catybolton Caty Bolton

Matilda era a princesa de um reino próspero e logo iria governar, em uma história que tinha tudo para ser perfeita. Mas, enquanto isso, do outro lado do mundo, acontecia uma revolução – uma guerra. – que logo iria se espalhar por toda aquela terra como se fosse uma praga.


Fanfiction Desenhos animados Para maiores de 18 apenas.

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Não existe honra em uma guerra

Paul Ⅰ

O céu estava cinzento e o ar gelado, mais que o suficiente para fazer os ossos doerem. A luz natural era pouca, mesmo com o Sol no ponto mais alto do céu. A neve que caia formou uma camada branca na floresta ao redor da cidade e em cima de todos os telhados curvos para cima, já que se estes fossem de outra forma a neve os faria desabar.

Bem no coração da cidade gelada havia um castelo feito de tijolos escuros, sujos, e certamente era o único local onde as pessoas conseguiam se esquentar no meio do Inferno de gelo.

A população na cidade sabia lidar com o frio que fazia a maior parte do ano, mas aquele garoto, Paul observou curiosamente, com aquelas roupas que não passavam de trapos leves e finos demais para o clima, com a ponta dos dedos brancas demais e uma aparência decadente, magra, atraiu a atenção de uma dúzia de pessoas enquanto falava em cima da caixa de madeira. Parecia pobre, do tipo que sentia o estômago doer de fome com frequência que ninguém no mundo deveria sentir.

Alguns minutos mais cedo, Paul viu ele arrastar a caixa até quase o meio da rua relativamente movimentada, junto daquele amigo monstruosamente alto, e começar a falar. Um discurso inspirador. Falar de um jeito bonito, mas raivoso, sobre como as coisas não eram justas:

— Enquanto nós passamos frio e fome, os tiranos ficam confortáveis sentados atrás dos muros — Gesticulou agressivamente e apontou um dedo levemente esbranquiçado na direção do grande castelo, como se sequer sentisse frio. — roubando o fruto do trabalho honesto de vocês nos campos!

A certeira e curiosa escolha de palavras fez uma pequena algazarra se formar. Olhou por um instante para o lado e lá estava Patryk, que agora havia parado de organizar as flechas na mesa de madeira, ao lado de um arco e outras armas, para também prestar atenção ao estranho garoto.

Assim que alguém gritou sobre eles – as pessoas no castelo – roubarem comida, Paul virou o rosto na direção do garoto e teve a impressão de vê-lo sorrir, mas não poderia ter certeza daquela distância.

Sim! — Ele gritou. — Esses nobres dependem de vocês! O que torna alguém rei não é o castelo ou o ouro, são as pessoas! O povo mantém o reino em pé! Por que nós ainda nos permitimos ser governados por um tirano!?

Daquela distância pode ver muito bem o guarda carregando uma lança se aproximar rapidamente e gritar alguma ameaça para o garoto, apontando a arma na direção dele. O que o homem provavelmente não esperava era que fosse derrubado tão facilmente no chão pelo garoto alto de antes.

Enquanto isso, a voz em cima do palanque improvisado de madeira não parou de falar:

— Vocês deixaram de alimentar suas crianças, se permitiram passar fome, para satisfazer os porcos por tempo demais!

Paul se viu silenciosamente concordando com ele, enquanto Patryk foi mais vocal sobre isso, mesmo que não passasse de um murmuro.

Mais soldados de armadura surgem e as pessoas começam a se dissipar e fugir para todos os lados. Em meio a bagunça, o garoto magricela agarrou a caixa e jogou em cima de um soldado antes de fugir, se escondendo no meio da multidão. Ele não era muito alto e conseguiu facilmente escapar.

De uma hora para a outra, foi como se nada tivesse acontecido. Na realidade, a rua estreita recheada de comércios estava até mais quieta e deserta que o normal. Mesmo com a sensação aparente de que tudo havia terminado, aquela aparente ideia, estranha reflexão, continuou na mente de Paul por bastante tempo.


Matilda Ⅰ

Era uma vez um reino muito bonito e ensolarado, que na primavera a paisagem sempre ficava muito colorida pelas várias flores diferentes que cresciam naquelas terras férteis. Localizado a margem de um grande rio com águas cristalinas, onde as pessoas viviam da colheita de trigo e havia mais que o suficiente para ninguém passar fome.

Na parte mais alta da cidade ficava o castelo de tijolos brancos, com várias torres que brilhavam com a luz do sol, a morada de uma velha rainha e sua única neta, herdeira do trono. Os pais da menina haviam morrido ambos muito cedo, por alguma doença fatal e infernal, então nunca teve a chance de realmente conviver com eles. Sua avó contava algumas histórias sobre os dois, sobre como eles haviam se conhecido em uma história fantástica de amor e como o seu nascimento foi uma alegria.

Mas havia algo diferente sobre a princesa, algo curioso sobre como no dia do nascimento dela, foi nomeada como Matthew. No começo ela lembrou muito com um menino, só que muito cedo trocou as calças sem graça por vestidos coloridos e bordados com flores. Assim que começou a falar não mais permitiu que ninguém cotasse-lhe os cabelos ruivos. A menina envelheceu o suficiente e trocou o antigo nome, que não a representava em aspecto algum, para um bem mais bonito: Matilda.

Logo mais ninguém lembrava que algum dia existiu um príncipe Matt, pois, na realidade nunca realmente existiu, sempre havia sido a vaidosa e sorridente princesa Matilda.

Quando a menina não estava nas aulas para ter a educação digna de alguém da realeza, gostava de passar o tempo no jardim colorido lendo um livro ou conversando com suas damas de companhia, Kim e Katya. A vista para o rio era muito bonita dali de cima e o jeito que a luz do sol batia nas águas dava a impressão de que era feito de cristal.

Mas, especialmente, gostava muito da companhia de Tom. Naquele exato momento estava com ele, enquanto montava uma coroa de flores com todas que havia encontrado no jardim real. Um tapete impedia que ficasse diretamente sentada na grama, assim como ficava bem mais confortável enquanto trabalhava em amarrar uma planta na outra.

O garoto também estava acomodado ali, não muito longe. Ele usava roupas simples se comparado ao vestido lilás de cetim da princesa, as calças eram de um tecido leve e a camiseta de manga comprida branca, feita de algodão, já era muito melhor que os trapos sujos que a princesa viu o garoto usando na primeira vez que se viram.

Olhou rapidamente para Tom e, apesar de os olhos negros, rapidamente entendeu que ele olhava para a coroa que estava terminando de montar. Na opinião de Matilda, estava ficando muito bonita, certamente um dos seus melhores trabalhos com flores. No meio das diversas cores, as que se preocupou com colocar em maior quantidade foram todas as flores azuis que seus olhos puderam encontrar e havia um motivo para isso.

Depois de terminar a coroa e admirar por alguns segundos, levantou a cabeça para olhar para o garoto e sorriu. Enquanto isso, o seu olhar foi retribuído, porém Tom parecia meio distraído enquanto a olhava para a figura ruiva e naquela altura ela já havia percebido que, na verdade, o garoto admirava a sua beleza. Sorriu ao pensar nisso.

Matilda também tratou de aproveitar aquele momento de distração para se inclinar e colocar a coroa de flores nos cabelos castanhos claros, quase loiros, de Tom. Ele imediatamente ficou vermelho e emburrado, a princesa decidiu que era muito bonitinho e a expressão dele lhe faz cobrir a boca e rir.

— Para com isso. — Ele tirou a coroa e Matilda sorriu de novo.

— Ah Tom — Então pegou as flores das mãos dele com cuidado para nada desmanchar, realmente tinha gostado de como ela tinha ficado. — mas você ficou tão fofo com isso!

Tom desviou o olhar, meio sem saber o que falar, enquanto Matilda revirou os olhos e chegou ainda mais perto, tanto para colocar a coroa de novo – ele ficava fofo irritado. – quanto para finalmente beijá-lo.

Foi um beijo rápido, mas, ao mesmo tempo, os segundos pareceram intermináveis enquanto eles duraram. O breve encostar dos lábios soltou uma descarga elétrica que só existia na imaginação dos dois e quando a princesa se afastou, sentiu o rosto quente e certamente estava tão vermelha quanto o garoto que acabou de beijar.

A resposta imediata de Tom foi um monte de balbucios sem sentido aparente, algumas palavras gaguejadas sem conseguir realmente formar uma frase que conseguisse entender. Ao mesmo tempo, Matilda mexia sem graça na trança sobre o seu ombro, junto de um sorriso incerto, até que decidiu o que falar:

— Desculpa Tom, mas você estava demorando demais


Tom ⅰ

Por mais que o reino, de um modo geral, fosse próspero e houvesse comida para todos, não significava necessariamente que todos tinham o que comer. Ainda existia gente pobre e o número aumentava à medida que se aproximava da periferia da cidade, que era onde Tom morava sozinho com a sua mãe. Seu pai havia morrido há muito tempo, vítima de de uma praga e uma febre infernal.

No local em que vivia todas as outras pessoas também eram muito pobres, miseráveis, tinha sujeira para todos os lados e fedia a dejetos. A casa onde morava tinha apenas três cômodos, que consistiam em um quarto, uma cozinha e o que parecia ser uma sala.

O garoto nunca teve nenhum tipo de educação relevante até pouco antes de sair da infância e entrar na pré-adolescência, pois precisava ajudar sua mãe trabalhando na lavoura em troca de algumas moedas de bronze. Só que nunca era o suficiente nem mesmo para sete dias, já que ele nunca recebia o valor justo pelo trabalho e para isso existia um motivo.

Ninguém jamais gostou dele, da sua família e nunca lhe ajudaram, sem sequer esconderem o preconceito que tinham por causa dos olhos. Aqueles olhos negros tão característicos que ele e a sua mãe tinham eram ditos como uma maldição, como a marca mais clara de que eles eram bruxos entre outras mentiras no mesmo nível.

A verdade é que, Tom tivesse alguma magia negra disponível, faria todos eles pagarem por isso. Mas, para a sorte daquelas pessoas horriveis, coisas como mágica não existem.

Havia outra complicação na parte financeira da sua família, já que a casa em que viviam não era realmente da sua mãe. Os meses atrasados de aluguel estavam deixando a mulher bastante preocupada, pois, por mais que conseguisse juntar um pouco de dinheiro e pagar, parecia que a dívida só crescia e crescia.

Era para tentar conseguir mais um tempo que eles estavam na parte mais central do reino, onde era limpo, as pessoas se vestiam melhor e as construções tinham mais que um andar. Tom se manteve quieto esperando a sua mãe falar com aquele velho barbudo e gordo, que era para quem ela estava devendo, quando viu aquelas crianças sussurrando e olhando na sua direção.

O garoto fechou a cara imediatamente e estreitou os olhos do jeito mais intimidante que pode, sabendo que aquilo era por causa dos seus olhos. Sempre os olhos. Sua mãe também não conseguia um trabalho bom por causa dos olhos e da suposta maldição, sempre precisando aceitar qualquer trabalho e não receber nem mesmo a metade pelo que eles realmente valiam.

Aquilo lhe revoltava de tantas maneiras mas, sendo apenas uma criança, nunca pode fazer nada.

Ainda estava perto da sua mãe e não demorou nem um minuto inteiro para algum daqueles garotos, que nunca tinha visto antes, gritarem um “aberração!”. A mulher ignorou prontamente, o homem barbudo perto da porta sorriu com os dentes amarelos e Tom sentiu raiva. Foi por isso que saiu de perto da sua mãe e procurou quem havia falado isso pela multidão rapidamente achando os garotos, que agora estavam rindo. Eram cinco ou seis no total, a maioria da mesma idade ou apenas um pouco mais velhos que Tom, mas ele não pensou no que poderia acontecer quando se aproximou deles para tirar satisfação.

O resultado, no geral, não foi realmente inesperado e os outros adultos ignoraram a briga injusta. Ainda conseguiu dar um soco em um deles antes de ser jogado no chão de pedra e ganhar vários chutes e socos, se preocupando apenas em proteger a cabeça com os dois braços.

Corre!

Foi a ultima coisa que escutou antes de, subitamente, todas as agressões pararem de uma vez só. Não abriu os olhos imediatamente, mas quando o fez havia a uma sombra alta se projetando sobre Tom em uma posição que a pessoa em questão deveria estar na frente do Sol. Sentou-se ainda meio tonto, confuso e desorientado, então viu aquela garota com roupas chiques, um guarda de armadura brilhante e os garotos de mais cedo fugindo para o meio das ruelas confusas do centro.

Era a menina que estava na frente do Sol e aquele brilho ao redor da cabeça dela fazia parecer que havia um tipo de auréola ao redor da cabeça. Ela tinha uma pele branca como porcelana, mas cheia de sardas clarinhas no rosto – especialmente nariz e bochechas – e um cabelo ruivo muito laranja, que era longo e estava solto com diversas mechas brilhantes caindo sobre os ombros. O vestido dela era feito de algum tecido que não conhecia, mas era azul e parecia muito caro com aqueles bordados dourados na barra, na gola alta e nas mangas longas.

Aquela era a pessoa mais bonita que Tom tinha visto em toda a sua vida e não conseguiu evitar de ficar admirando por segundos até demais.

— Com licença, você está bem? — A voz também era angelical. Ela estendeu uma mão na sua direção e o garoto mal pode acreditar que uma nobre estava lhe oferecendo algum tipo de ajuda.

Hesitantemente, acabou por aceitar e pegou na mão da ruiva, apenas conseguindo murmurar um tímido “obrigado” de agradecimento e sem perceber que havia gaguejando, mas conseguiu levantar do chão duro.

Nesse momento sua mãe apareceu e segurou os ombros do filho e somente com esse toque, Tom percebeu que ela estava tremendo e parecia ser de medo. A mulher se desculpou várias vezes, chamando aquela garota de majestade.

Ela é a princesa? Pensou Tom, enquanto sentia que havia algo de estranho em tudo isso. Os ricos, os nobres, não era suposto que eles tratassem gente como ele e a sua mãe com qualquer tipo de gentileza que fosse. Ninguém tratava os dois normalmente, quem dirá uma pessoa que estava tão acima na hierarquia social?

Mas quando Tom olhou para aqueles olhos verdes tão bonitos, enxergou algo que não estava acostumado a ver em ninguém. Uma genuína gentileza tanto no olhar quanto no sorriso.

Nem mesmo parecia real.


Paul Ⅱ

Haviam algumas particularidades de se trabalhar como ferreiro em uma terra tão gelada. Um bom exemplo era suar naquele ambiente fechado, com uma grande fornalha ao lado, enquanto martelava a lâmina vermelha da espada na bigorna, aos poucos fazendo-a tomar forma. Se saísse imediatamente depois de muitas horas de trabalho, o suor poderia facilmente congelar apenas com o ar frio.

Patryk também gostava de trabalhar nas coisas dele por ali e mesmo que ele falasse que era para lhe fazer companhia, Paul sabia que o verdadeiro motivo era o calor e o jeito que a neve nas roupas derretia em menos de dois minutos depois que se entrava lá dentro. Motivos justos, precisava admitir, não era todo mundo que tinha o privilégio de se aquecer no fogo.

Com o grande e grosseiro alicate, colocou a lâmina vermelha incandescente no balde com água e, imediatamente, o vapor subiu.

Enquanto isso, Patryk trabalhava sentado à mesa não muito longe, com a confecção do arco de madeira, amarrando o fio resistente no arco de madeira.

Os dois tinham aquela loja de armas e utensílios gerais feitos de ferro. Durante cinco dias da semana estavam ocupados com encomendas, pedidos ou fazendo coisas mais simples, que levavam para o pequeno comércio que acontecia por dois dias, depois que a igreja batia os sinos avisando o fim da primeira missa.

Eles viviam assim há anos, juntos, e não costumavam receber muitas visitas ou ter muitos amigos por causa de alguns rumores – a maioria desses que eram verdade – até mesmo, ultimamente, os negócios não estavam indo tão bem e no fundo Paul suspeitava que fosse esse o motivo…

Por isso, quando a figura vestindo a capa de pele afastou o pano improvisado que eles usavam como porta, para entrar, foi uma surpresa.

O recém chegado era alto, bem mais que Patryk, e tinha aquele capuz cobrindo a face, que logo abaixou para revelar o um jovem que sequer tinha pelos direito no rosto. Paul achou ele estranhamente familiar, mas não tinha tanta certeza e, por via das dúvidas, consideraria um estranho.

Ele olhou para os dois homens:

— Com licença, vocês são Paul e Patryk?

— Quem quer saber? — Perguntou com desconfiança e o homem antes ocupado fazendo um arco, também olhou naquela direção.

— O Yuu me disse que vocês moram aqui.

Isso não respondia a sua pergunta, mesmo assim Patryk levantou da cadeira com a expressão preocupada no rosto e se aproximou do do garoto alto. Realmente mais alto que o seu companheiro, que era uma das pessoas mais altas que Paul conheceu na vida.

— Aconteceu alguma coisa com ele!?

— Não realmente… — O estranho olhou ao redor discretamente, para todas as ferramentas de mexer com aço e ferro, antes de voltar atenção para os outros dois homens mais velhos. — Ele disse que vocês podem fazer as nossas armas.

Foi a vez de Paul se afastar da fornalha e, mesmo longe, ainda conseguia escutar o crepitar das chamas. Se aproximou do jovem sem perceber que ainda estava com o martelo em mãos, ainda com aquela suspeita no fundo dos pensamentos.

— E vocês querem armas para…?

Invadir o castelo — Ele sorriu e subitamente a atmosfera pesou ao redor. Observando o silêncio mortal e o olhar chocado dos dois homens, com um simples encolher de ombros, continuou. — matar o rei.


Patryk ⅰ

Naquele dia Patryk saiu cedo de casa a pedido do seu avô, para comprar um pouco de farinha e mel que a sua avó iria precisar para fazer um de pão doce.

Não dava para ver o Sol por causa do céu cinzento repleto de nuvens e estava tão frio como sempre, talvez apenas um pouco mais escuro do que o garoto estava acostumado.

Talvez foi por isso que quando chegou no local onde sempre ia comprar os mantimentos, não havia ninguém para recebê-lo. Será que ainda estava muito cedo, perguntou-se enquanto observava a falta da carroça que deveria estar na frente da fonte de água – congelada quase o tempo inteiro. Deveria esperar alguém chegar? Já havia feito todo o caminho a pé de qualquer modo, não custaria nada.

Patryk afastou boa parte da neve com a mão coberta pelas luvas de lã antes de sentar na pedra gelada da fonte, dessa forma tendo uma visão ampla da rua de pedra irregular.

Entediado, enfiou a mão na bolsa de couro e tirou de lá um livro. A capa estava velha e quebradiça, as páginas eram amarelas e era um artefato realmente raro para estar nas mãos de um garoto que havia acabado de entrar na pré adolescência, mas, desde que aprendeu a ler – o que era outro privilégio – seu avô lhe permitia pegar os livros da pequena livraria. A maioria eram religiosos, de histórias fantásticas e Patryk realmente gostava de todos eles, ao menos nos que tinha conseguido pôr as mãos para ler.

Aquele era um novo, ao menos para o garoto. Havia um relevo apagado no couro, certamente o título, e uma costura firme mantinha todas as páginas unidas.

Abriu a primeira página e se permitiu mergulhar na história fantástica sobre um cavalheiro escolhido por Deus para defender o seu reino, que precisou abdicar da mulher amada para cumprir a missão divina. O ideal era aproveitar enquanto não estava nevando e não havia nada para estragar as folhas.

Patryk leu pelo menos três dúzias de páginas e estava muito concentrado na história, sem prestar real atenção ao entorno e provavelmente foi por isso não viu alguns outros garotos correndo naquela direção.

Era notável a competitividade entre os três, só que o mais baixo entre eles estava ganhando, com bastante vantagem, o que deveria ser a corrida.

Somente quando já estava tarde demais para impedir um acidente, quando aquele garoto gritou para que saísse do caminho, percebeu que já não estava mais sozinho. Nem mesmo teve tempo o suficiente para acatar o aviso. Mas porque diabos ele queria passar bem por cima da borda da fonte? Literalmente a rua inteira estava livre.

Foi como se a tragédia fosse algo planejado, Paul esbarrou em um Patryk que não estava pronto para o impacto de um jeito altamente cômico e que poderia ter sido facilmente evitado, então os dois caíram dentro da fonte congelada.

Ênfase no congelado, aquilo seria verdadeiramente uma tragédia se tivesse deixado o livro acabar completamente arruinado pela água. Nem mesmo se importou de bater a cabeça, desde que o livro ficasse seguro nos seus braços e, principalmente, o gelo não cedesse.

— Caralho, foi mal!

Depois do susto inicial dos primeiros milésimos de segundos abriu os olhos a tempo de ver aquele garoto saindo de cima de si. A primeira coisa que reparou nele foi o cachecol de lã, que cobria o nariz e a boca, e as sobrancelhas grossas e chamativas.

A cidade era relativamente pequena e Patryk vivia por ali desde que se entendía por gente, como diabos existia alguém que ele não lembrava de ter visto?

Percebeu que ele estava oferecendo uma mão para lhe ajudar a levantar, mas ignorando-o prontamente levantou-se sozinho se segurando na pedra para não escorregar no gelo. Quando saiu da zona de perigo que era dentro da fonte, respirou fundo pronto para reclamar e brigar sobre como aquele garoto foi estúpido por ter corrido bem para cima da fonte, mesmo com todos os outros lugares livres na rua. Só não estava preparado para a próxima pergunta dele:

Isso é um livro? — Ele estava com aquelas sobrancelhas grandes franzidas, curioso.

Nesse momento os outros garotos se aproximaram. Um tinha cabelo preto e o outro era loiro, ambos com roupas de frio, sapatos de couro nos pés e não pareciam ter muito mais que a sua idade.

— Sim? — Falou com um discreto tom de zombaria. — Você nunca viu um antes?

— Na verdade não.

As vezes Patryk esquecia dos próprios privilégios. Os outros dois garotos estranhos se entreolharam, mas ficaram quietos.

— Entendi.

— O livro é sobre o que?

Ele aparentava estar verdadeiramente interessado, curioso no mínimo, sobre o livro quando ajeitou o cachecol com as mãos – e, diferente dos outros, não usava luvas. Olhou na sua direção, esperando, enquanto Patryk alternou entre olhar para a capa do livro e o garoto mais baixo.

— Fala de um cavaleiro que recebe a missão de Deus para proteger o reino. — Respondeu meio incerto. — Eu acabei de começar a ler.

— Parece legal.

Há três minutos estava pronto para brigar com aquele garoto e era muito estranho como isso tinha mudado em tão pouco tempo. Mas não pensou muito sobre isso, ele tinha tentado lhe ajudar enquanto Patryk estava pronto para ser esnobe e desagradável.

— Você pode ler?

Mais uma vez foi surpreendido por um pedido que, definitivamente, não estava esperando. Só que também não pensou muito antes de responder:

— Claro…

Descobriu que o nome dele era Paul e que os dois amigos dele se chamavam Yuu e Yanov quanto todos ficaram ali para lhe escutar narrar a história. Sua leitura não era perfeita, mas boa o suficiente para impressionar aqueles garotos e outras pessoas que passavam pela rua, algumas que também pararam para escutar.

Quando a vendedora que Patryk estava esperando no começo de tudo aquilo chegou, precisou parar a leitura para fazer o que seu avô tinha pedido mais cedo – farinha e mel, felizmente ainda lembrava. Enquanto dava as cinco moedas de bronze e meia para a senhorinha da carroça, reparou que Yuu e Yanov haviam ido embora, mas não Paul. Guardou o saco de farinha e o pote de mel na bolsa de couro, junto do livro, quando ele se aproximou.

— Patryk, você tá com tempo para terminar o livro-? Tipo, outro dia, sabe?

— Claro — Sorriu. — eu posso vir aqui amanhã, se não estiver nevando.

Patryk realmente foi para a fonte na manhã seguinte e Paul já estava lá esperando, então continuo indo ler para ele, meia dúzia de páginas ou mais, sempre que podia. E foi assim um tempo considerável até que o garoto se viu, aos poucos, narrando para cada vez mais pessoas que quisessem escutar.


Até que aquilo aconteceu.


Matilda Ⅱ

Kim e Katya eram filhas de dois barões muito próximos da coroa e Matilda não conseguia lembrar da época que as duas não viviam no castelo. Eram as suas damas de companhia desde que começou a usar vestidos, anos atrás, e a princesa realmente gostava bastante delas, por mais que não compreendesse algumas das conversas que as duas jovens – quase mulheres – falavam às vezes.

Era uma malícia que a menina só iria entender anos depois.

Haviam mais algumas coisas que eventualmente Matilda via que acontecia entre as duas, pois esses eram momentos bastante frequentes. A ruiva percebia os olhares diferentes que uma dava para a outra, quando elas seguravam as mãos ou cruzavam os braços, juntas e próximas até demais, durante os passeios no jardim. Os sorrisos e os “eu te amo” também não eram nada discretos, se fosse ser honesta. Quando não passava muito disso, era até bem bonitinho.

Estava andando com Tom pelos corredores do castelo, procurando por Kim e Katya para irem dar um passeio pela cidade, mas não encontrava ambas as jovens em lugar nenhum. Claro que poderia mandar alguns empregados irem atrás das duas, mas qual era a graça disso? A menina tinha pernas e muito tempo livre.

Nesse meio tempo Tom já havia sugerido de irem até os aposentos delas e a princesa não viu mal nenhum nisso. O corredor do quarto que procuravam ficava em uma das áreas mais nobres e com mais janelas do castelo, em que haviam quadros de todos os antigos governantes na parede oposta às janelas, entre uma porta e outra.

Diminuiu os passos quando chegou mais perto dos aposentos que procurava e viu que a porta estava entreaberta, então discretamente olhou pela fresta.

— É aqui-?

O garoto de olhos negros tentou perguntar, mas Matilda cobriu a boca dele com a mão antes que falasse alto ou demais. Levou o indicador aos lábios pedindo por silêncio e ganhou um olhar confuso como resposta, por mais que ainda fosse difícil identificar o que os olhos de Tom queriam dizer.

Dentro daquele quarto realmente estavam Kim e Katya, mas as duas estavam em um momento específico e íntimo demais, trocando beijos em cima da cama. Tom havia chegado há poucos meses no castelo, provavelmente ainda não sabia da natureza do relacionamento daquelas duas garotas e por isso arregalou os olhos quando espiou pela fresta da porta. O rosto ficou vermelho e ele, rapidamente, se afastou dando alguns passos curtos para trás.

Pessoalmente, a ruiva achou aquela reação um pouco exagerada e olhou de um jeito questionador para o menino, que encolheu os ombros nervosamente e murmurou alguma coisa tão baixo que não conseguiu nem mesmo escutar.

Alisou a saia do vestido lilas com as mãos antes de caminhar para longe para dar privacidade a suas amigas, ainda lembrando do quanto Tom ficou nervoso por tão pouca coisa. Não conseguiu não se questionar a razão disso e rapidamente sua mente chegou em uma resposta bastante que poderia considerar bastante tendenciosa.

Tom nunca havia beijado ninguém antes. Bem, provavelmente não.

A carruagem estava esperando pelos dois na frente dos portões do castelo. Dentro era espaçoso na medida do possível, havia aqueles travesseiros nos encostos e assentos para deixar o pequeno ambiente mais confortável de se estar. Do lado de dentro Matilda pediu para que o guia conduzisse os cavalos para fora e logo a carruagem começou a andar.

Enquanto isso a companhia da princesa ainda estava quieta demais. Mais que o normal, pelo menos.

— Tom, você nunca beijou ninguém?

O rosto dele adquiriu uma tonalidade mais vermelha e a ruiva o escutou gaguejar algumas vezes antes de lhe dar algo que não era bem uma resposta, pelo menos não para sua pergunta:

— P-por que isso vem ao caso-? — Se qualquer um escutasse Tom falando assim com a princesa do reino, ficaria horrorizado e, no mínimo, ofendido com a falta de respeito. Matilda apenas apreciava ser tratada como uma pessoa normal.

— Eu apenas fiquei curiosa. — Explicou-se enquanto sorria, aquilo foi mais que o suficiente para confirmar suas suspeitas. — Perdoe-me pela pergunta indelicada.

Uma vez, alguns meses atrás, quando a Rainha recebeu um comerciante muito rico de um reino vizinho e ele ficou por muitas semanas hospedado no castelo, Matilda rapidamente se aproximou do filho do homem, um garoto mais ou menos da sua idade, no máximo um ano ou dois mais velho.

Ela e Mark flertaram por um tempo e ele foi ousado o suficiente para beijar a princesa quando não haviam olhos curiosos por perto. Não que Matilda não tivesse gostado, mas a paixonite que teve pelo loiro não durou muito tempo, já que ele logo foi embora.

Olhando para o rosto corado de Tom, a ruiva desejou que ele não fosse tão tímido quanto aparentava ser…

Ou ela seria obrigada a tomar uma atitude.


Paul ⅲ

Aquele era um dos raros dias no reino que o Sol dava a graça da sua presença e haviam poucas nuvens no céu. Claro que o frio intenso não diminuiria por nada, mas ao menos não cairia mais neve naquela terra que já era gelada por natureza. Pelo menos não na próxima hora e era tempo mais que o suficiente para Patryk poder ler mais sobre a história daquele cavaleiro de armadura brilhante, como estava sempre descrito no livro.

Desde o dia que Paul pediu para que Pat lesse os livros para ele, aos poucos, aquele pequeno ritual quase diário – quando não nevava de manhã – tomou forma. Primeiro eram apenas ele, Yuu e Yanov e algum tempo depois mais algumas crianças de idades próximas também se interessaram, nenhuma delas sabia ler. Então um dia uma mulher carregando um cesto de feno parou para escutar por tempo demais e, aos poucos e timidamente, mais adultos também apareciam na fonte congelada, quase sempre no mesmo horário, para escutarem a narração.

Quase todos os dias, quase que religiosamente, uma dúzia ou menos de pessoas se faziam presentes ali.

A forma que Patryk contava uma história era hipnotizante, os tons de voz que ele usava conseguiam dar vida durante a leitura:

“Então o nobre homem ajoelhou-se diante do governante do império, oferecendo-lhe com ambas as mãos uma espada que brilhava como se fosse feita de cristal. Ao lado do nobre a princesa observava toda a cena com as duas mãos sobre o peito, aflita, aquele era o homem que ela amava, o cavaleiro mais justo e forte daquelas terras e não respondia a nenhum dos reinos. Mas agora lá estava ele, ajoelhado diante do seu pai, jurando lealdade, apenas para-”

Ei!

Subitamente o garoto precisou para a leitura e todos olharam na direção do recém chegado. Ele vestia um grosso casaco de pele de animal e usava nos pés aquele par de botas que, apenas com um olhar, dava para ver que eram boas e caras. O perfil mais estereotipado possível de um comerciante e, logo de cara, Paul não gostou dele.

— Então é aqui que tu tá ao invés do trabalho!? — Ele foi para perto de um jovem adulto de roupas simples, que o casaco estava até remendado com um tecido diferente, então agarrou o braço dele. — Vagabundeando ao invés de fazer o teu serviço, que tal eu descontar isso do teu salário!?

Todos os outros rostos ali ficaram tensos, nunca era bom desafiar alguém com mais dinheiro e poder, por mais injusta que essa pessoa estivesse sendo. Paul não era muito ligado a essas convenções sociais e estava prestes a fazer alguma coisa que lhe deixaria machucado, mas Yanov, quase que adivinhando os seus próximos movimentos, lhe impediu de desafiar aquele cara idiota.

Soube que deveria ter feito algo assim que ele colocou os olhos em Patryk e no livro:

— Toda essa cena ridícula é por sua causa? — Ele andou para perto do garoto, enquanto também arrastava homem mais jovem como se fosse uma coisa, que se encolheu sem ter para onde ir por causa da fonte atrás. Paul desejou poder chutar a canela daquele velho maldito. — Você tá mesmo lendo pra esses porcos, garoto? Tu não tem mais o que fazer-?

Naquele momento o homem de roupa remendada se soltou e deu alguns passos para longe do patrão, parecendo bastante irritado e descontente. Paul também tinha ficado, quem aquele cara era para os chamar de porcos!? Ele com aquela faixa de gordura embaixo do queixo que realmente lembrava um porco.

Então uma discussão começou entre patrão e empregado, as outras crianças que estavam por ali fugiram e alguns dos mais velhos também ficaram indignados pelo calor do momento. Certamente uma mistura da prepotência daquele comerciante juntamente ao detalhe dele ter interrompido a leitura logo em um momento que parecia bastante crucial para a história. Foi uma discussão generalizada cheia de ofensas que Paul não se deu o trabalho de entender.

O garoto estava, na verdade, prestando atenção ao trio de guardas que faziam a ronda pela cidade se aproximando por causa da confusão. Um deles gritou para que parassem e as pessoas olharam naquela direção com medo, menos o comerciante. O rei daquela terra era conhecido por dar permissão aos soldados de matar plebeus e pobres caso fosse necessário, mas todos sabiam que dificilmente o julgamento deles era justo.

O olhar de um deles – parecia ser o mais velho – sobre Patryk deu a Paul uma impressão ruim. A expressão fechada, ranzinza e o jeito que ele perguntou o que estava acontecendo apenas piorou tudo.

— Foram esses garotos fazendo bagunça no meio da rua! — O homem acusou apontando o dedo na direção dos dois.

Sua vontade foi de empurrar Patryk para que fugissem do local, pois ficar jamais poderia ter um bom final. Mas ele não era como Paul, nunca foi acusado injustamente apenas com o julgamento inconsistente das roupas que vestia e por isso não sabia quando era a hora de correr. E já havia passado dessa hora.

Só não estava esperando que alguém fosse os defender:

— Deixe essas crianças em paz, seu velho canalha! — Uma mulher gritou no meio das pessoas. Ela era magra, baixa e com as bochechas magras, como todas as outras pessoas ali que também não se alimentavam muito bem. — Eles não fizeram nada!

O comerciante ignorou-a completamente e falou para que os guardas fizessem alguma coisa, enquanto isso também haviam olhares curiosos observando a cena se desenrolar de longe. As nuvens cobriram o Sol e começou a nevar, como sempre nevava todos os dias.

Um dos homens de armadura perdeu a paciência, arrancou o livro das mãos de Patryk e no mesmo segundo Paul tentou ir para cima dele, fazer alguma coisa. Apenas tentou, já que um empurrão com um braço só foi mais que o suficiente para levá-lo ao chão.

— Se o problema é só essa merda — Ele olhou para o livro com desdém antes de arrancar várias páginas do couro. — então acho que tá resolvido.

O homem soltou as páginas amareladas e elas voaram indiscriminadamente para todos os lados, aterrissando no chão úmido de neve.


Tom ⅱ

Os eventos que se seguiram após o dia que a princesa Matilda, sem nenhum motivo aparente, ajudou Tom foram apenas bons demais para serem verdade. Havia algo que muito atípico na gentileza da princesa em oferecer um emprego no castelo para a sua mãe apenas ao escutar a mulher falando sobre sua história e situação, um trabalho que, em pouco tempo, rendeu dinheiro o suficiente para pagar pela dívida sem que o garoto precisasse trabalhar.

Agora eles estavam morando nos arredores do castelo, em uma casa relativamente mais confortável se comparada a anterior e tinha uma vida muito, muito melhor. A sua mãe estava muito feliz, conseguia ver isso nos olhos dela por finalmente ter dinheiro para alimentar os dois todos os dias e não sentir mais a dor da fome. Tom também estava feliz, mas…

As pessoas não eram tão boas assim, ninguém oferecia nada de bom a gente como ele e sua mãe, que tinham aqueles olhos estranhos.

Então tudo ficou cada vez mais estranho. Foi questão de poucos meses, de uma hora para a outra Tom tornou-se uma das companhias mais frequentes da jovem princesa e ela lhe tratava muito bem, bem até demais. Haviam também Kim e Katya, as duas damas de companhia de Matilda que eram apenas alguns anos mais velhas, mas elas, no geral, também não tinham problemas com o garoto.

Estava cercado de pessoas que não lhe olhavam feio apenas pelos seus olhos e era estranho. Era esquisito não precisar mais trabalhar para ajudar sua mãe com o dinheiro. Era completamente atípico que realmente tivesse uma cama de palha para dormir a noite e ela não fedesse a podre e coisa velha.

Estava tudo muito bem e não conseguia afastar aquela sensação de que logo acordaria deste sonho e voltaria para a sua antiga vida patética, enquanto a sua mãe apenas lhe falava para sempre ser grato.

Agora tinha a oportunidade de ver e estar em lugares tão bonitos e fora da sua antiga realidade, como aquele jardim, uma paisagem que nunca na sua vida poderia imaginar que fosse tão palpável, tão real. Estava naquele banco de pedra esculpido a mão, com as damas de companhia e a própria princesa junto. A monarca ocupava o centro, Tom estava à direita dela e Katya a esquerda, enquanto Kim parecia muito confortável sentada no chão com o braço e a cabeça apoiada na perna da outra loira. Elas duas eram próximas de um jeito que não entendia.

Enquanto permaneceu em silêncio, as outras três garotas conversavam animadamente sobre todos aqueles assuntos que ainda pareciam bastante fúteis para Tom, mas certamente típicos para os favorecidos sócio e economicamente desde o nascimento como elas eram. No geral, ainda se sentia um pouco deslocado quando as atividades e brincadeiras não consistiam em correr.

— Tom?

Só não esperava que alguém fosse lhe chamar para a conversa e quando virou o rosto, prestou mais atenção, viu que os olhos azuis de Kim estavam focados na sua direção. Logo tratou de responder, mas sem saber muito bem o que deveria falar:

— Sim?

Por que os seus olhos são assim?

Uma sensação ruim subiu pelo seu estômago, não era nada verdadeiramente físico, mas parecia muito. Ao mesmo tempo, sentiu que já havia demorado tempo demais para algo assim acontecer, as coisas nunca poderiam ser boas por muito tempo, não é?

Ao mesmo tempo, Katya se pronunciou antes que tivesse a chance de falar qualquer coisa, repreendendo a amiga “Kim, isso não é coisa que se fale!” enquanto a empurrou para longe do colo, de um jeito que parecia ligeiramente nervoso, mas a loira soube disfarçar muito bem.

Matilda apenas estava quieta no meio, observando a cena toda se desenrolar e olhando especialmente para Tom.

Eu não sei? — Sabia que tinha soado grosseiro, mas não conseguiria se importar no momento. — Nasci assim, você tem algum problema?

— Sinceramente, eu só estou curiosa. — Ela respondeu sorrindo tranquilamente, não parecendo ligar para a grosseria. — Perdoe-me se foi uma pergunta invasiva.

Tom não sabia o significado de invasivo, talvez por isso não acreditou naquele pedido de desculpas logo de cara.

— Eu acho os seus olhos bonitos, Tom!

A princesa sorriu e o garoto sentiu toda aquela raiva de antes dissolver, como se escapasse por entre os dedos e nunca tivesse existido. De repente também ficou envergonhado, mesmo sem compreender exatamente o motivo e demorou segundos até demais para dar a ruiva qualquer resposta que fosse, sem falar que foi capaz de gaguejar em uma única mísera palavra:

Obrigado…?

Não notou quando Kim, agora de pé, soltou um riso baixo e nem reparou na cotovelada discreta e leve que Katya deu nela, apesar ela também estar com um sorriso pequeno.


Patryk Ⅱ

Patryk sabia que Paul ainda estava bastante desconfiado com toda a história que Edd contou no dia que se conheceram, quando ele chamou os dois para conspirar a favor de um regicídio, apesar de não terem se conhecido a pouco mais de quarenta minutos. Não conversaram por tempo o suficiente e a história foi bastante vaga, por isso que não entendeu muito bem o que levou Paul a confiar o suficiente no estranho para concordar com a tal revolução.

Na verdade, poderia até entender pois existiam motivos, ainda sim… Por mais que ele soubesse de toda a história e os motivos fossem desrespeito a ambos, havia tudo acontecido há muito tempo. O incêndio, o dia que Paul foi expulso de casa… Havia bastante coisa.

Haviam-se passado alguns dias desde a primeira visita e na segunda vez Edd foi até lá para pedir que fossem com ele, já que os dois eram os poucos no reino que poderiam fazer as armas e precisavam saber quantas, quais e como seria a estratégia.

Uma reunião dentro da floresta não era muito conveniente e nem mesmo passava credibilidade ou confiança, mas com certeza era mais seguro falar sobre o assassinato do Rei ali do que em qualquer lugar da cidade. O problema é que não existia tecidos o suficiente no mundo para se manter longe de todo aquele frio cortante, que faziam os ossos doerem, enquanto estavam entre as árvores escuras. Nem mesmo parecia que era dia.

Então, depois de um tempo relativamente longo de caminhada por uma trilha que apenas Edd conhecia, chegaram na casa feita de pedra a beira de um riacho. Uma fumaça escura saia da chaminé também de pedra em direção do céu cinza. O conjunto da paisagem toda fazia com que parecesse bastante com as casas de bruxas que Patryk leu em muitos dos seus antigos livros, mas bruxas eram apenas lendas.

O mais alto dos três tomou a frente enquanto Paul segurou discretamente a sua mão, lhe impedindo de continuar imediatamente. Virou o rosto para encará-lo e viu aquela seriedade que já era tão acostumado, que aparecia no semblante dele sempre que havia algo que fugia do controle dos dois, como um pedido silencioso para que tomasse cuidado.

Agora de mãos dadas foram para a casa de pedra em que a porta tinha sido recém aberta por Edd.

Não havia nada muito chamativo do lado de dentro, na realidade mal haviam móveis além de uma cadeira, uma mesa e um fogão a lenha, tudo no mesmo cômodo. O lugar também era pequeno, meio claustrofóbico e, mesmo quem não entendia de construção, conseguia ver que havia algo de errado na estrutura da casa e em como as vigas de madeira não pareciam capazes de aguentar o peso do teto junto com a neve.

Como o local era pequeno o que imediatamente chamou atenção de Patryk foi o garoto de estatura baixa e com o cabelo bagunçado daquele jeito estranho – lembravam vagamente chifres? – e poderia jurar que já havia visto-o antes. Ele abriu um sorriso que, se prestasse atenção o suficiente, veria que havia um dente quebrado na lateral da arcada dentária. Mas, no geral, bem simpático. Ele estava sentando com um conforto que não parecia que aquela cadeira poderia proporcionar e aparentando estar tranquilo com a situação toda.

Como se não estivesse planejando cometer um crime.

— Paul e Patryk, certo? O Yuu disse que vocês são os mais confiáveis para essa encomenda.

Paul soltou sua mão naquele momento, ainda sem abaixar a guarda:

E quem é você?

— Onde estão os meus modos? Podem me chamar de Tord. — A postura confiante dele não combinava muito com a aparência magra e as roupas de qualidade ruim. — Eu sei que vocês ainda devem estar muito desconfiados com toda essa história de armar os meus homens para invadir o castelo, mas eu garanto que posso explicar tudo.

Que homens?

Edd, que estava de pé um pouco atrás de Tord, tentou conter o riso e não conseguiu, chegou a cobrir a boca com a mão, mas não ajudou realmente a disfarçar. Então ele despiu-se daquela pose séria e falou:

Agora ele te pegou, Tord

— Você não vai nem tentar me defender? — ‘Ah, não? Errado esse cara não tá’ Edd respondeu quase no mesmo instante e Tord esfregou a mão no rosto, mas os ombros dele tremeram levemente e quando tirou a mão da frente ele estava com um sorrisinho. — Isso é mentira, fora esse gigante aqui, Yu e Yanov também já concordaram. É só uma questão de tempo.

— Você também conhece o Yanov? — Paul questionou franzindo aquelas sobrancelhas. Mesmo quieto, Patryk também estava achando aquilo uma coincidência estranha demais. — A gente não fala com eles dois há… muitos anos.

Na realidade sequer tinha certezs se estavam vivos, era bastante tranquilizante que finalmente tivesse algumas notícias sobre eles, mesmo sendo por informações de segundos.

— Eles comentaram a mesma coisa. — Tord alternou o olhar entre os dois homens de pé do outro lado da mesa, pensando. — E também falaram que vocês teriam motivos para se aliarem a minha pequena revolução?

Paul virou levemente o rosto para Patryk e discretamente segurou a sua mão, esperando junto de um silêncio respeitoso.

Yuu e Yanov não sabiam da história inteira, inferno, nem mesmo Patryk poderia ter certeza absoluta, nem tinha conhecimento de todos os motivos e sequer poderia dizer se eles eram todos reais. Mas que os homens da coroa haviam não só queimado a sua casa quase dez anos atrás, como também matado os seus avós no processo, como se eles tivessem algo a ver com os supostos erros que cometeu no passado.

Lembrava especialmente do fogo, com muito mais detalhes do que gostaria. Encarou Paul de volta e apertou levemente a mão dele, mas isso não durou muito mais que um instante e então voltou a atenção de volta para Tord:

Talvez a gente tenha.

— Eu não sei se isso é algo bom ou ruim de saber — Ele escolhia muito bem as palavras, bem demais para alguém com uma aparência tão miserável. — mas creio que posso contar com vocês dois para me ajudarem a fazer justiça, não posso?

Sim, ele podia.


Matilda ⅲ

O salão no andar de baixo, que tinha aquela grande varanda com visão panorâmica para o jardim, era o local favorito em que a avó de Matilda, a rainha, gostava de ficar quando era a hora do chá. A princesa normalmente gostava de acompanhá-la e estava sempre feliz em participar ativamente da vida da avó, mas naquele dia algo estava diferente.

A princesa se sentia um pouco triste por ter reparado em algumas coisas que nunca tinha parado para prestar atenção antes. Talvez fosse a convivência diária, mas nunca havia realmente parado para observar como as suas damas de companhia, Kim e Katya, haviam mudado com o passar do tempo… Enquanto a garota continuava, basicamente, com o mesmo corpo.

Não estava acostumada a não gostar da própria aparência, Matilda era muito bonita e sabia bem disso, gostava sempre de estar arrumada e se vestir bem, mas sentia-se cada vez mais insegura ao perceber que o seu corpo não era e jamais seria tão feminino quanto desejava.

Enquanto encarava o chá inerte dentro da xícara de porcelana, a ruiva pensou em muitas coisas que nunca tinha pensado antes, com uma melancolia que com certeza era completamente atípica da sua parte e isso não passou despercebido pelos olhos da rainha que preocupada, perguntou:

— Querida, existe alguma coisa te incomodando?

— Eu estava pensando — A garota hesitou um pouco antes de continuar, procurando as palavras certas e não achando nenhuma. — Por que eu não sou como as outras meninas?

A resposta imediata da senhora de roupas reais foi um longo e pensativo olhar:

— Do que você está falando, docinho?

— Eu sei que sou diferente, vovó, sempre soube disso… — Era realmente difícil de colocar em palavras o que estava pensando, mas sabia que podia confiar na sua avó para confessar como se sentia. — E eu sei que sou uma menina, mas por que eu não posso ser como as outras?

— Mas você é como as outras, creio que ainda mais bonita. — A rainha sorriu tranquilamente, compreensiva e mesmo assim as rugas não ficaram realmente evidentes. Ela não aparentava ter tanta idade. — Se você sabe que é uma menina, não precisa se questionar sobre isso.

Apesar de as palavras apaziguadoras de sua avó, a menina não conseguia deixar de se sentir estranha, até mesmo errada, quando lembrava de como eram as outras meninas da sua idade. Não estava acostumada a sentir aquela insegurança que parecia queimar o seu estômago.

A mulher, preocupando-se com a falta de resposta de sua neta, começou a falar novamente:

— Sabe Matilda, eu tinha um irmão que era exatamente como você. — Os olhos verdes da menina se direcionaram na senhora, atentos. — Ele era o combatente mais habilidoso do reino todo, o melhor arqueiro e o mais bravo guerreiro que eu conheci na minha vida. Mesmo sendo diferente dos outros homens, diferente como você é das outras meninas, mas isso nunca significou nada.

Subitamente a menina ficou curiosa:

— Se ele era tão grande assim, como eu nunca ouvi falar dele antes?

— Os nossos pais não enxergam o quanto ele era diferente e especial. — A rainha mexeu levemente o chá dentro da xícara, pensativa e de repente parecendo melancólica. — Eles foram tão ruins e incompreensivos com o meu irmão que eu o perdi para sempre. Nem mesmo nos livros, documentos ou nos quadros existem imagens de quem ele realmente era, apenas do jeito que os nossos pais queriam que ele fosse.

A princesa ficou quieta no início, pois estava completamente sem palavras. Murmurou um pedido de desculpas para a avó, mas sem saber exatamente pelo que estava se desculpando. Deveria ter sido horrível para o irmão dela, a menina não sabia se teria forças para viver fingindo ser algo que não era se algum dia precisasse.

Isso é horrível

— Sim, querida, é horrível. — Ela colocou a xícara de chá na mesinha de madeira, mesmo que ainda não tivesse terminado. — Eu lembrei dele quando vi você, pela primeira vez, pegar um dos meus vestidos para usar. No mesmo dia mandei que as costureiras fizessem vários só para você. Matilda, não importa se algum dia alguém discordar, você é a princesa mais bonita de todos os doze reinos.

A menina deu o sorriso mais brilhante e bonito que pode para a sua avó, enquanto concordava alegremente com a cabeça.

Haviam partes daquela história que a rainha não contou, por exemplo, do dia que mataram o cavalo dele para que ele parasse de cavalgar, sobre como o seu irmão tinha sido forçado a se casar com outro homem e de como ele se matou enforcado no dia do casamento. Mas nada disso Matilda precisava saber.

Enquanto vivesse, jamais permitiria que a sua neta passasse por nada parecido.


Paul Ⅳ

O desespero que Paul sentiu quando um dos guardas quase cortou a barriga de Patryk com a espada não poderia ser medido em palavras. Não tinha experiência numa batalha real, nenhum deles tinha, nunca havia matado um homem sequer na vida e a falta de hesitação ao fazê-lo pela primeira vez provavelmente era algo a se reparar.

Largou o escudo e segurou a espada com as duas mãos, indo para o meio daquele duelo para qual não havia sido chamado, parando a espada do soldado antes que ela pudesse ter a chance de tentar atingir Patryk novamente. Mirou a lâmina na garganta, em uma parte que a armadura dele não protegia e colocou a própria integridade física em risco para enfiar a espada da jugular de um homem que sequer viu o rosto. Tão rápido quanto cortou o pescoço dele, tirou a espada.

Só percebeu o que realmente fez quando o sangue jorrou e o soldado caiu morto no chão, manchando a neve ao redor de vermelho. Não particularmente chocante se comparada com a batalha sangrenta que acontecia ao redor, naquele exato momento, mas deixou Paul pessoalmente incomodado.

Sabia que seria assim, que precisavam ganhar tempo para que Tord conseguisse invadir o castelo e assassinar o rei. Soube que teria que matar, mas, agora diante de uma cena tão grotesca, não deixou de questionar as próprias atitudes.

Mas tinha certeza que as questionaria ainda mais se não tivesse conseguido salvar Patryk.

Não houve muito planejamento antes da batalha, Tord apenas quis juntar homens o suficiente e dar o tempo necessário para que Paul e Patryk produzissem algumas – bastantes, na verdade – armas de segunda mão. Pouco antes do amanhecer as quatro dúzia de rebeldes invadiram o castelo e mataram todos os guardas de prontidão os que faziam ronda, mas logo mais chegaram. Muito mais bem armados e protegidos.

Quem invadiu o castelo teve o elemento surpresa do seu lado para balancear um pouco a batalha, conseguiram ficar por dentro dos muros e essa estratégia facilitou para que um par de coisas acontecesse… Mas onde estava Tord?

Havia visto ele invadir o castelo pela porta da frente, enquanto os homens matavam os guardas de prontidão no pátio e nos muros, e ainda sem sinal dele. O homem – ainda praticamente um garoto, era estranho pensar que ele pelo menos uns oito anos mais novo. – não havia especificado muito o plano do assassinato real. Ele só deu aquele sorriso estranho, olhou para a lâmina da espada e disse que cortaria fora a cabeça do rei, como se fosse a coisa mais fácil do mundo.

Paul defendeu-se com a arma da investida de um soldado e, ao mesmo tempo, um corpo caiu dos céus no meio do pátio, perto da porta dupla de madeira e a atenção imediatas de todos se voltou para a cena pois havia algo de muito específico nas vestes daquele morto sem cabeça.

Acima de todos no pátio, observando a batalha, finalmente Tord havia aparecido e ele estava com aquele mesmo sorriso cruel de quando disse que cortaria a cabeça do rei, como se aquilo fosse um sonho.

Quando todos os sons da batalha cessaram, quando alguns soldados largaram suas armas, de repente as nuvens cinzentas se dissiparam para revelar o Sol, que era um raro acontecimento. Como um recado para que todos pudessem ver tal cena com clareza.

Em uma pequena varanda de pedra, segurando pelos cabelos aquela cabeça separada do corpo e exibindo-a para todos como se fosse algum tipo de troféu fúnebre, Tord havia realizado o sonho de matar o rei.


Tom Ⅲ

Tom não sabia se uma coisa era relacionada a outra, mas desde que começou a morar no castelo anos atrás, também tinha parado de ir a cidade com tanta frequência. E, se aquele dia especificamente não fosse atípico, as coisas haviam mudado bastante nesse pouco tempo. Ao menos na parte central da cidade, com aquela feira cheia de objetos estrangeiros e alguns especialmente coloridos, bem diferente do que se lembrava que se vendia por ali. Haviam pessoas com tecidos pesados de couro, bebidas quentes e destiladas vindas do Norte, até óleos, perfumes, incensos, pedras coloridas e diversas especiarias e temperos que eram mais comuns nas terras distantes, bem depois dos Desertos.

Cheiros, objetos, roupas e pessoas que Tom não estava familiarizado enfeitavam a paisagem de modo que ele sentia estar em um daqueles místicos e distantes reinos, mesmo que nunca tivesse colocado um pé para fora da seu próprio reino.

Mas não estava no meio daquela feira porque iria comprar alguma coisa, na realidade o rapaz tinha saído do castelo por ordens da rainha para supervisionar, literalmente, alguns refugiados de guerra de um pequeno reino que, quando existia, era um aliado bastante próspero da Coroa. Isso até o Exército Vermelho trouxe o sangue e a guerra até aquelas terras, matar os governantes e deixar o reino na mais profunda e completa crise.

O tal Exército vermelho em si era como um terrível agente do caos que tinha surgido de algum lugar das montanhas de gelo no Norte e cresceu em proporções que ninguém jamais poderia prever. Os objetivos por trás de todas as conquistas e mortes que eles acumulavam ainda era bastante nublado e incerto para quem observava tudo por fora e de longe.

Mas os danos causados pelo Líder Vermelho eram absolutamente irreparáveis, assassinando gerações inteiras de famílias reais por todo o continente e causando um pandemônio generalizado. Muitas pessoas agora estavam sem casa, sem comida e sem condições de se manter, procurando abrigo onde quer que os aceitassem.

Por isso Tom estava, juntamente com mais alguns outros guardas reais, a caminho dos portões principais do muro ao redor da cidade, o local onde mais daquelas pessoas na miséria estavam aglomeradas.

A rainha havia ordenado para que levassem água e comida até essas pessoas, vissem se haviam muitos feridos, doentes e crianças desacompanhadas, juntassem essas informações e levassem de volta, para que ela pudesse planejar tudo com mais cuidado, dar uma assistência melhor a quem precisasse.

Não era atoa que o povo sempre simpatizou com a soberana que tinha muitas daquelas visões utópicas e sempre tentava aplicá-las ao seu modo de governar. Tom lembrava de certa vez, quando estava com Matilda que ela lhe questionou como era a sua vida antes e ele contou tudo, a pobreza, a sujeira, as casas em estado deplorável. Em torno de um ano depois, quando precisou fazer patrulha para aqueles lados, quase não conseguiu reconhecer o lugar.

Aquela senhora séria e elegante ao menos parecia verdadeiramente preocupada com tudo que envolvia o seu reino, o que, aparentemente, não era uma atitude muito comum entre a maioria dos reis e rainhas.

No meio daquelas pessoas Tom também escutou mais e mais sobre vilarejos inteiros queimados, sobre execuções públicas e as mais variadas histórias de guerra. Uma mulher falou que quando tinha visto o tal Líder Vermelho, parecia que havia um tipo de demônio acompanhando-o em sua sombra.

A maioria de quem estava ali eram pessoas que não aceitaram se submeter a um novo tipo de governo e por isso perderam tudo.

Isso tudo também poderia explicar a massiva oferta de comércio de produtos do Norte, as pessoas lá estavam fugindo, mas era apenas uma suposição. Claro que aquele lado do mundo foi o recentemente mais afetado, mas também tinham outras pessoas, especialmente gente dos Vales de um perigo que parecia iminente demais para valer qualquer risco que fosse.

Tom já ouviu falar de muitas histórias antigas sobre guerras de uma época que não viveu, mas nada nunca esteve tão próximo da sua realidade e a sensação ruim, o mau presságio, eram reais.

Estava com aquela impressão de que, cedo ou tarde, precisaria lidar com tudo aquilo também.


Matilda ⅳ

Sentada em um banquinho, com os cotovelos apoiados no parapeito da varanda e as duas mãos segurando o rosto, a princesa tinha uma vista privilegiada do local onde a guarda real treinava. Era um terreno amplo, feito de terra pisada e marrom escura de frente para uma das torres mais baixas do castelo e exatamente do lado oposto do jardim. Lá também ficava o estábulo e o armazém real, só que não era uma paisagem com nada muito interessante ou bonito para observar por tanto tempo.

Na verdade Matilda estava olhando Tom treinar. Ele havia entrado na guarda real há alguns meses e a mudança de rotina já estava fazendo uma mudança visual bastante aparente, em compensação a quantidade de tempo livre tinha diminuído.

Enquanto isso, a garota estava cada vez mais ocupada com suas responsabilidades como alguém da família real, com aulas de etiqueta, filosofia, política e até matemática. Agora precisava ajudar a sua avó com diversas questões e a senhora fazia questão que estivesse presente, sempre dizendo que toda e qualquer experiência iria ajudá-la na hora que se tornasse rainha.

Aquele era um dia atípico, quando não tinha aulas ou deveres, mas infelizmente não era sempre que os horários dela e de Tom coincidiam.

Tirou o cabelo do rosto endireitando a postura na cadeira, sem perceber que também estava sendo observada naquele exato momento e nem reparou em como Kim e Katya subitamente pararam de conversar.

Matilda?

Sem prestar real atenção, virou o rosto para as duas damas e respondeu com um “sim?” distraído, mas sentiu o rosto esquentar de vergonha quando Kim cobriu a boca com a mão e riu discretamente.

— O que você está olhando de tão interessante aí? — A loira de pele bronzeada e vestido vermelho, que tinha esse decote especialmente revelador, levantou-se do lugar perto de Katya e foi para perto da princesa. Ela estreitou os olhos e sorriu provocantemente quando viu que era Tom na área de treino, que naquele momento tinha acabado de ganhar um duelo. — Entendi…

Rapidamente a ruiva se afastou da varanda e sentou-se em um dos lugares vagos na mesa redonda, em que tinha taças com bebidas e um pouco de pão e biscoitos em uma prato dourado. Mas não esperava que Katya fosse insistir:

Então… você gosta dele?

Ela questionou olhando para Matilda, com o cotovelo apoiado na mesa e a mão em uma cabeça, enquanto sorria de um jeito repleto de segundas intenções. Revirou os olhos e pegou a sua taça e bebeu um pouco daquele vinho doce e aguado, querendo engolir a vergonha junto com a bebida:

— De onde vocês tiraram isso?

Katya soltou um outro riso e alisou a manga do vestido azul, mas dessa vez foi Kim que ocupou o local livre ao lado da ruiva e começou a falar:

— Matilda, você não para de olhar para ele, nem por um segundo. É tão óbvio que nos deixa impaciente. — Katya concordou com um breve e discreto aceno de cabeça, sem deixar de sorrir. — Sinceramente, eu não sei o que você está esperando para agarrar o Tom.

Teria engasgado com o vinho se ainda estivesse bebendo, então arregalou os olhos na direção da dama de companhia, que apenas sorria como se não tivesse falado nada demais. Normalmente Matilda não tinha problemas em falar ou fofocar sobre aqueles assuntos, mas quando envolvia Tom parecia apenas muito diferente de várias formas e não conseguia compreender exatamente qual o motivo para se sentir assim.

Quis formular uma resposta, mas gaguejou vergonhosamente na primeira tentativa e não teve realmente tempo para tentar de novo, pois logo Katya tomou a palavra:

— Ele também gosta de você, eu consigo ver isso a milhas de distância. — A forma despreocupada que ela soava, até mesmo casual, fez a princesa desviar o olhar para a própria taça por um instante.

Sinceramente… Matilda já tinha reparado em algo assim antes, mas nunca juntou coragem o suficiente para fazer o que sentia vontade, que era segurar a mão de Tom e beijá-lo nos lábios. Apenas por imaginar isso sentiu o rosto queimar furiosamente e o cobriu com as duas mãos, pateticamente.

C-como você pode ter tanta certeza?

Pois, na realidade, a ruiva somente tinha percebido que ele ainda agia um pouco contido, até mesmo travado, ao redor dela e por causa disso temia sair da sua zona de conforto. Fazia muito mais sentido que Tom apenas estivesse nervoso por falar com a princesa do que qualquer outra coisa e ela não queria empurrá-lo em qualquer situação que pudesse deixá-lo desconfortável.

Tirou as mãos do rosto e suspirou, observando as duas damas de companhia.

— É o jeito que vocês se olham. — Dessa vez foi Kim que respondeu. — E como ninguém tem coragem de fazer nada. O Tom, ele parece bastante tímido e eu estou, honestamente, impressionada por você não ter percebido nada antes.

— Eu aposto que se ela não der o primeiro beijo, nada nunca vai acontecer.

Katya falou brincando, mas as duas loira riram e deixaram Matilda pensando consigo mesma. Não tinha nada a perder se fosse conversar com Tom sobre isso, não era? Ponderou tentando ter mais daquela confiança que estava acostumada. Sim, iria falar com ele… eventualmente.


Patryk ⅲ

Patryk estava sozinho em casa – que também era a livraria dos seus avós – quando escutou as batidas na porta da frente e foi até lá se perguntando quem poderia ser. Sabia que os seus avôs voltariam apenas depois do pôr do Sol e naquele horário a livraria já estava fechada. Sem muitos palpites e nem expectativas, abriu a porta para ver Paul parado do lado de fora com a neve caindo indiscriminadamente na paisagem dele e os braços encolhidos ao redor do corpo por causa do frio frio. Ele deu um sorriso torto:

Ei-

— Você sabe onde eu moro? — Foi a primeira coisa que passou pela sua cabeça e saiu da sua boca, nem mesmo pensou em se conter.

Eu sei…? — Paul encolheu os ombros, despreocupadamente. — Você disse que morava em uma livraria, mas só tem uma livraria na cidade.

Certo, fazia sentido. Como estava muito frio, convidou o outro garoto para entrar e ali dentro estava realmente mais quente do que do lado de fora. Apesar de a lareira acesa ser perigosamente próxima das estantes de madeira maciça, todas elas cheia de livros. O teto era apenas um pouco mais alto que o normal, mas as vigas de madeira estavam todas expostas.

Imediatamente Paul foi para perto do fogo esquentar as mãos, soltando um gemido fraco e aliviado. “Se eu soubesse que você tinha uma lareira, teria vindo antes-!” O jeito que ele falou não pareceu sério, porém Patryk sentiu aquela sensação ruim no estômago mesmo assim. Mas ignorou.

Não havia nenhum lugar onde pudessem se sentar nos arredores, por isso os dois ficaram de pé perto da fonte de calor.

— Então, algum motivo em especial para essa visita?

Ele virou a cabeça levemente na sua direção, um pouco pensativo demais e passou a língua pelo lábio superior antes de falar, parecendo um gesto meio nervoso:

— Eu vim saber como você tá’ depois daquilo

— Eu tô bem- — Seu avô tinha lhe batido um pouco depois que trouxe o livro em pedaços de volta para casa, mas não haviam ficado marcas. Apesar de que, depois disso, ele não confiava mais os livros ao neto fora de casa. — Só não posso mais tirar os livros daqui.

Também não tinha certeza se poderia ter deixado Paul entrar, mas seu avô não tinha especificado nada sobre receber pessoas, sim sair de casa. Estava feliz por Paul ter aparecido ali, se fosse ser honesto.

— Entendi. — Quando olhou para o outro garoto ele estava com as mãos próximas do rosto, encarando o fogo crepitando na lareira. Ele virou o rosto na sua direção, com um tipo de incerteza no olhar. — Então você não vai mais ler-? Tipo…

Eu poderia, você poderia vir aqui… — Só depois de falar que achou aquela frase estranha, por isso rapidamente tentou se corrigir. — Se tu quiser, claro.

Claro que eu quero-!

Por que, de repente, parecia que eles não estavam mais falando de livros? Mas ao mesmo tempo era apenas sobre isso. Claro que havia aquele clima estranha entre os dois e Patryk teria que ser muito lento para não notar, já sabia que não era coisa da sua cabeça.

Então ficaram se encarando por um tempo consideravelmente longo, passando bastante do que seria uma troca de olhares normal. Precisou desviar o olhar quando sentiu a vergonha subir pelo rosto, procurando incessantemente por algum assunto, qualquer assunto, naquele pequeno espaço de três a cinco segundos:

— E-eu acho que sei de um livro por aqui que você vai gostar…

Se afastou nervosamente do outro garoto enquanto também virava as costas, indo para perto da estante mais próxima da lareira, logo ao lado, e passando os olhos pelos títulos apagados e desgastados sem ter certeza do que estava procurando.

Só escutou alguns passos, o seu coração batia forte e agitado demais dentro do peito juntamente com um nervosismo que não estava acostumado. Não era exatamente medo, mas uma ansiedade esquisita que não conseguiria por em palavras.

Pat?

Quando deu as costas para a estante de livros, pode ter certeza de como Paul estava perto. Perto demais. Encarou ele de volta sem saber o que fazer, com um silêncio que fez aquela estranha ansiedade aumentar. Era aquele tipo de atmosfera que subitamente aparecia no ar quando ficava sozinho com Paul, bem, não exatamente como estava naquele momento e normalmente era em graus bem menos óbvios. Agora havia aquela coisa tão real no ambiente, que Patryk tinha a impressão que poderia pegar com as mãos se tentasse o suficiente.

Sentiu que deveria falar algo, mas não encontrou nem uma palavra sequer. Viu que Paul estava se aproximando e deu um passo que não poderia ter dado para trás, acabando por esbarrar nos livros. Alguma coisa caiu, mas não conseguiria prestar atenção naquilo nem se quisesse.

Não depois que Paul lhe beijou.

Inicialmente foi apenas algo como um selinho, enquanto Patryk segurou nos ombros do mais baixo com os olhos arregalados. Apesar de o susto inicial, aquilo pareceu a coisa mais certa do mundo a se fazer e por isso, quando o beijo foi para algo mais além de um simples encostar de lábios, fechou os olhos e permitiu-se aproveitar melhor o momento.

Quando o ar faltou e os dois precisaram se separar, única coisa que Patryk se arrependeu daquilo tudo foi de não ter beijado Paul mais cedo.


Paul Ⅴ

Depois de montarem o cerco ao redor dos muros daquele reino, era apenas uma questão de tempo para tudo terminar. O inimigo poderia estar muito bem protegido pela muralha alta, mas Yanov havia descoberto que a colheita não foi boa e o povo já estava passando fome, agora que ninguém poderia entrar ou sair era apenas precisava dar tempo ao tempo até os soldados do lado de dentro ficarem cada vez mais fracos e a fome despertar a raiva no povo.

Tord era um estrategista impiedoso quando se tratava de conquistar e não tinha escrúpulos para conseguir o que queria.

Não tinha como ter certeza quanto tempo teriam que ficar ali, mas, normalmente nunca era muito.

Estava anoitecendo quando terminaram de montar a barraca no meio do acampamento militar, que também era o cerco. Desde aquela primeira conquista, apenas meses atrás, o discurso de Tord já havia convencido muitas pessoas a se juntarem à causa – ao que ele pessoalmente chamava de revolução. – e agora aquele era verdadeiramente um exército que conquistava castelos e cidades inteiras.

Ele como líder, por si só, já era bem diferente da maioria das figuras de poder apenas por conviver e conversar com pessoas de todas as classes sociais como se fossem iguais – com uma pequena exceção em relação a minoria da população composta de nobres, ricos e reis, em que a preferência de Tord era sempre prender ou cortar a cabeça.

Isso bastou para que ganhasse a simpatia de muitas pessoas que viviam em situações insalubres e injustas, inclusive a de Paul.

Ele, Pat, Yuu e Yanov estavam em posições especialmente privilegiadas nos batalhões, enquanto Edd era, praticamente o segundo no comando depois do próprio Tord. Nada tinha sido dito em voz alta ou era algo oficial. No começo, Paul e Patryk haviam apenas feito as primeiras espadas, adagas, martelos e arcos sozinhos, quando Tord falou para que os dois ensinassem esse ofício para algumas das novas pessoas do exército de modo que a produção fosse suficiente e atendesse a demanda. De repente eles se tornaram os mestres das armas?

Um título afrescalhado demais na sua opinião.

Enquanto isso, Yuu e Yanov tinham sido escalados para algo como generais, em que tinham sob comando algumas centenas de pessoas e estavam intimamente envolvidos com as estratégias mais ofensivas.

Edd era, literalmente, o segundo no comando e o único que verdadeiramente questionava as decisões de Tord. Paul nunca tinha visto realmente e nem perguntado, por não era da sua conta, mas conseguia perceber que havia alguma coisa entre eles dois, a mesma intimidade de olhares que tinha com Pat de não precisarem realmente falar algo para entender o que o outro estava pensando.

Apesar de tudo isso, da posição privilegiada no meio daquela hierarquia, ainda preferia fazer as próprias coisas do que mandar os outros fazerem por ele, especialmente quando todos precisavam se esforçar para o exército trabalhar como uma única unidade funcional. Um grupo bem organizado era sempre mais forte, Tord falava, mas para isso se tornar real a cooperação deve ser completa.

Já tinha terminado todas as suas obrigações do dia, por isso havia entrado na barraca, que era na verdade bastante espaçosa, quadrada e se podia andar alguns passos lá dentro, excluindo a área onde dormia. Certamente tinha alguns privilégios e um pouco mais de conforto que o habitual era um deles, aquela barraca só não era maior do que a que Tord dormia.

Havia acabado de terminar de tirar a parte de cima da sua armadura de couro, virado de costas para a entrada, quando sentiu aqueles dois braços ao redor do corpo em um abraço familiar. Patryk apoiou-se nas suas costas ao mesmo tempo que Paul sorriu, mesmo que o mais alto deles não pudesse ver. Porém logo pode, pois tratou de ficar de frente para ele, retribuir aquele abraço e lhe dar um breve beijo nos lábios.

— Edd conseguiu matar um javali, ele acabou de colocar no fogo. — Pat comentou casualmente, agora com os braços por cima do seus ombros enquanto Paul estava com as mãos um pouco acima da cintura. — O que você acha de ir roubar um pouco?

Parece uma boa ideia.

Os dois trocaram sorrisos cúmplices e não levou nem cinco minutos completo para que já tivessem saído da barraca. Do lado de fora haviam homens andando para todas as direções com armas, mais tendas feitas de tecido com tamanhos variados. Um pouco mais calmo do que o de costume, mas ainda sim movimentado para quem não tinha visto os dias de invasão.

Quando chegaram perto da floresta, ao lado do acampamento, o vento trouxe aquele cheiro que carne assada que Paul sentiu apenas algumas poucas vezes em toda a sua vida, bem menos vezes do que poderia contar nos dedos de uma mão. A primeira pessoa que viu foi Yuu mexendo no fogo com um graveto, um pouco acima das chamas estava o animal gordo pendurado e empalado e o cheiro era de dar água na boca.

Edd e Tord não estavam muito longe, sentados em um tronco grosso de uma árvore que tinha caído há muito tempo atrás, conversando casualmente algo que daquela distância não pode escutar. Mas quem percebeu Paul e Pat chegando foi Yanov, que levantou o olhar da da lança que afiava com uma pedra e acenou discretamente na direção dos dois homens, apenas depois disso que o Líder Vermelho e o seu braço direito os perceberam:

— Ei, podem ir atrás da comida de vocês! — Edd reclamou e quase imediatamente ganhou uma cotovelada de Tord. — O que foi!?

— É nossa comida, Edd.

— Você só fala isso porque fui eu que tive que ir atrás de matar o bicho.

O homem mais alto estava com aquela expressão séria e ligeiramente mal-humorada enquanto Tord tinha aquele sorriso afiado e desafiador na direção dele, mas os dois rapidamente se entenderam sem trocar uma palavra sequer, com Edd revirando os olhos e se curvando um pouco para frente, enquanto o homem menor perto dele apenas riu.

Sentou na parte livre do tronco, do lado de Tord, enquanto Patryk se apossou do lugar ao seu lado.

Após aqueles anos, todos eram amigos, irmãos de batalha, e a hierarquia entre eles não realmente significava alguma coisa concreta, isso quando Tord não estava de mal-humor e os ordenava fazer algo, mas esse era um evento fora da normalidade. Na maior parte do tempo, todo mundo se dava bem e apreciavam a companhia um do outro, Paul conhecia a história de vida de todos dentro daquele círculo.

Yuu e Yanov eram velhos conhecidos, não conseguia se lembrar exatamente do dia que tinha conhecido eles e nem exatamente com qual idade, mas por algum tempo foram três moleques nas ruas de uma cidade gelada, roubando comida sempre que conseguiam e fugindo dos adultos. Depois do incêndio na casa de Patryk perdeu completamente o contato com eles dois por bem mais de dez anos, achou que eles estivessem mortos, mas mesmo depois dos treze ou quatorze anos sem se ver, parecia que nada tinha realmente mudado. Estava aliviado com isso, se fosse ser honesto.

Pelo que Tord tinha falado, ele não tinha nascido na pobreza, mas a família dele perdeu tudo por causa de dívidas para pessoas que já tinham bem mais coisas que eles, então ele fugiu quando era menor para não ser escravizado. Viveu sozinho nas ruas durante anos, na parte mais pobre da cidade e toda a vivência dele com o frio e a fome eram coisas que Paul não conseguia nem imaginar.

Edd foi diferente, não teve uma família presente mas, desde muito tempo, ele sempre foi maior e mais forte. Desde muito cedo ele estava sempre fazendo algum trabalho pesado com pedra ou carregando mercadorias maiores, mas ganhava muito pouco em troca de um trabalho que, no fim do dia, fazia todos os músculos do corpo doerem.

Mas a história de como os dois tinham se conhecido – Edd e Tord – ainda permanecia no mistério.

— Tá’ pronto.

Yuu anunciou e pegou uma adaga para cortar as partes do animal morto em pedaços decentes. Logo todos já tinham pegado um pedaço e quando Paul mordeu a carne estava um pouco crocante e a gordura deixou com um sabor especialmente saboroso. Ou talvez não estivesse assim tão bom e era ele que raramente tinha oportunidade de comer carne.

Não houveram conversas paralelas durante os minutos de refeição, Paul na verdade já tinha terminado e agora estava chupando os dedos oleosos pela gordura animal, até que escutou algo parecido com um riso. Patryk olhava na sua direção, um pouco limpo demais mesmo depois daquela carne que pingava gordura.

Olhou para o outro homens por alguns instantes, ainda com o polegar dentro da boca, mas rapidamente tirou quando sentiu a vergonha subir pelo rosto.


Patryk ⅳ

Quando Paul veio até sua janela a lua estava no ponto mais alto do céu noturno, Patryk pulou pelo parapeito e saiu com ele. Tanto porque não conseguia dormir, assim como não era a primeira vez que eles escapavam apenas para passarem um pouco de tempo juntos. Desde que o pai de Paul começou a ensiná-lo sobre o ofício de ferreiro, o tempo que tinham para gastar um com o outro de dia havia diminuído bastante.

Ninguém sabia que eles saiam de casa de madrugada, no meio do frio, para ir até aquele celeiro praticamente esquecido por Deus. Pelo menos esperava que ninguém soubesse, não era uma informação que Patryk gostaria de compartilhar ou que os outros descobrissem e existiam alguns motivos para isso.

Nos livros que leu, pessoas que praticavam sodomia – era a única palavra conhecia para falar de homens que gostavam de outros homens – nunca acabavam bem. Quando a ira não vinha de um Deus impiedoso, vinha das outras pessoas e, especialmente naquela parte do mundo, queimar era bastante comum. Bruxas não existiam, mas leis e pecados existiam aos montes.

Por isso que demonstrar qualquer tipo de afeto na presença de outras pessoas nunca era uma opção viável.

Quando chegaram no celeiro vazio já havia meia dúzia de velas acesas naquela parte onde deveriam ficar os animais, mas havia apenas um pouco de palha fresca. Com certeza Paul havia acendido aquelas velas antes e tentado deixar o lugar mais arrumado… Mas por que?

— Hm, você preparou tudo isso para mim?

O sorriso que Paul deu foi um pouco envergonhado e nesse momento soltou a sua mão:

— Talvez eu tenha feito.

Por que?

— A gente sempre passa tão pouco tempo junto, eu só tava’ pensando… — Ele lhe encarou por um segundo antes de desviar o olhar, segurando as próprias mãos daquele jeito meio inquieto. — Em ficar um pouco mais de tempo por aqui, talvez…

Encarou o rosto dele, mesmo que o olhar não fosse retribuído, enquanto pensava em suas palavras. Paul estava mesmo sugerindo isso, ou era Patryk que havia entendido tudo errado? Esperava que não fosse esse o caso, porque agora também estava pensando nisso… Não era como se nunca tivesse pensado antes, tinha vontade de passar apenas dos beijos, sim, mas não sabia que ele se sentia da mesma forma e nem teve coragem de perguntar isso antes:

— Mas e se alguém vir aqui…?

— Ninguém vem aqui, por isso que a gente vem. — Respondeu e riu envergonhado. — Eu tentei roubar um pouco de palha mais cedo, não é muito, mas pelo menos não é o chão…

Ele realmente tinha tentado se preparar para isso? Agora era Patryk que estava envergonhado e sentindo que já havia demorado demais para dar ao outro uma resposta, mas ainda sem saber bem o que dizer e por isso, mais uma vez, ele se pronunciou parecendo ainda mais nervoso que antes:

— Mas se tu não quiser tá tudo bem…!

Não havia melhor resposta que pudesse ter que não fosse beijar Paul. Fechou os olhos quando sentiu as mãos hesitantes dele na parte perto da sua cintura e o beijo ficava cada vez mais íntimo, enquanto isso apoiou as mãos nos ombros dele e apertou levemente ainda sentindo uma leve onda de nervosismo no estômago, mas era aquele nervosismo que já conhecia bem, uma sensação boa que só sentia quando estava com ele.

O olhar que ganhou de Paul foi mais que o suficiente para acabar com todas as suas incertezas. Não tinha como aquilo ser errado.

Todas as outras coisas que eles fizeram foram, antes de tudo, instintivas. O jeito que Paul enfiou as mãos por dentro da sua roupa para agarrar a pele, as carícias em meio aos vários beijos, a forma que Patryk agarrou o cabelo dele sentindo alguns nós entre as mechas. Cada toque era como a coisa mais certa do mundo.

A vergonha voltou por um breve momento quando os dois se fizeram confortáveis na cama de palha, depois que se viu sem a camisa de algodão sentado no colo de Paul com uma perna de cada lado, mas foram apenas alguns instantes antes que ele atacasse os seus lábios novamente e Patryk correspondeu como se aquele beijo fosse até mais importante que o ar que respirava.

Haviam mãos incertas por todos os lugares e uma pressa, um tipo de ansiedade, no jeito que estavam levando aquela situação nova.

Todos aqueles toques mais intensos que o habitual, cheios de segundas intenções, fizeram com que Patryk se sentisse um pouco mais animado que o normal. Mesmo com os olhos fechados e aproveitando o beijo, suas mãos desceram lentamente pelo tronco de Paul até chegar nas calças e apenas nesse momento eles separaram os lábios.

Ainda tinha aquela incerteza e vergonha em absolutamente tudo, mas estava junto de um sentimento diferente, um desejo que fez o seu estômago se contrair com uma sensação quase física. As mãos do outro garoto estavam na sua cintura, apertando levemente, enquanto Patryk estava ocupado desamarrando o nó do cordão que mantinha a calça dele no lugar. O pau dele já estava duro na sua mão e, olhando para baixo, sentiu o rosto esquentar de vergonha. Mas era um tipo de vergonha excitante, que lhe fazia querer mais disso.

Quando começou a masturbação, o gemido que Paul soltou foi tímido e nesse momento o encarou nos olhos, ao mesmo tempo que as mãos dele também não ficaram quietas na sua cintura. Ele imitou os seus movimentos, mas se impondo mais que o próprio Patryk, que agora estava gemendo por causa da mão dele ao redor do pênis endurecido, tocando intensamente.

O garoto estremeceu assim que o mais baixo juntou as duas ereções com uma mão só e a mão se moveu daquele jeito mais frenético. Beijou os lábios de Paul tentando abafar os novos sons que queriam sair pela sua boca, mas ao mesmo tempo ele lhe empurrou para ficar por baixo enquanto aquela mãos ainda deslizava facilmente para cima e para baixo.

Não conseguiu controlar os gemidos quando se sentiu cada vez mais perto de gozar, enquanto também se segurava em Paul, gemendo o nome dele, e desajeitadamente dava aquelas investidas leves com o quadril. A mão ao redor dos dois pênis deu um aperto especialmente duro e as suas pernas tremeram quando atingiu o orgasmo, sujando tanto a sua barriga quando a mão e Paul também não gozou muito tempo depois.

Ele não se importou de limpar a mão na palha e fez o mesmo com Patryk, que agradeceu baixo, com um sorrisinho e ainda ofegante.

Os dois apenas tiveram tempo de dar um último beijo antes de Pat jurar ter escutado alguma coisa:

Você ouviu isso?

Então Paul também ficou quieto e se sentou, com a cabeça virada na direção da porta do celeiro e as sobrancelhas franzidas. Um rangido. O barulho de quando faziam força aquela madeira velha. De repente sentiu o coração bater mais rápido e pesado no peito, mas dessa vez não era por um bom motivo. Paul falou depois de um tempo, mas ele não soava muito certo, de nenhum jeito que não fosse tentando se convencer de algo:

Deve ser só algum animal

Também se sentou, mesmo um pouco cansado pela atividade anterior e querendo apenas ficar deitado ali, estava com uma sensação ruim. Olhou nos olhos de Paul e na verdade ele aparentava se sentir da mesma forma.

— Melhor a gente ir. — Falou baixo enquanto pegava a camiseta para se vestir, sem deixar de olhar para a janela de madeira. Estava fechada, mesmo assim tinha algo. — Já tá' bem tarde.

O outro garoto já tinha terminado de arrumar as roupas quando se levantou e ofereceu uma mão a Patryk para ajudá-lo a sair do meio da palha, coisa que educadamente aceitou.

— Eu te acompanho até a tua casa.

— Tá um pouco tarde mesmo, você tem certeza?

Deu um olhar preocupado, mas Paul apenas beijou o seu rosto e não conseguiu evitar da cor subir pelas bochechas. Quando olhou para ele, viu que não era o único corado e sorriu um pouco quando sentiu uma mão segurando a sua, apertando carinhosamente.

Tenho…

— Nesse caso eu ficaria muito feliz.

Nesse momento, entre sorrisos, os dois garotos quase esqueceram de que poderia haver um animal, ou pior, uma pessoa por aí.


Tom Ⅳ

De noite, as velas acesas na mesa de cabeceira não eram o suficiente para clarear aquele quarto decentemente, mas, por sorte, havia uma lua grande e bonita que iluminava o ambiente com uma leve penumbra, através da varanda que estava com as cortinas e portas abertas. As cores no ambiente escuro também não era muito bem distinguíveis, mas talvez isso acontecesse pelo fato de Tom estar prestando atenção a outra coisa naquele momento.

Os lábios de Matilda com toda certeza eram bem mais importantes do que descobrir qual era a cor do lençol de cama.

Tinha ido até os aposentos da princesa a pedido dela e quando chego, ela estava com aquele vestido branco perolado que valorizava a cintura e mostrava os ombros, junto com os cabelos laranjas soltos. Não houveram muitas trocas de palavras, pois logo Matilda já tinha chegado perto demais e Tom não foi capaz de segurar as mãos, mas também não houve reclamações quanto a isso, muito pelo contrário, a jovem nobre apenas abriu um sorriso pequeno e cheio de coisas não ditas, deixando Tom ansioso para descobrir cada uma delas.

"Você está linda" o rapaz disse e a forma que a ruiva respondeu com um "eu sei" foi charmosa de uma jeito que ele não sabia que era possível.

Todos os beijos foram de tirar a fôlego e os dois estavam naquela cama grande e fofa, pois Matilda tinha lhe puxado pela camiseta para que ficasse por cima dela, isso enquanto ainda se beijavam. Havia tanta certeza em cada gesto dela que apenas isso afastou qualquer dúvida que Tom pudesse ter.

A pele era macia por baixo da saia branca e quando tocou, deslizando a mão e tirando parte do tecido de cima, pode senti-la estremecer, mas não esperava que ela fosse lhe afastar. Foi com as duas mãos, de um jeito pesado e devagar, por isso Tom ficou sem entender nada e se perguntou se tinha feito algo de errado, especialmente depois que a princesa sentou-se na cama e encolheu as pernas. Tom também se sentou, ao mesmo tempo que ela disse:

Eu não consigo fazer isso…

Olhou para o rosto de Matilda conseguindo distinguir mais detalhes agora que tinha se habituado com o ambiente escuro, mas ela estava com os olhos fixos em outro lugar.

— Eu fiz alguma coisa errada?

— Por Deus, Tom, você não fez nada de errado. — A ruiva se sentou na cama com uma perna dobrada na frente e a outra pendurada para fora do colchão, então pegou a mão de Tom e segurou com as duas enquanto falava daquele jeito tranquilizante. — Eu só achei que conseguiria fazer algo que sempre tive vontade, mas receio. — Houve uma pausa rápida, com ela olhando para a sua mão. — Agora vejo que não esse não é o caso.

Se fosse ser honesto, não estava entendendo muito bem do que ela falava, mas isso também não importava. Se Matilda não estava bem fazendo aquilo, Tom apenas iria compreendê-la e pois queria fazê-la se sentir confortável, mas a próxima coisa que ela falou lhe pegou completamente de surpresa:

Sinto muito…

— Você não tem que se desculpar por nada, tá’ tudo bem.

Ela sorriu balançando a cabeça negativamente algumas vezes, então deu um riso fraco e soltou a sua mão.

— Eu deveria ter mostrar uma coisa.

A vergonha subiu pelo rosto do rapaz quando viu a princesa colocar as mãos atrás das costas para desamarrar aqueles cordões que mantinham o vestido branco acinturado, por isso ele virou o rosto para outro lado, sem saber muito bem o que fazer. Mas se viu obrigado a olhando quando a ruiva chamou pelo seu nome.

Ela estava despida apenas da parte de cima da roupa, com duas mechas volumosas de cabelos laranja descendo sobre os ombros, cobrindo boa parte do tronco completamente plano, e o que parecia uma franja longa quase escondendo um dos olhos. Tom não conseguiu parar de olhar depois disso, apenas pensando em como Matilda estava absolutamente linda, porém ela tinha desviado os olhos e segurava a saia do vestido, cabisbaixa.

Tom ousou se aproximar mais dela e apenas tirou aquela franja que escondia parte do rosto da princesa, ganhando um olhar surpreso em troca. Sorriu para a ruiva e, pela primeira vez entre tantas outras, teve a iniciativa de beijá-la primeiro e quando se afastou ela estava com os olhos arregalados.

— Você é maravilhosa, minha princesa.

E absolutamente nada iria mudar isso. Aos poucos um sorriso surgiu nas feições de Matilda e Tom poderia jurar que tinha visto ela corar, mas em meio a penumbra não poderia ter certeza, e por último ela riu:

Eu sei.

Os próximos segundos foram de silêncio, com a ruiva vestindo a parte de cima do vestido mais uma vez e arrumando o cabelo apressadamente.

— Você pode ficar aqui comigo, Tom?

— Seria um prazer.

A ruiva estava sorridente quando se deitaram na cama e ficou muito feliz em aceitar o abraço que o rapaz de olhos negros deu a ela, mas acabou adormecendo primeiro, com uma expressão completamente tranquila. Tom continuou olhando para o rosto dela por alguns minutos, sem conseguir não admirá-la o tempo inteiro, até que também dormiu, mas nem por isso soltou Matilda daquele abraço.


Paul Ⅵ

Aquele pequeno condado foi, no geral, muito fácil de se tomar, mesmo que pertencesse a um reino maior que era a próxima grande cidade que Tord pretendia conquistar e derrubar a rainha. Porém, aquele pequeno local entre algumas colinas foi facilmente tomado pois a autoridade maior lá, um conde, tinha se entregue antes que qualquer gota de sangue fosse derramada… Certamente querendo manter a própria cabeça junto ao corpo e era covarde demais para qualquer coisa além disso, ou apenas sabia quando não poderia ganhar uma possível batalha.

Era difícil dizer exatamente, só que Paul não havia gostado dele logo de cara. O Líder Vermelho havia ordenado, mesmo assim, que levassem-o como prisioneiro e isso era, com certeza, algo novo. Aquele exército nunca fazia prisioneiros.

Muito menos fazia promessas sobre deixar inimigos viverem.

Não é preciso mencionar que Tord não pensou em continuar com tal promessa por muito tempo, foram apenas algumas semanas de marcha levando o nobre em correntes, que estava com aquelas roupas tão caras completamente arruinadas. Não havia um ponto em mantê-lo vivo e nem em libertá-lo, por isso, logicamente, Tord comentou casualmente em uma das reuniões para discutir estratégias que tinha decidido matá-lo.

A questão realmente atípica nisso tudo foi Edd discordar sobre essa decisão e os dois discutirem. Ainda estavam discutindo, para falar a verdade:

— Tord, você não pode decidir matar ele depois de tudo!

Aquele homem era literalmente a única pessoa no exército inteiro a chamar o líder pelo nome e ele parecia a única pessoa verdadeiramente autorizada a isso.

As reuniões normalmente aconteciam quando o exército precisava parar e descansar por mais tempo, abastecer os suprimentos ou até mesmo dar um tempo para os soldados se curarem das feridas mais graves depois de uma batalha. Era quando eles podiam armar a enorme tenda e se sentar ao redor daquela mesa redonda, onde havia um mapa das terras daquele lado do oceano esculpido na madeira.

— Ele é inútil. — Tord respondeu com simplicidade, olhando para o mapa e as peças espalhadas, não muito interessado naquele diálogo. — Só mais um nobre sem nada a oferecer, eu me arrependo de não ter cortado a garganta dele no primeiro dia.

— Perdoe-me, Lider Vermelho, mas os homens questionaram a sua decisão. — Yanov também estava presente e Yuu na cadeira logo ao lado. — De manter o nobre vivo.

— Pelo amor de deus, vocês não tem honra!?

— Você sabe — Tord fixou um olhar especialmente penetrante no homem mais alto a mesa, levemente curvado para frente e com os cotovelos apoiados na mesa, cruzando os dedos na frente do rosto. — a honra nunca salvou a vida de ninguém, Edd.

A tensão no ar do ambiente era como uma coisa palpável e sentida por absolutamente todos, mesmo aqueles quietos diante da discussão sem sentido, como o próprio Paul e Patryk. Todo aquele clima piorou quando Tord arrumou a postura ereta na cadeira, mas ainda bastante sério, olhando para Edd

— Nós estamos prestes de chegar no maior reino deste lado do mar e você está pensando na vida de um duque? — Ele fechou uma mão ao redor de uma peça de madeira com silhueta feminina, apertando até os nós dos dedos ficarem brancos. — Existe algo que você não está me contando?

Nada que você já não saiba.

Tord colocou aquela peça de madeira, bastante semelhante às que existiam no jogo de xadrez, de volta na mesa e em cima do mapa, em uma área depois dos Vales e não muito longe do último condado que invadiram. Com apenas uma pessoa a cavalo, era uma viagem de dez dias. Como havia pelo menos mil pessoas, poderiam chegar lá em uma viagem que levaria em torno de vinte e cinco dias se saíssem as presas e não parassem para descansar mais de quatro horas por noite. Com todo o exército e parando para dormir a noite inteira, uma previsão otimista era de quarenta a quarenta e cinco dias.

Lá ficava o próximo lugar que Tord pretendia conquistar e era a aquisição mais ambiciosa desde que finalmente saíram das terras do Norte, quase dois anos atrás.

— Se não há nada, nós iremos executar o duque em três dias. –- O líder vermelho falou com uma estranha tranquilidade, ao mesmo tempo fazendo soar como se fosse apenas uma ordem como qualquer outra. — E em cinco dias vamos começar a marchar em direção ao Sul.

Você não pode fazer isso...!

Edd desafiou e questionou Tord mais uma vez, ele provavelmente era a única pessoa no mundo a fazer isso e não sofrer com nenhuma consequências depois. Só que dessa vez Tord não pareceu se importar:

Eu posso e eu vou. — Retrucou com simplicidade e deu uma pausa de apenas dois segundos antes de continuar, Paul poderia jurar ter visto o homem sorrir, mas foi apenas impressão sua. — Na verdade, você vai.

Yuu e Yanov se entreolharam e ninguém a mesa ousou interromper aquela discussão, muito menos entenderam a razão dela estar se prolongando tanto. O Duque Eduardo era um nobre, eles matavam todos de sangue ou com títulos reais para libertar o povo de situações insalubres e de trabalho forçado, em que muitas vezes tinha comida estocada no castelo produzida pelas próprias pessoas, mas muito pouco e às vezes nada do fruto desse trabalho o povo realmente podia usufruir.

Então, esse ser o motivo para Edd subitamente fechar a cara em uma expressão tão sombria não foi algo que ninguém presente estava esperando. O jeito que ele concordou também não foi pareceu muito honesto.


Patryk ⅴ

Quando terminou de limpar e arrumar as coisas na livraria, já havia anoitecido há muito tempo. Patryk estava cansado, tinha acordado bastante cedo e ficado o dia inteiro ali, pois seu avô tinha ficado doente demais para para fazer qualquer coisa e a sua avó havia cuidado dele o dia inteiro. Enquanto o garoto não saiu do lugar nem por um minuto e passou o dia com os livros, atendendo às poucas pessoas que apareciam por ali.

Infelizmente Paul não foi uma dessas pessoas. Desde que ele começou a aprender e ajudar no ofício de ferreiro do pai praticamente não vinha mais lhe ver durante o dia, mas sempre estava lá depois que escurecia. Só que hoje ele não apareceu no horário em que sempre aparecia e esse era um dos motivos que levaram Patryk a ficar na livraria até mais tarde, esperando, pois, por mais que quisesse, não poderia simplesmente sair para procurá-lo.

Perguntou-se algumas vezes se havia acontecido algo com ele, mas sempre se convencendo de que não, não queria se preocupar atoa.

Trancou, fechou tudo e lembrou de apagar o fogo na lareira para não correr o risco de um incêndio acidental. Quando foi para o seu quarto, no segundo andar, não se preocupou em trocar de roupa e nem acender uma vela antes de se deitar cansado e adormecer quase imediatamente, com um sono pesado e sem sonhos não muito tempo depois.

Foi por isso que não escutou quando alguns homens arrombaram uma das janelas no andar de baixo e entraram bem entre as estantes de livros, com algumas tochas acesas em mãos, que eles usaram para atear fogo na madeira e no papel por todo o local. O motivo que levaram aqueles homens a fazerem isso Patryk iria entender depois, mas enquanto eles saiam de casa o fogo se espalhava indiscriminadamente por todas as direções, o garoto ainda dormia profunda e tranquilamente, até demais.

Por isso não acordou imediatamente com os gritos vindos do lado de fora, chamando pelo seu nome, mas despertou assustado quando acertaram uma pena na janela de madeira do cômodo, que estava entreaberta. Primeiro Patryk sentiu aquele cheiro estranho de queimado, tentando lembrar se havia apagado o fogo no primeiro andar até que um outro grito chamou sua atenção. Foi para a janela e viu Paul lá embaixo pronto para jogar outra pedra, mas, assim que lhe, viu gritou para que saísse dali.

Não respondeu pois não entendeu o que estava acontecendo logo de cara, mas quando virou-se para a porta fechada do quarto e viu aquele brilho alaranjado entendeu exatamente o que estava acontecendo. Precisava ir ver se seus avós estavam bem e tirar os dois dali de dentro.

O garoto lá fora gritou mais alguma coisa que não conseguiu entender assim que correu para dentro, com pressa abriu a porta só para ver que tudo já estava queimando, como se fosse o próprio Inferno, enquanto o chão de madeira ficava cada vez mais quente sob seus pés descalços. As chamas lambiam o teto da casa e consumiam tudo, gritou pelos seus parentes, mas não recebeu uma resposta. Enquanto a fumaça preta lhe fez tossir e cobrir a boca e o nariz com o tecido da camiseta, tentou entrar naquele cenário infernal só que imediatamente recuou quando sentiu o fogo queimar a pele do braço e viu a manga da roupa chamuscar. Não tinha como passar por ali e o chão rangeu assustadoramente quando deu alguns passos para trás.

Correu de volta da janela e Paul ainda estava lá, só que dessa vez haviam mais algumas pessoas. A sensação de medo se acumulou no seu estômago e fez o seu coração bater descompassado no peito, por isso não pensou duas vezes antes de pular para o lado de fora da janela, escalar aquela parede de tijolos de pedra e sair do meio daquele incêndio. Perto de chegar no chão escorregou e quase caiu, mas Paul lhe segurou antes que isso pudesse acontecer.

— Você tá bem!?

Foi o que ele perguntou imediatamente, só que não encontrou palavras para responder na mesma hora e não conseguiria nem se tivesse. Não depois que começou a tossir, pois seu corpo queria expulsar aquela fumaça que tinha respirado. Uma mão do garoto mais baixo foi até as suas costas, só que Patryk deu vários passos para trás e conseguiu ver melhor como a sua casa estava queimando. Era um fogo laranja que chamaria atenção até do outro lado da cidade, com chamas que chegavam até o céu escuro.

O estrondo que a estrutura de madeira que sustentava o teto fez quando caiu foi alto demais e Pat sentiu que o chão tinha tremido. Só não desabou porque Paul estava logo ao seu lado, lhe segurando.

A casa em que cresceu estava ardendo em chamas e seus avós, as pessoas que lhe criaram, estavam mortos. Não percebeu que chorava até que Paul segurou a sua mão intacta e mais uma vez chamou pelo seu nome. Quando finalmente olhou para o rosto dele viu um monte de machucados, um corte especialmente chamativo que vinha de antes da sobrancelha até o começo da bochecha, um hematoma roxo no rosto e bastante sangue. Algo que definitivamente não estava esperando.

Paul, o seu rosto-?

— O meu pai fez isso. — Ele explicou e apenas deixou Patryk ainda mais confuso, mas não houve tempo para que perguntasse algo quando ele lhe puxou pela mão para longe do fogo e das pessoas. — Vamos, a gente tem que sair daqui. Agora.


Matilda Ⅴ

No meio do jardim, Matilda já havia colhido todas as flores que precisava depois de um tempo pensando em como faria a daquela vez, quais plantas poderiam combinar e qual ficaria mais bonita. Acabou por pegar apenas um tipo de flor, as não-me-esqueças – umas azuis, pequenininhas e delicadas – que achava particularmente bonitas, para começar a montar uma coroa.

Estava sentada no mesmo tapete que sempre ficava quando passava algum tempo no jardim do castelo, com algumas poucas flores dispostas ao redor saia do seu vestido roxo e os cabelos presos em uma trança frouxa sobre o ombro, para que não atrapalhasse o trabalho.

O dia estava particularmente ensolarado, brilhante, um pouco quente e se não fosse pela leve brisa, que fazia algumas mechas soltas voarem, seria um calor suportável. A escassez de nuvens no céu azul era bastante aparente e o Sol estava quase no seu ponto mais alto, ou seja, não deveriam haver muitas sombras, ao menos não em locais onde não tinham árvores por perto.

A princesa apenas escutou os passos antes de uma sombra de silhueta masculina se projetar, no mesmo instante ela virou a cabeça um pouco para trás e abriu um sorriso quase involuntário. Levantou-se do tapete com a coroa de flores em mãos, mas ainda não fez o movimento que pretendia e apenas sorriu na para Tom, que correspondeu com outro que a ruiva achava particularmente bem bonito.

Deixou a coroa de flores atrás das costas quando o cavaleiro pegou a sua mão, puxou levemente e se curvou um pouco para beijá-la, em um gesto cortês e um ritual do que qualquer outra coisa, mas entre os dois era muito mais como um flerte discreto. Logo ele ergueu o queixo para poder olhar para a mulher na sua frente:

Minha princesa.

Meu cavaleiro.

Ninguém conseguiu ficar sério por muito tempo e em pouco segundos já estavam rindo, como se aquela fosse uma grande piada interna. Trocaram apenas mais um olhar antes que Matilda se inclinasse para perto dele, apenas o suficiente para dar um beijo no rosto perto dos lábios e nesse momento Tom corou e deu uma rápida olhada ao redor, para ver se tinha mais alguém. Não tinha. Ele não era muito fã de demonstração pública de afeto a jovem sabia bem disso, só não entendia.

Não existiam razões para tomar cuidado, não haviam proibições e nem mesmo sua avó, a rainha, não parecia se importar de estabelecer qualquer limite em relação aos dois. Ela era a princesa, podia fazer o que quisesse, enquanto Tom era apenas muito tímido. Se fosse ser sincera, achava bonitinha a forma que ele se comportava.

— Você já terminou a ronda no castelo? — Perguntou com expectativa. Estava feliz por Tom ter um trabalho na guarda real, realmente, mas sentia falta de passar mais tempo com ele. Claro que, como a princesa, poderia ordenar qualquer coisa que quisesse, mas conhecia o rapaz de olhos negros bem o suficiente para saber que não era isso que ele gostaria.

— Ainda não, na verdade eu não deveria estar aqui. — Ele riu sem jeito e coçou a parte de trás da cabeça, bem charmoso. — Mas eu senti a sua falta, então…

Claro que você sentiu. — A princesa falou enquanto enrolava uma mecha de cabelo em um dedo, com um sorrisinho convencido, e Tom apenas estreitou os olhos. — Eu não entendo como você consegue passar tanto tempo sem olhar para a minha beleza.

Ele se aproximou o suficiente para tirar alguns fios de cabelo do seu rosto, que o vento teimosamente bagunçava.

As vezes eu me pergunto a mesma coisa.

Quando ele abaixou o braço, Matilda aproveitou o momento de distração para colocar a coroa de flores no cabelo castanho claro, quase loiro – em uma tonalidade que lembrava areia agora que estavam no sol – de Tom. Quase no mesmo instante que levantou os dois braços, as mãos dele foram posicionadas naquela área um pouco acima da sua cintura.


Abriu os olhos e viu que ele lhe encarava de volta de um jeito tão intenso que fez a princesa corar, mas por alguns instantes se concentrou em arrumar a coroa, enquanto as mãos dele deslizaram lentamente apenas alguns centímetros para baixo. Diferente das outras vezes que tentou fazer a mesma coisa, ele não pareceu se importar com as flores:

— Então, como eu fiquei?

Lindo.

A cor combinava bem como Matilda tinha imaginado, na verdade estava até melhor ao vivo. Colocou as mãos nas ombreiras de metal da armadura e mais uma vez teve que tomar a iniciativa no beijo, mas assim os lábios se encostaram um beijo profundo desenrolou naturalmente. Fechou os olhos aproveitando o que sabia ser uma das melhores coisas que já tinha provado em toda a sua vida, durante um momento que parecia perfeito de todas as formas.

Quando se separaram não foi muito e o ar ao redor estava com aquela atmosfera que quase dava para pegar, mas, infelizmente o momento não durou para sempre como Matilda, no fundo, gostaria que durasse.

Naquele exato minuto uma serviçal corria pelo jardim, segurando a saia do vestido com as duas mãos para não tropeçar e quando ela chamou pela atenção da princesa, falando um alto “sua magestade”, a ruiva se afastou mais um pouco de Tom e olhou para a recém chegada. Ela parou para respirar quando já estava perto o suficiente e murmurou perdão algumas vezes. Foi nesse momento que Matilda sentiu que algo estava errado:

— O que aconteceu?

— Princesa… É vossa majestade, a rainha — A mulher gaguejou nervosamente. — ela de repente- ela n-não está bem e deseja falar com a senhorita.

Nesse instante o coração da princesa pesou no peito de uma forma que ela não imaginava que fosse possível.

Leve-me até ela, por favor.

Quando seguiu a serviçal de volta para o castelo apenas deu uma olhada para trás e viu Tom com um olhar preocupado, mas sorriu forçado com um pedido silencioso para que ele não seguisse.


Durante os próximos sete dias eles não se viram de novo.


Paul Ⅶ

O dia amanheceu chuvoso no acampamento militar, mas bastante calmo. Quando Paul acordou na cama de palha, se viu sozinho e perguntou-se por um momento onde Patryk estaria. Ele era quem sempre acordava mais cedo dos dois, algumas vezes até antes do Sol aparecer no horizonte.

Levantou-se e vestiu algumas roupas, meio preguiçoso demais para pensar em colocar a sua armadura completa, mesmo assim pegou a espada e colocou a bainha no cinto de couro. Quando saiu da barraca imediatamente sentiu o leve chuvisco sobre sua cabeça e olhou ao redor, onde tudo estava bastante organizado, mas quieto. Quieto demais.

Havia alguma coisa esquisita em toda essa calmaria, apesar de ironicamente estar chovendo, lembrava bastante aqueles momentos calmos antes de uma tempestade violenta cair sobre a terra, destruindo tudo. Mas esse era um pensamento paranoico e ilógico, uma impressão e um frio no estômago certamente não queriam dizer nada em particular.

Lembrava bastante do que sentiu no dia em que pensou que fosse perder Patryk para um incêndio, antes de tudo dar errado, mas provavelmente era apenas uma coincidência.

Ainda chegou a caminhar um pouco pelo acampamento, sentindo as gotas de chuva no topo da cabeça, se dirigiu ao local improvisado onde Tord havia mandado que amarrassem o conde Eduardo. Uma tenda grande com uma estaca grossa de madeira no meio, onde Paul pessoalmente amarrou as mãos do nobre atrás das costas e cordas ao redor dos tornozelos.

Quando puxou o pano para entrar e ver como o prisioneiro estava, definitivamente a última coisa que esperava era ver Yanov caído com uma poça de sangue ao redor da cabeça e nenhum homem amarrado. No mesmo instante correu e se ajoelhou perto do homem, rezando para que ele estivesse apenas desacordado, mas não conseguiu vê-lo respirar. O sangue ainda estava quente e o corpo também, então seja lá quem tivesse feito isso, não poderia ter ido muito longe-

Yanov, o que você-

Olhou para trás e viu Yuu estático, com os olhos arregalados. O homem loiro se aproximou e lhe empurrou para longe, então segurou o corpo e balançou pelos ombros, repetindo o nome de Yanov varias e varias vezes de um jeito que deixou Paul desconfortável de formas que não sabia que poderia ficar.

Nem mesmo parecia real, Yanov estava mesmo morto?

— O que é isso? — A voz do loiro saiu baixa e pausadamente, ele não tirou os olhos do corpo nem por um instante.

— Eu cheguei e ele já tava’ assim…

Yuu não respondeu, ainda com toda a atenção posta no amigo morto, mas Paul finalmente percebeu que precisava gritar por ajuda rapido. Levantou-se e foi para fora da tenda, então gritou por ajuda e logo chegaram alguns rostos familiares, entre todos eles Patryk foi quem chegou perto mais rápido e mais preocupado.

— O que aconteceu!?

— O prisioneiro escapou. — Ele falou algum palavrão que não conseguiu entender e quase se afastou, dizendo sobre como eles deveriam informar a situação a Tord agora mesmo, mas antes disso segurou o pulso dele e ganhou um olhar interrogativo. Paul apenas deu uma olhada para trás na barraca e Pat olhou sobre o seu ombro, então cobriu a boca com uma mão, absolutamente chocado. — Alguém matou o Yanov.

— A gente precisa achar o Líder Vermelho agora.

Então ele surgiu como se tivesse sido invocado, imponente como sempre e tomou a frente dos dois homens. A expressão de Tord ficou gradativamente mais sombria enquanto observava a cena e Paul podia jurar que escutou os dentes dele rangendo de raiva, sem conseguir disfarçar muito bem enquanto apertava o tecido grosso da barraca. Patryk estava prestes a falar algumas coisa, mas não foi rápido o suficiente:

— Vão procurar por Edd. — Tord estava mais sério que o normal e as palavras dele soaram como ordens. — Agora.

Então procuraram o braço direito do Líder Vermelho por todo o acampamento, mas não acharam ele em lugar nenhum. Era o único dos homens que tinha sumido e aos poucos as suspeitas de Paul pareciam cada vez serem mais verdadeiras, só não conseguia pensar em um porquê para tudo.

Tord havia se enfurnado nos próprios aposentos desde que deu aquela ordem que ninguém conseguiu cumprir, pois Edd não estava nas redondezas e não haviam nem mesmos rastros que pudessem seguir, mesmo que a chuva já tivesse parado e agora o céu estivesse apenas cinzento.

Patryk estava ao seu lado quando, hesitantemente, foi entrar na barraca do Líder Vermelho e lá dentro estava uma completa bagunça.

— Com licença, senhor?

Haviam coisas quebradas e uma espada atravessando a mesa de madeira, com Tord sentado pelo dela em uma cadeira, de cabeça baixa e as mãos cobrindo o rosto e os cotovelos apoiados na madeira quebrada. Ele obviamente não estava bem e nem lhe respondeu, então Paul encarou aquilo como se pudesse continuar:

— Ninguém conseguiu achar Edd, não parece que ele está próximo do acampamento.

Pela segunda vez não ganhou resposta nenhuma e por isso começou a ficar preocupado. Tord tirou as mãos do rosto e olhou na direção dos dois homens, a expressão dele era apenas miserável de um jeito que não lembrava nunca de ter visto antes. Era uma mistura de ódio, raiva, decepção e muitos mais coisas para que conseguisse identificar em tão pouco tempo, sem falar que as mãos dele tremiam muito levemente, só percebeu isso pois estava prestando atenção.

Ele não fez menção de se levantar da cadeira e deu um longo olhar para os dois dos seus soldados mais confiáveis, porém Paul definitivamente não tinha visto aquilo chegando:

— Nós vamos atacar a cidade.

Senhor?

Ele se levantou e arrancou facilmente a espada da mesa, que antes estava fincada também em um mapa de papiro bem, na área entre dois vales, perto de um rio. Era o Reino do Sul. Tinham discutido a estratégia que usariam para conquistá-lo dias atrás e nela não envolvia atacar aquela cidade nos próximos trinta dias.

— Mandem os homens desmontarem o acampamento. — Tord falou sério, mas sem olhar para os outros presentes no ambiente, enquanto parecia ter encontrado algo de muito interessante no mapa arruinado. — Amanhã, antes do Sol nascer, nós vamos marchar mais para o Sul.

Paul e Patryk se entreolharam, temerosos.

Mas senhor-

— É uma ordem, soldados. — Ele cortou e olhou severamente para os dois homens, com um olhar e de um jeito que não parecia muito são. Quando falou novamente, foi em um tom cheio de acusação que nenhum deles viu chegando. — O que vocês ainda estão fazendo aqui? Pretendem me trair também!?

Patryk rapidamente tomou a palavra com um “não senhor” bastante firme e foi para fora do local, enquanto também puxava lhe pelo braço. Eles se afastaram vários metros da barraca e Paul viu nos olhos do homem que amava algo que lembrava medo.

Ambos se olharam sem precisar de nenhuma palavra sequer dita em voz alta, então rapidamente foram obedecer às novas ordens do Líder Vermelho.


Tom Ⅴ

Parecia que os deuses olhavam para a terrível tragédia que havia acontecido no reino, a morte da rainha, ou talvez tudo aconteceu muito coincidentemente com o começo da temporada de chuvas naquelas terras. Há cinco dias muita água caia incessantemente sobre suas cabeças. Cinco dias de luto antes da coroação oficial da princesa Matilda.

Ela não parecia estar feliz com a ideia de ser a nova rainha, na realidade estava com aquelas feições tristes e terrivelmente abalada de um modo que Tom nunca havia visto no rosto, normalmente tão cheio de energia, da ruiva. Gostaria de poder tê-la abraçado e confortado, mas o luto dela era especialmente solitário e silencioso. Quando foi perguntá-la sobre isso, se precisava de alguma coisa, a resposta soou bastante triste por trás das portas, junto de algumas palavras que não esperava ouvir:

“Uma rainha não pode demonstrar fraqueza diante do seu povo, Tom” e naquele dia, pela primeira vez, percebeu uma seriedade e maturidade nela que nunca tinha prestado atenção antes.

A coroação aconteceria na sala do trono e as testemunhas eram a dúzia de nobres da cortes que estavam presentes, ou seja, vários rostos que apenas tinha visto de longe mesmo com todo o tempo vivendo no castelo, por mais que fosse o braço direito da futura rainha e estivesse, literalmente, de guarda ao lado dela bem naquele exato momento.

Matilda ocupava o trono dourado, sentada elegantemente, usando aquele vestido vermelho escuro de mangas compridas e bordados dourados em várias linhas delicadas na barra da saia. Ouro e pedras preciosas enfeitavam o pescoço e colo dela, além de os diversos anéis grandes e brilhantes nos dedos.

Nem mesmo o rosto com aquela sombra de tristeza deixava-a com aparência menos imponente na grande sala com janelas de vidro dourado.

A cerimônia de coroação em si foi bastante rápida, mas cada um daqueles nobres precisava jurar lealdade a coroa e a sua nova rainha em um ato muito mais simbólico do que qualquer outra coisa, parecendo bastante com um tipo de renovação de votos. Eles se ajoelharam diante da jovem ocupando o trono para prometer lealdade, um a um, até tudo estar oficialmente acabado.

Após a última pessoa deixar o salão e fechar as portas, Matilda tirou lentamente a coroa pesada da cabeça e a colocou em cima das pernas. Tom também havia ficado e sairia somente se ela pedisse, porém não foi esse o caso. O cabelo dela estava penteado perfeitamente para trás, mas uma longa mecha laranja cobriu um dos seus olhos ao mesmo tempo que ela suspirou. Os ombros se curvaram levemente para dentro, com cansaço e desânimo.

Então é… isso? — Apesar de ter soado como uma pergunta, não parecia que a ruiva esperava por uma resposta. Muito mais queria se convencer de algo não dito em voz alta, enquanto traçava as formas grosseiras da coroa com alguns dedos. — Eu vou precisar lidar com isso de agora em diante.

Tom gostaria de ter entendido exatamente do que ela estava falando, gostaria de saber um meio de ajudá-la naquela situação que tinha acontecido tão repentinamente. Mas não sabia, não fazia ideia de como era governar e nem do que poderia acontecer no futuro, não quando uma guerra se espalhava por aquelas terras como se fosse uma praga consumindo colheitas inteiras.

— Obrigada por ficar do meu lado, Tom.

Ela falou muito de repente e o rapaz não compreendeu o significado daquelas palavras no primeiro momento. A nova rainha ainda mantinha a atenção fixa para a coroa, olhando-a como se ela fosse algum tipo de fardo. Talvez fosse mesmo.

Não teve tempo para dar uma resposta depois que um guarda empurrou as portas duplas para dentro, entrando no salão sem pensar duas vezes. Ele pareceu especialmente nervoso quando caminhou apressadamente para perto do trono,mas ajoelhando-se com uma perna só a alguns metros de distância:

— Perdoe-me a interrupção, majestade, mas aconteceu uma coisa. — O guarda levantou a cabeça e continuou a falar sem precisar de uma permissão para isso. — O duque Eduardo está no castelo e ele deseja falar com vossa majestade.

Esse era mais um nome que Tom lembrava apenas vagamente de escutar, certamente algo que a antiga rainha disse uma vez, sobre como o Exército Vermelho estava indo para aquele lado do reino e logo chegaria na fortaleza em que o duque vivia.

Matilda colocou a coroa na cabeça e levantou-se do trono, ordenando ao homem que chamasse o tal nobre. A ruiva estava visivelmente preocupada, alguém com olho bom como Tom conseguia ver, mas mantinha muito bem a compostura para aqueles que não a conheciam e, na verdade, não era como se ela precisasse se esforçar para isso. De fato uma postura bem diferente dos dois homens que entraram pelas portas do salão pouco tempo depois.

Não poderia dizer qual deles era o nobre e qual não era, ao menos não pelas roupas certamente simples e até um pouco sujas demais. Como eles haviam conseguido entrar no castelo?

O mais baixo entre os dois tomou a frente e foi apenas nesse momento que pode ter mais certeza, por mais que os trapos de roupas ainda fossem atípicos. Ele olhou para a rainha apenas por um instante antes de oferecer uma breve e simples reverência, mas bastante de acordo com o título de nobreza:

— Majestade — Ele começou e levantou o rosto cansado com uma barba começando a crescer, pulando um monte, praticamente todas as formalidades possíveis. — Eu me sinto na obrigação de avisar sobre um mal que devastou as minhas terras, mas que logo chegará aqui.

— O Exército Vermelho, você quer dizer? — Ela perguntou e a resposta foi rápida e positiva. — As notícias sobre esse exército já chegaram até aqui, mas todos nós pensamos que ele ainda estivesse mais ao norte.

Subitamente o acompanhante do duque Eduardo – que também era o homem mais alto que Tom já tinha visto em toda a sua vida. – deu meia dúzia de passos para perto. A capa dele era longa, estava com o capuz abaixado e tinha essa coloração esverdeada como o musgo que cresce nos troncos das árvores.

Eu era do exército de Tord. — O moreno mais alto se pronunciou seriamente, coçando discretamente uma barba mais cheia que a do duque. — Ele deve estar marchando para cá nesse exato momento, enquanto a gente tá conversando. Eu lembro dos planos, porque ajudei neles.

— Por que eu deveria confiar nas palavras de um estranho? — Matilda questionou, provavelmente tão desconfiada quando o próprio Tom. — Como eu posso saber se você apenas não está deliberadamente contando mentiras?

O forasteiro retirou uma espada longa de baixo da capa e ajoelhou-se para colocá-la no chão em um gesto claro de trégua. Claro que não tinha como saber ainda havia alguma outra arma escondida, mas ao menos ele parecia falar sério quando levantou-se cautelosamente. Mesmo assim, foi o duque que tomou a palavra:

— Majestade, se a senhorita me permitir, eu sei que Edd não parece confiável. — Eduardo argumentou e o tal Edd revirou os olhos. — Ele era um dos generais do Exército Vermelho no tempo que fui prisioneiro, mas abandonou o exército e me ajudou a fugir quando o Líder Vermelho decidiu que iria me executar.

— E qual a razão para a súbita mudança de opinião de Edd?

Assim que Matilda perguntou, o ex general soltou um riso que soou insolente demais na opinião do cavaleiro, depois cruzou os braços por baixo da longa capa e encolheu os ombros, exibindo um pequeno sorriso sarcástico e até desdenhoso. Ele balançou negativamente a cabeça algumas vezes, como se soubesse de centenas de coisas que mais ninguém dentro daquele salão fazia a menor ideia, então finalmente respondeu:

— Não foi súbito como você está pensando, rainha. — O jeito que ele falou foi mal educado e absolutamente sem modos, como se realmente não se importasse em nível algum que estivesse falando com uma rainha. — Eu estive com Tord por mais tempo do que posso lembrar, bem antes que ele matou o rei das terras geladas. Eu vi e vivi todas as conquistas dele… Então notei que o Tord tá enlouquecendo, acho que ele sempre foi meio louco. Gostaria de ter percebido isso antes.

E você percebeu isso antes ou depois que ele queimou vilas inteiras? — Tom questionou com aquele veneno na voz, ao mesmo tempo que estava descrente demais. A desconfiança deixou suas palavras e sua postura um pouco agressivas. — Os rumores que chegam aqui falam sobre um conquistador lunático que ateia fogo em todos que se recusam a obedecê-lo e mata mulheres e crianças a sangue frio.

Foi quando eu notei tudo isso que decidi deixar ele.

Uma interessante escolha de palavras, Tom não deixou de reparar, mas não teve tempo para imaginar algum possível significado. Matilda finalmente decidiu algo:

— Eu lamento por tudo que o senhor passou, duque Eduardo. Vocês são bem-vindos para se abrigar no castelo. — A ruiva voltou a sentar-se no trono, apoiando as duas mãos nos dois braços com acolchoado vermelho. — Edd, creio que eu posso contar com a sua cooperação contra o exército vermelho?

— Você tem a minha palavra.

— Irei de providenciar aposentos para ambos, sintam-se à vontade para andar pelo castelo.

O duque agradeceu toda a gentileza antes de sair, já o vira casaca do Exército Vermelho deixou o salão sem falar nenhuma palavra sequer e Tom não tirou os olhos dele enquanto ele não fechou a porta, sem conseguir se livrar da sensação de desconfiança no estômago. A rainha suspirou e encostou-se nas costas do trono, relaxando um pouco a postura antes tão ereta e de repente soltando um riso seco:

— Não sou rainha nem mesmo faz um dia inteiro e já surge um problema como esse. Acho que finalmente entendo o que a minha avó falava sobre isso.

— Majestade, a senhorita não acha que seria melhor prestar atenção naquele general?

Assim que sugeriu, Matilda imediatamente concordou com um simples “sim”, mesmo que tivesse mais coisas para falar:

— Eu conheço Eduardo, mas não consegui decifrar aquele outro homem, manter um olho atento nele é uma boa ideia. — Ela dedilhou o braço do trono apenas por alguns segundos, pensando. — Se o Exército Vermelho realmente chegou ao condado do duque, certamente estão seguindo pelo Caminho da Viúva e creio eu que seria sábio mandar um espião a cavalo verificar isso.

— Vou providenciar isso agora mesmo, minha rainha. — Falou enquanto já estava caminhando para ir embora, mas antes que pudesse realmente chegar perto da porta a ruiva lhe chamou pelo nome e imediatamente virou-se na direção dela. — Precisa de algo mais?

Poderia vir aqui?

Fez o que foi pedido, mas Matilda se colocou em pé novamente e desceu os três degraus da parte mais elevada no salão onde o trono ficava. Ela chegou perto até demais, mas era aquela aproximação que Tom conhecia bem e sentiu falta nos últimos dias, e apoiou uma mão no peitoral da armadura, olhando o brasão da coroa que lá estava marcado, silenciosamente e pensativa.

Casualmente segurou a mão dela e ganhou um pequeno sorriso de resposta imediata, que finalmente voltou os olhos para o seu rosto e o cavaleiro encarou-a de volta, haviam tantas coisas não ditas em meio a troca de olhares. Ambos era praticamente da mesma altura, com menos de um dedo de diferença a mais pela rainha. Tom não era particularmente baixo, ela que era especialmente alta.

— Você pode me chamar apenas de Matilda — Comentou calmamente. — nós já conversamos sobre isso, Tom.

Então, depois de todos aqueles dias distantes de Matilda, ela lhe abraçou escondendo o rosto e Tom desejou estar sem aquela armadura, mas tentou oferecer o conforto que não pode antes. Ficaria ao lado dela naquela situação tão nova e tão difícil sem que ela precisasse pedir…

Ficaria ao lado dela mesmo se estivessem no fim do mundo.

26 de Março de 2020 às 16:01 0 Denunciar Insira Seguir história
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