Erechim, RS.
• 2010 •
A garoa gelada começava a molhar os casacos dos policiais que estavam atrás da linha de contenção. A faixa amarela com letras pretas trazia a péssima notícia de um crime. Ana de Castro, 18 anos, caucasiana no primeiro ano de psicologia da universidade federal de Erechim. A segunda vítima do estripador.
Esperavam a policial designada para o caso; Rafaela Dias Bauer. Novata, cheia de ideias e ideais para sua longa carreira na polícia. Ao menos era o desejo da jovem nos primeiros meses, nem havia completado um ano e aquele caso macabro já havia caído em seu colo, mais especificamente o caso lhe fora jogado na mesa, como quem se desfaz de algo sem importância.
Saiu do carro e o som do salto eclodia ao paralelepipedo. A única viela que não estava ainda asfaltada, e tampouco seria, com o último ocorrido ali. Não apenas os cidadãos comuns evitariam, qualquer um que fosse designado a trabalhar ali recusaria veementemente. Foi assim na rua Euclides da Cunha, tão próxima aos Bombeiros, mas ninguém se sentia seguro caminhando por ali, independente da hora. Rafaela olhou para os lados antes de atravessar a rua, chegando à barreira feita pelos policiais, os primeiros a chegar no local.
Modus operandi; uma ligação gravada.
Ele fazia a vítima implorar por ajuda, podendo gravar o desespero e usar para ligar para o 190. Informando também onde deveria ser encontrada. A polícia chegava e o sangue já havia sido derramado, as tripas, vísceras e órgãos eram expostos às paredes, como quadros surrealistas, mostrando a dor que a vítima teve que suportar.
— Alguma coisa que devo saber antes de entrar?
A voz firme embora o estômago se revirava em desespero. Rafaela recebeu como resposta uma negativa com a cabeça vinda do policial mais velho dali. Ele suava frio, o colarinho estava manchado e ela sabia bem que não era da chuva, o quepe estava seco.
— Está sem o coração. — O outro comentou umedecendo os lábios depois, como se todo o líquido do corpo tivesse evaporado. Chegou até mesmo a se arrepiar ao lembrar do que vira quando entrou naquele galpão abandonado.
Nenhuma novidade até então, no caso da rua Euclides da Cunha, Rafaela havia notado a falta do músculo cardíaco da “primeira” jovem assassinada. Ultrapassou as fitas de contingência, sabendo que a cada passo que desse, mais perto estaria de seu próximo pesadelo. Mortes não a assustavam, corpos desfalecidos tampouco. Mas saber que existia em meio à eles, alguém capaz de tamanha covardia… aquilo sim a deixava receosa.
O galpão mal iluminado, com poças de água devido às chuvas e o telhado quebrado. O som de seus sapatos eram suas únicas companhias por certo tempo. Notando como aquele local era propício à assassinatos, surpreendendo-se por ninguém nunca antes tê-lo usado para tais fins. Apenas um ou outro drogado que fazia dali sua moradia, agora nem eles iriam frequentar.
Quanto mais adentro daquele local, mais algumas vozes se tornavam compreensíveis aos ouvidos de Rafaela. Uma masculina, que dizia algo apressadamente à alguém, outra feminina que parecia informar as curiosidades sobre o local do crime.
— Bauer, finalmente se juntou à nós. — A moça de madeixas escuras ergueu-se, não tirando as luvas, muito embora tenha até mesmo esticado a mão para um cumprimento, soltando um “ah” logo após, quando Rafaela sequer estendeu a mão em cortesia. — Bem pensado, melhor não tocar nessas luvas — ela olhou para as próprias mãos enluvadas, coçando a ponta do nariz com o dorso de seu punho esquerdo, aproveitando-se do relógio, para que fosse mais eficiente.
— Rafaela? — uma constatação, algo que o policial esperava da jovem. Tendo suas suspeitas sanadas quando ela deu alguns passos em direção a ele, apertando sua mão. — Tenente Reis — apresentou-se. — Já está familiarizada com o caso, suponho. Me informaram que foi a primeira a achar o corpo da outra moça. Alguma suspeita ou indício que nos leve à algo maior?
— Senhor, minha única suspeita é que esse não é o segundo assassinato desse homem.
— Homem? — o olhar curioso dele caiu sobre ela, a diferença de altura só intensificava o seu olhar superior.
— Não desmerecendo as forças das mulheres, mas no primeiro caso a vítima havia sido erguida e fixada à parede, não haviam marcas de qualquer coisa que a pudesse ter erguido, que não o formato fundo de um punho fechado. A vítima já estava morta, então as marcas denunciaram isso. — Rafaela falou já afastando-se dos dois ali presentes, caminhando em direção ao novo corpo, mais um de uma pilha que ela sabia que outros acompanhariam.
A jovem notava as poças de sangue, diferentes de outrora, aquelas pareciam um desenho um pouco menos abstrato e aleatório que retratavam a dor de uma vítima. Se parando para notar, havia uma enorme mancha ao chão, sutilmente ovalada, enquanto mais duas, uma um traço vertical ao lado da oval, e uma bola quase perfeita sobre o traçado em linha reta, agora de sangue mais seco. “Oi”.
As semanas transcorreram com a notícia de que o atroz assassinato havia passado impune. Deixando o sabor amargo aos lábios da policial que investigava o caso. Rafaela lia as manchetes, ainda em jornal, indiferente aos “benefícios” que a tecnologia poderia lhe propor; tal como ler aquilo em seu telefone celular. Folheava o jornal enquanto esperava seu café preto na pequena lanchonete próxima à delegacia. Evitava os colegas de profissão e suas indiretas não muito encobertas que a faziam lembrar seu fracasso. Sabia que só teria mais informações sobre o Estripador… tarde demais para mais uma jovem vítima. Falhava não apenas com aquelas moças, mas com a memória de seu pai.
— Escondendo-se? — Bárbara chamou sua atenção, fazendo-a sobressaltar no banco encoberto por napa vermelha da mais baixa qualidade. — Os “bonzões” da polícia não conseguiram nada, e jogaram esse caso no seu colo, garotinha. Relaxa, sei que é aterrorizante saber que tem um maníaco à solta, mas ingerir litros e litros de cafeína só vai te trazer um buraco no estômago.
A jovem policial ergueu o rosto, notando os óculos escuros da forense, tal como uma caneca de café e uma outra que ela supôs ser a dela. Suas suspeitas foram confirmadas ao ter a caneca passada sobre a mesa, enquanto a forense sentava-se defronte à si. Rafaela não estava ali em busca de companhia, tal como se vê em historinhas de romance na qual o grande amor de sua vida esbarra com você na cafeteria. Não, ela estava ali porque queria silêncio e paz para ler a porcaria do jornal.
— Não me escondo, mas prezo muito por uma paz antes das oito da manhã, sabe. A velha história de silêncio é o alimento aos ouvidos cansados. — A frase dita inúmeras vezes por seu pai rompeu por seus lábios recém umedecidos, enquanto tomava a caneca em mãos, bebericando do café fumegante. — E você? Cansada de não conseguir provas e veio afogar as mágoas em… ? — meneou a mão, duvidando muito que aquilo na caneca alheia fosse café.
— Chá de camomila com toque de gengibre — o tom de voz não poderia ser mais ameno. Ela destilava tranquilidade ao falar, como se uma pluma bailasse ao ar.
— Eca. E depois vem falar do café, ao menos ele só faz um rombo no meu estômago, e não na minha reputação — a careta não poderia ser mais entojada.
Foi assim, com olhares trocados (mesmo com o óculos escuro de Bárbara) que beberam suas respectivas bebidas em silêncio. A mente da forense repleta de coisas sobre o caso, a lama por lá encontrada e tantas coisas que ela privou àquela investigação. Enquanto Rafaela pensava apenas na desonra que aquilo era à memória de seu pai; o grande tenente Bauer.
— Não conseguiu mesmo nenhuma pista com tudo aquilo? — a indagação veio com uma pitada de incredulidade, e seu olhar deixava isso perfeitamente claro.
— Infelizmente não — a forense tomou o último gole daquele chá, apoiando a mão à mesa para se levantar. — E duvido muito que ele volte à ativa por agora. Se eu fosse você deixava esse caso arquivado, não vai te levar a lugar nenhum. — Virou-se sem contar com uma resposta qualquer de Rafaela, levando consigo ambas as canecas, já vazias. Notando pela visão periférica que a policial havia se posto de pé, custando a dar o primeiro passo, mas o fazendo mesmo assim.
— As pessoas esquecem fácil, sabe. O meu pai teve que arquivar casos de desaparecimentos, e batem muito com o padrão do Estripador. Esse monstro está impune há tempos, deixar isso de lado não apenas não vai me ajudar, como deixa exposta qualquer outra pessoa que ele queira fazer de próxima vítima.
Os passos tornaram-se muito mais decididos, enquanto passava pela forense, retirando do bolso as notas amassadas para arcar com os gastos, muito embora sequer tivesse pedido pela companhia daquela mulher. Ouviu o caixa dizer que já estava quitado, por isso virou-se para Bárbara, ainda com o dinheiro amassado em mãos, separando a nota de cinco, basicamente espalmando sua destra aos seios alheios, empurrando-lhe o dinheiro.
— Não gosto de dever nada à ninguém.
E rompeu porta afora, sem mais delongas, sem dar tempo sequer da forense recusar o dinheiro ou o que quer que fosse. Deixando-a sozinha com sua mente bombardeando-a sobre os casos arquivados; eram muitos. Uma mancha à reputação da polícia que fazia apenas abafar a repercussão para não alarmar os moradores da cidade. Bárbara àquela altura sequer poderia imaginar que a policial pediria baixa, saindo da polícia após ter o pedido negado para continuar investigando o homicídio de Ana de Castro. Rafaela abandonou o cargo, mas os instintos a fizeram abrir sua própria investigação, na pequena casinha na Rua Aratiba, próxima ao curso de idiomas. Uma referência ao menos. Aceitaria dali em diante casos que a polícia deixaria de lado, mas sua principal investigação seria reabrir os casos de seu falecido pai, seria buscar as anotações que ela sabia bem estarem guardadas no galpão próximo à delegacia, num armário que agora apenas ela tinha acesso.
Aquele era o instinto indomável, guiando-a à resolver o que mais ninguém teria coragem e vontade de fazer.
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