trabalhador. As melhores histórias já contadas estão em bilhetinhos passados por baixo da mesa em sala de aula; estão em guardanapos amassados; estão em desenhos de criança -- e nunca serão lidas por ninguém. O desafio é fazer quem nos lê se sentir confidente dessas histórias.

Ela levava o sol no bolso — desses de criança, com óculos escuros e raios grossos —, e o oferecia a todo mundo como quem oferece bala de goma. De pouca vez em muito quando, ofereciam um sol diferente para ela em troca. Mas, no mais das vezes, aproveitavam pra roubar um tico do quentinho dela. O medo de seu sorriso virar poeira de estrela só foi aplacado pelo beijo do eclipse: uma lua dançante, que aparecia pra ela e sempre a deixava querendo mais.

O maior pecador do mundo tinha como maior pecado não acreditar em absolutamente nada. O demônio reservou para ele seu pior castigo: não uma eternidade de torturas inimagináveis, porque isso libertaria o cético. Não. O demônio lhe colocou em uma vida perfeitamente normal, em que todos acreditavam em tudo fervorosamente, menos ele. Naquele mundo em que ele conhecia tudo e onde estaria sempre sozinho, o maior pecador do mundo conheceu o desespero, e só podia gritar para dentro.

A contadora de histórias encontrou um lugar quentinho para morrer: embaixo da quaresmeira roxa, do céu vermelho e da casa de tijolinhos onde ela esperava morar daquele dia em diante. Ela não tinha rosto e não tinha nome, e a única história que nunca contou foi a sua. Mas deixou sua maleta, com bibelôs e bonequinhos, onde uma criança pudesse encontrá-la: não sabendo como a maleta teria chegado ali, teria que inventar. Só teria paz a contadora de história se ficasse sem saber o final de uma.

Na brasa da última fogueira, a última mãe contou a última história para que a última criança tivesse a última boa noite de sono antes da última extinção. E isso fez tudo valer a pena.

Sussurros suaves o suficiente soam não como palavra dita de fora -- e sim como pensamento que vem de dentro, mas não é bem nosso.

Anunciaram a chuva por dias. Disseram que era diferente, e deveríamos nos esconder até o amanhecer. E ela começou de dia, engolindo o sol. Mas, como não engoliu a mim, fiquei. Agora anoitece, e as luzes não se acendem. Uma sirene soava antes, mas já se calou. O que era água escureceu, esquentou, engrossou. O barulho da chuva se fez de pontos, linha reta: já não são pingos; são passos. Já não é chuva: é marcha.

A cidade guarda, no silêncio de sua madrugada, os pneus amassando o asfalto, acelerando para fugir dela; os gritos interrompidos dos que não conseguiram escapar; esconde, no vento, a respiração tremida dos que ainda estão sucumbindo; e tem, por trás de tudo, um sussurro -- cada vez mais quieto -- anunciando que tudo nela está em seu fim.

Mandando, todo dia, a mesma carta pra Academia Brasileira de Letras reivindicando a existência das reticências de vírgula, além das de ponto. São ainda mais reticentes, porque mostram que estou ativamente hesitando e a frase ainda não foi completada. A: "Tá tudo bem?" B: "Claro..." B está desviando do assunto. Passivo-agressivo. Cuzão. A: "Tá tudo bem?" B: "Claro,,," B está reunindo forças. Tentando ser uma pessoa melhor. Anjo. (Ah, e se eles não me responderem,,,)

— Você sabe por que você tá aqui? — Você sabe? — Vai ficar respondendo minhas perguntas com perguntas? — Eu tô proibida de fazer isso? — E você pararia se estivesse? — Não. Vencer tem um custo altíssimo. Quando estávamos jogando, eu sabia o que responder. Agora que ganhei, eu não sei mais.

Bibiana Botões-de-Maria-Mole era tão fascinada por açúcar que, quando não encontrou mais doces ao seu redor para comer, lambeu sua própria pele e descobriu que tinha gosto de marzipã. Mordeu a própria carne e percebeu que era feita de puxa-puxa. Mastigou seus órgãos e entendeu que todos eram bombons de chocolate. Tentou beber seu sangue de iogurte, mas não conseguiu, porque desmoronou a um só tempo de fome e barriga cheia.

Quando assinou a rubrica no papel, G. S. já não tinha tanta certeza. Ao apertar a mão do senhor de jaleco, ele lhe chamou de Gabi e reassegurou que daria tudo certo. No entanto, a voz da anestesista, que lhe recebeu na maca como "senhor Soares" traiu um sorriso que denunciou: já era tarde demais. A cirurgia foi um sucesso, mas Gabriel Soares — ou ainda, o experimento #166 de transplante total de consciência — nunca mais reconheceu nem mesmo sua própria expressão de horror.