agmars A. G. Mars

Era um encanto tão peculiar que nascia de dentro dele, talvez fruto de sua delicadeza interna, talvez fruto de sua magnitude excêntrica. Não saberia dizer. Mas cada mínimo detalhe daquele rosto magro e malcuidado, com mais cicatrizes do que poderia imaginar pintando um anjo tão dócil, fê-la se apaixonar perdidamente como se fosse a primeira vez que o via numa rua chuvosa de um filme romântico antigo.


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Guilherme

— O que você tem contra a droga do X?

Por alguns instantes realmente duvidou que ele falava consigo. O olhar tão focado e, ao mesmo tempo, tão distante na embalagem de milk-shake de Nutella realmente fazia parecer que ele falava com o produto. Talvez estivesse tão absorto na própria mente que soltara palavras avulsas e a si, tão perto, ouviu. Então optou por apenas observar aquele mistério que pairava na mesa da praça de alimentação, como se fosse realmente algo importante qualquer coisa que viesse daqueles lábios. Não que fosse uma ironia, mas era uma bela distração observá-lo perdido no tempo.

— Hein? – Mas ele tornou a falar e, desta vez, os olhos castanhos tiveram a consideração de se erguerem tão lentamente quanto entendia o que ele falava. Finalmente tinha dele alguma atenção, a prova de que não estava tão louco para falar com embalagens: ele esperava uma resposta sua. Contudo, qual seria a pergunta mesmo?

— O quê? – Perguntou como se apenas agora houvesse notado a existência peculiar do garoto qual conhecia há algum tempo. Como se apenas naquele momento sua mente estivesse presente ao lado daquele que, acreditava, também não estar consigo até alguns minutos atrás.

— Por que você não usa o X? – Desta vez não foram apenas os olhos que se voltaram para si, mas o rosto todo, dando uma bela visão da seriedade que ele trazia na pergunta. Esperou, fingindo que aquilo era uma grande piada, ou uma ironia pessoal, e não uma pergunta real qual não entendeu. Era mais fácil esperar dele uma brincadeira do que uma pergunta com sentido completo. Ainda que ele sempre houvesse sido assim, nunca conseguia não o comparar aos outros.

— Como assim, Guilherme? – Fingiu até um sobressalto ao que se virava de corpo inteiro para ele. As pernas cruzadas como se estivessem numa conversa tão séria que precisava de uma pose igualmente compatível. Não conseguiria admitir que não entendeu a pergunta. Pior, admitir que, na singela ignorância, esperava dele repulsa e não uma curiosidade infantil como a qual brilhou naquele olhar.

— Você... – ele riu baixo, negando de leve com a cabeça como se fosse dizer algo tão estúpido, desmerecendo a própria curiosidade — ao invés de fazer a merda de um X – apontou calmamente para a apostila sobre a mesa qual tinha alguns exercícios de matemática resolvidos — você faz essa merda ai! – Riu divertido, mas não em uma piada mal contada ou com o humor apodrecido de quem quer diminuir alguém. Riu como uma criança que finalmente consegue entender o porquê de o arco-íris ter sete cores ao invés de dez; o porquê da existência das noites e dos dias; o porquê da beleza na compreensão. Havia algo nele de tão puro que não conseguia sequer se magoar, apenas sorrir tão doce quanto sorriria para uma criança que lhe oferecesse doce.

— Resumindo? – Riu baixo diante do concordar de cabeça tão leve dele, quase imperceptível para quem não está acostumado a tais nuances — É mais rápido e eu não preciso tirar o lápis da folha! – Novamente riu, mas da própria preguiça ao assinalar algo tão bobo quanto uma questão. Um detalhe tão singelo que sequer entendeu como se tornou visível aos olhos dele enquanto ele apenas se perdia no milk-shake, distante. Era como se Guilherme tivesse mais do que apenas os olhos na face, mas algo no fundo de sua mente que o fazia ver além. Mas sabia, não era a exceção dele.

E, enquanto esperava uma reação tão normal quanto um dar de ombros ou uma piada malfeita – ainda que soubesse que ele não vivia apenas de ironia –, Guilherme, dentro de toda sua singularidade, apenas sorriu. Um sorriso onde apenas os lábios rosados se curvaram tão imperceptíveis devido a grossura quase sensual, se não fosse tão inocente, da boca. E tal mero sorriso alcançou-lhe os olhos que, vistos ao longe, pareciam como o de todos os outros, mas de tão perto poderia se notar o brilho significativo que banhava o castanho. Era um encanto tão peculiar que nascia de dentro dele, talvez fruto de sua delicadeza interna, talvez fruto de sua magnitude excêntrica. Não saberia dizer. Mas cada mínimo detalhe daquele rosto magro e malcuidado, com mais cicatrizes do que poderia imaginar pintando um anjo tão dócil, fê-la se apaixonar perdidamente como se fosse a primeira vez que o via numa rua chuvosa de um filme romântico antigo.

Contudo, não havia nenhuma hipocrisia poética dentro de si. Sem o coração disparado ou as borboletas no estômago, tudo o que sentia era uma calma tão absurda que quase parecia irreal. Uma calma que só se lembrava de ter sentindo quando ainda era muito jovem e acordava quase urinada dos pesadelos, então vinha sua mãe desesperada lhe acalmar não só com palavras de amor, mas com tantos beijos, promessas e mimos que se esquecia que um dia teve medo, que um dia ficou nervosa. Um ato tão importante e marcante em sua vida que ele conquistava com um único sorriso dócil que poderia dar a qualquer um, mas que, naquele momento, era apenas a si quem tinha um segundo livre na vida para contemplar.

Era simplesmente impossível não se apaixonar por Guilherme a cada dia que passava com ele, ainda que a certeza sobre não ser correspondida crescesse. Algo bem simples: ele era puro demais. Porém, diferente das próprias expectativas, tal constatação não lhe matava por dentro, apenas a fazia amá-lo ainda mais na calmaria que eram os dias ao lado dele.

Guilherme era, não só apaixonante, mas a mais bela poesia que queria decifrar.

— Sabe... – ele murmurou por fim, tendo o sorriso repentinamente morto em sua boca num milésimo tão frio que a fez suspirar em quase depressão — Você errou a conta! – E novamente o sorriso nascia ao que o fino e longo dedo apontava descaradamente para o exercício que acabara de terminar. Exatamente sobre um número qual não soube analisar de primeira. Nem tentou. Apenas riu divertida negando com a cabeça.

— Vai se foder, Guilherme! – Brincou rindo, desferindo nele um leve tapa que o fez balançar exageradamente na cadeira. Era simplesmente como se cada momento com Guilherme fosse um dia que recomeçava. Uma vida que renascia.

14 de Dezembro de 2018 às 14:59 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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A. G. Mars We'll be a fine line... we'll be alright

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