Avisos: Violência, gore (breve), menções sobre estupro e pedofilia.
A morte entra em um bar.
Parece o começo de uma boa anedota.
Em uma noite quente de verão no centro da cidade, uma música triste toca no rádio. No balcão um homem conta sobre a última partida, outro bebe o último desencontro. Acima de suas cabeças, o relógio marca seu tempo, para mais, ou para menos.
O tempo, afinal, é mais precioso que tudo.
E ainda assim, o mais desperdiçado.
O fato é que a morte entra em um bar, e caminha até os fundos casualmente. Ninguém a percebe enquanto passa entre eles, embora todos irão a encontrar em algum momento, mais cedo ou mais tarde.
Não agora, agora a morte tem um encontro já marcado.
O ar frio da noite é penetrante, o cheiro de sangue fresco e sexo mais ainda vindo da escuridão. A porta se fecha, abafando o som alto de dentro, tornando audível a respiração forçada de alguém em seus últimos momentos a cada passo que toma para o beco.
A cena seria grotesca a outros olhos, mas nada de novo sob o sol. Sangue escorrendo nas paredes imundas, uma mão na garganta tentando em vão parar o fluxo, os olhos arregalados, incrédulos com o que acontecia. Não é todo dia, afinal, que o caçador se torna a caça.
O pulsar está ali, assim como os últimos fios se quebrando. Uma alma a espera de ser ceifada. A cor escura de quem espalhou a desgraça durante a vida. Uma daquelas que vai lutar, espernear contra o inevitável.
Claro, eram sempre dessas quando a menina estava envolvida.
Os olhos escuros fitam por entre o sangue no beco escuro, um sorriso breve se desenha nos lábios, feliz, como alguém que revê um velho amigo.
- Pensei que faltaria ao nosso encontro.
Como se fosse possível.
A morte é sempre pontual.
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A cada século ou por aí aparecia um desses. Alguém estranhamente conectado com a morte, a enxergando além do véu que cobre os olhos da humanidade tão bem. Nem mesmo as oferendas eram novidades, os humanos são seres complexos, com seus complexos rituais.
E ainda assim, aquela situação era completamente diferente das demais.
O primeiro encontro entre a menina e a morte se deu nos seus primeiros momentos de vida: Quando ela tomou sua primeira respiração, sua mãe deu a última. Uma vida abençoada com a morte, em uma estranha poesia macabra que ocorre de maneira estranha tantas vezes.
Assim como foi estranho os olhos se abrirem naquele momento, e notarem a figura à espreita.
A primeira coisa que ela viu na vida, foi a morte.
E a partir daí ela podia a ver claramente.
No leito do seu pai os dois conversaram sobre a necessidade de um começo e o fim em tudo.
Em um quarto escuro de uma casa velha no fim da rua, o corpo de seu primeiro predador em forma de guardião ainda quente no chão da cozinha, ela lhe perguntou sobre o significado das coisas.
Em meio aos escombros de um prédio, presa depois de um ataque terrorista, ela questionou sobre sua própria existência, e o fez se perguntar o mesmo.
E os encontros continuaram ao longo dos anos. Na falha em haver um encontro casual, em algum momento ela aprendera a fazer suas próprias oportunidades.
A morte não sabia como ela os escolhia, mas ela sempre conseguia marcar um encontro, ávida pela companhia da morte, mas do que da vida.
-Dizem, que sempre que você toma a direita ao invés da esquerda, outra versão de você que tomou a esquerda cria uma realidade completamente diferente.
O corpo pendurado nas grades da ponte, um cigarro nos lábios enquanto contava suas teorias sobre o universo. O rosto limpo do sangue, os cabelos ainda úmidos, ela brincava na beirada do abismo, mesmo os dois sabendo que ela não iria cair.
Todos têm seu tempo, a sua hora. Todos têm seu relógio marcando sua contagem regressiva. Alguns mal experimentam o sopro da vida e já caem em seus braços. Jeanne Calment esperou 112 e 164 dias muito bem vividos até vir docemente ao seu encontro.
É assim que funciona, a morte é sempre pontual.
-Deve existir outra de mim por aí, com uma vida completamente diferente da minha.
Ela suspira para a noite, olhos escuros atentos ao céu, murmurando uma música já tão familiar.
-Então, quando vem me buscar, meu amor? – O questionamento casual também já lhe é comum. Olhos escuros ávidos, a mão tocando seu rosto em um gesto íntimo. Uma alma sofrida que procura os braços da morte como consolo, mas nunca pronta para um beijo.
Estranhamente, alguns acham a morte atrativa e a vida feia. Era uma daquelas coisas que aprendera a aceitar, embora nunca fosse entender por completo.
-Quando for seu tempo.
Ela sorri, os olhos escuros como a noite o fitando de forma melancólica.
-Então até o próximo encontro.
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A morte caminha na rua escura, a caminho do seu próximo apontamento.
A morte fita a lista em suas mãos, e ao ver o nome da sua menina o apaga completamente, como se nunca estivesse surgido ali.
-Tudo tem seu tempo.
O relógio dela, afinal, havia travado em segundos há anos.
A morte também aprendera a apreciar esses encontros.
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Notas finais
200 anos depois, surge o nome da menina na lista, a morte apaga novamente e finge que não apareceu, fazendo planos sobre o que conversar no próximo encontro.
O destino dá um grunhido exasperado.
Espero que tenham gostado, é curtinho, mas sempre tive isso na minha cabeça e tinha que tirar. Talvez faça uma continuação, ou talvez não. Acho que fica bom como parou também.
Algumas clarificações:
A menina se tornou uma espécie de vigilante, ela coloca como alvo principalmente predadores sexuais, pelas experiências que passou depois que perdeu o pai.
A morte ignora ela na lista, que devia ter morrido já há algum tempo, e por isso o relógio dela parou nos últimos segundos. A morte não quer perder seus encontros.
A menina pode ver os relógios também? Who knows! Mas se eu fizer uma continuação, vai ser focado nesses relógios-Cronômetros.
Jeanne Calment, que a morte citou, foi a mulher mais velha a se ter conhecimento na história.
P.S: Coisas ruins acontecem com pessoas boas também, infelizmente. Se você sente que o único alivio pode vir do 'beijo da morte', saiba que não está sozinho, que ainda há muitos sabores de sorvete para experimentar na vida. E que minha caixa de mensagens sempre estará aberta para conversar.
Você não está sozinho(a)
Obrigado pela leitura!