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A morte de Morpheus

Luanna queria matar Morpheu.

Precisava de o fazer, não por lhe ter qualquer tipo de ódio em particular, antes por se ir de encontro a ele cedo demais, o que lhe trazia demasiados inconvenientes, tais como nunca ter contemplado a lua. Dela sabia que era redonda como uma bola brilhante, se bem que de um brilho diferente do sol.

Também nunca tinha visto as estrelas, com exceção da pequena estrela da manhã, que lhe aguçava o pensamento e a fazia imaginar o céu, cravado de tantos outros pontinhos semelhantes, decorando assim o teto do mundo.

Essa vontade não lhe veio de súbito, não lhe surgiu na ideia de um dia para o outro. Foi antes se edificando, alicerçando no esmorecer de cada dia, lentamente com o passar do tempo.

Apercebendo-se que o sono a devorava, no momento de mutação da passagem do dia para noite, a que todos os dias se sujeitava o mundo, Luanna foi querendo, com mais força a cada dia, passar a fronteira diurna.

Mas por muito que luta-se, que se debatesse para não se afogar na abstrata escuridão interior, a força do braço de Morpheu puxava-a sempre para o profundo do seu reino.

No desconsolo dessa condição, só lhe restava imaginar, como seria a luz de um pirilampo, ou porque à noite todos os gatos viravam pardos.

Infindáveis foram os dias em que saía para pernoitar de dia, ora em caves úmidas e bafientas onde vivem os caracóis, ora em profundas grutas entranhadas no ventre das montanhas, onde antagonicamente dormiam os morcegos que que não conheciam nem tardes nem manhãs. Também procurava as sensações da noite nos dias escuros, de densa chuva e pesadas nuvens. Para cada um desses momentos, calçava uns sapatos apropriados, mas nunca sandálias, pois desconfortavam-lhe os pés.

Nos tempos de tempestade, nunca repetia um guarda chuva, a não ser o das riscas verdes e brancas de cabo amarelo que sempre usava para os passeios à beira mar. Mas a ânsia de se envolver com a escuridão não lhe era atenuada por nenhum desses fingimentos, pois nenhuma dessas experiências lhe esbatiam o desejo de acompanhar o girar da terra em relação ao sol. Esses refúgios não tinham mais que escuro, desconforto e frio. A noite, pelo contrário, vestia de veludo, sussurrando doçura.

Luanna não sabia como fintar a dormência do sono, e a vontade de desafiar o narcótico rei do breu, foi-se assim apoderando dela.

Um dia, bem pela manhã, vestiu a sua capa dourada debruada de azul, calçou os seus sapatos mais confortáveis, aqueles brancos com dois olhinhos de rã, e partiu em direção ao horizonte. No bolso levava um grande facalhão e toda a esperança de arruinar o poder tirânico das mãos do senhor do ronco.

Por anos seguiu na direção do horizonte, vendo o sol se pôr e não vendo a lua nascer. Continuava sem saber como alumiava a vela a noite, ou como soava o piar dos mochos. Sobrava-lhe a sorte de não conviver com o medo de todos os monstros e seres estranhos que vagueiam na noite. Assim, foi conhecendo o mundo, sempre em frente na vertical, sem porém vislumbrar o reino do ladrão do dia, companheiro das sombras e dos mundos torpes.

Certo dia, quando já se lhe fechavam os olhos, recostada a um velho castanheiro, de manta sobre os joelhos, por sinal muito bonita, amarela com pequenas bolas vermelhas, vislumbrou um monte à distância. No seu topo, desfocado pelo grave cerrar das pálpebras, viu um grande castelo prateado envolto em cinzentas nuvens circulares. Na incerteza de saber em qual dos mundos o fixava, assim se deixou adormecer e partir para o outro lado, o da vida estranha.

Ao acordar já o céu era azul clarinho, salpicado aqui e ali por pequenas e gordinhas almofadas brancas. Esticou os braços e as pernas muito bem esticadinhas, e num pulo se pôs de pé. Dobrou a mantinha com afinco e esfregou os olhos vigorosamente com os nós dos dedos. Tinha a saia amarrotada e cheia de pequenas folhinhas castanhas que pareciam ser atraídas pelo macio do algodão e pensou como dormiriam as flores e as demais espécies vegetais na acalmia da noite escura. Nunca tinha visto o sono de uma rosa, apesar de as já ter visto desabrochar. Num instante um pequeno pintassilgo iniciou um concerto improvisado. Estava pronta para calcorrear a estrada quando lhe veio à memória o vislumbre do dia anterior. Teria sido traída pelo sono ou haveria mesmo um palácio? Colocou a mão em concha encostada à testa e rodou devagar sobre si mesma, de olhos postos no horizonte.

Lá estava! À distância de umas léguas, um pequeno brilho que intenso, do alto de uma colina refletido lhe feria os olhos. Resolveu partir sem que antes deixasse de aplaudir o pintassilgo.

Seguiu o caminho chutando pedrinhas e colhendo flores. Passo a passo, correram as horas lentamente, passou o dia e outro dia, até que por fim chegou. Subiu o monte às costas de um carneiro e o que dantes era apenas um reflexo, tornara-se uma imensa torre luminescente, serpenteada por uma sólida escadaria de ferro que a abraçava com tal força que quem visse julgaria que tinha medo que a torre a abandonasse.

Luanna circundou a torre três vezes e das três vezes não vislumbrou qualquer entrada. Não tinha portas, nem janelas ou qualquer tipo de orifício por onde o dia se pudesse esgueirar e invadir o seu interior. Apenas as escadas pareciam um elemento a mais naquela estranha estrutura inerte, colossal e adormecida na sua elevada condição de torre. Trocou os sapatos dos olhinhos substituindo-os por uns mais leves de cor de limão, calçou umas luvas de cetim purpura e saltou para as escadas. Subiu, subiu até quase desaparecer de capa ao pescoço como um pequeno ponto dourado e esvoaçante. Pelo caminho tocou as nuvens e sentiu o vento fresco acariciar-lhe o rosto com ternura. O silêncio do mundo acompanhava-a. A escalada durou três dias, seis horas e doze minutos.

Morpheu continuava a ser-lhe impiedoso, tendo-lhe como sempre, apenas sobrando os vislumbres do dia. No topo da torre, Luanna inclinou-se sobre a ponta dos sapatos e avistou todas as coisas e fronteiras. Conheceu o fim do horizonte, onde descansam as almas e giram os planetas, fazendo-lhe tremer o coração. Procurou no pátio por uma entrada, mas de novo nada parecia uma entrada. No centro, uma enorme bolha de vidro assentava no chão entalada hermeticamente num círculo perfeito. A cúpula parecia-lhe ser o mais parecido a uma entrada e aproximou-se. Avançou a mão a medo, até os seus dedos esguios e perfeitos lhe tocarem. O vidro tremeu. Orgânico, como que vivo, abriu em si um buraco repelido pelo seu tato. Tirou as luvas, descalçou os sapatos e mergulhou de encontro ao que viesse.

Sem perceber bem como, estava dentro da torre. No seio do seu ventre, quente e húmido, tudo lhe parecia diferente. Não sabia se estava acordada ou a dormir, se vivia a realidade ou se um estranho sonho. Um som ecoou num acorde fantasmagórico. Fechou os olhos para perceber de onde vinha e perseguiu-o. Caminhou largos minutos num corredor. Por fim, chegou a uma grande sala oval. No centro do salão, estava um palco Redondo que se movia lentamente sobre si próprio, ligeiramente afastado do chão e circundado por várias filas de poltronas de cetim vermelho, desgastadas pelo tempo imemorável. Sentadas, estranhas figuras adormecidas, de cabeças penduradas, inclinadas para trás das costas, dormiam um profundo sono induzido. Vestiam roupas que lhe pareciam de outros tempos, de grandes cabeleiras brancas, tortas e em queda pela inclinação dos seus corpos. As suas vestes, pesadas e bafientas, acumulavam pó há gerações.

Em cima do palco, cinco homens altos e esguios, curvavam-se sobre o peso de grandes guitarras elétricas luzidias e bem polidas, de cabos tão longos que parecia impossível que as suas mãos pudessem produzir qualquer acorde. Um foco de luz azul, vindo de lado nenhum, inundava o palco dando ao cenário uma tonalidade divina. Partículas cintilantes, bailando à deriva, circundavam todo o lugar como minúsculos flocos de gelo. Uma nota soltou-se do dedilhar do baixo e a banda começou a tocar. Luanna tremeu e o tempo parou.

Sons sónicos e dormentes faziam-na sentir-se a afundar num abismo sem fim. Estáticos e cambaleantes, assombrosos sobre os seus instrumentos, os cinco seres encobertos por negros mantos, encadeavam os acordes numa muralha de som mágico e rendilhado. A mais bela e hipnótica música abraçava-a num embalo a que mal conseguia resistir. O abismo parecia inevitável e sentiu-se novamente a ser sugada para longe da realidade.

O seu corpo flutuava e pensou que teria de sair rapidamente daquele lugar, pois corria o risco de ali ficar, presa às melancólicas sinfonias de Morpheu, agarrada para todo o sempre a um profundo sonho infinito. Fraca e ébria tentou procurar uma saída. O chão fugia-lhe debaixo dos pés e tudo rodava em movimento. Tapou os ouvidos com duas penas de ganso que flutuavam no ar, tirou os sapatos cor de limão e descalça correu como podia em direção a uma pequena porta escondida por trás dos longilínios homens. Fechou a porta atrás de si e recostou-se aliviada sobre ela. Aquela música magnífica tocara-lhe tão fundo na alma que emocionada não evitou chorar. Dos seus olhos escorreram lágrimas, de sal do esquerdo e doce do direito, num imenso choro salubre.

Recomposta procurou saber onde estava. A dois palmos, logo por baixo dela, uma imensa escadaria parecia desembocar numa outra sala que ténue lhe aparecia ao fundo. O chão estava frio mas não se quis calçar. Optou por um par de meias cor de rosa e fofinhas que lhe iam até aos joelhos. Caminhava agora em silêncio.

Ligeira, pululou cada um dos degraus com uma das mãos encostada à parede, percorrendo-a numa longa e terna festa. À medida que descia ia-se sentindo um tanto ao quanto inquieta. A ideia de ter perdido a razão tolhia-lhe o espírito. De alguma maneira, não lhe fazia sentido ter de matar o rei dos sonhos para cumprir o seu próprio, o de abraçar a noite e conhecer todas as delícias por ela geradas. Mas se Morpheu, no esplendor da sua tirania, lhe trazia o sono antes de o dia se extinguir, só lhe restava uma opção. Invadida pelo ódio, tocou com carícia o facalhão que no seu bolso repousava. Tinha chegado ao fim das escadas.

Voltou a calçar umas luvas, desta vez mais alegres e quentes, de lã vermelha e pequenos laçarotes amarelos. Com as mãos agarrou-se às barras do portão de ferro que barrava a passagem e com todas as suas forças puxou-o de encontro a si sem que este produzisse qualquer ruído. Num movimento ágil, passou pela abertura, sustendo o corpo dividido entre ambos os lados. Esticou a cabeça e uma intensa luz banhou-lhe o rosto.

O quarto tinha uma claridade tal que fazia crer um dia maravilhoso, não fosse o pormenor espantoso de não haver qualquer tipo de janela. Ao fundo, de costas voltadas para si, uma figura gorda e anafada, dormia despojado sobre as suas próprias banhas. De tronco nu, trajava apenas umas largas calcinhas de um branco encardido. A cama era de mármore, maciça e robusta, com uma cabeceira tão alta que quase tocava o teto. Sob o leito luzia um penico de ouro.

No momento, um calafrio percorreu-a dos pés à cabeça. Não teve dúvidas que dele se tratava, o príncipe do ópio, construtor de bocejos. Devagar, passou o resto do corpo, furtando-se de encontro à parede. Tateou o punhal cúmplice da sua libertação. Os seus pulmões queriam respirar mais depressa do que desejava e prendia a respiração para não ofegar, obrigando o coração a bater mais rápido e descompassado.

O grande Morpheu assobiava, perdido num descanso profundo sem se mexer. Já só um palmo os separava, unindo o sonho à realidade. Inclinou-se sobre ele, percorreu-lhe toda a silhueta estudando-o brevemente. Sentiu o seu calor, respirou o seu respirar e percebeu a tranquilidade de quem naquele momento criava todos os mundos impossíveis. Subitamente, os seus receios desvaneceram-se diluídos numa calma assassina. De um dos bolsos tirou a faca e do outro uma tília. Pousou a flor sobre o corpo inerte e num só golpe apunhalou a vítima na garganta. Morpheu, que nunca abria os olhos, abriu-os num reflexo de surpresa, fixando-a por momentos. Carolina viu neles o universo. Um fio quente e rubro, escorreu lento, manchando os cândidos lençóis turquesa.

Consumado, limpou respeitosamente o sangue espesso e rubro do corpo que jazia e com a palma da mão, afagou-lhe o rosto. Num último gesto, beijou-lhe a face e envolveu-o numa mortalha de linho rendado de pequenas cornucópias prateadas.

Luanna queria matar Morpheu e matou. Matou o sonho para cumprir o desejo e acabou com o sono para viver a noite. Envolvida no breu, contemplou a lua e todos os

seus encantos, dançou as mais frenéticas batidas da noite e abraçou o amor. Conheceu o relento e os sons da madrugada, sem que porém alguma vez voltasse a sonhar com eles. Nunca mais pisou a lua e jamais voltou a colher estrelas.

Sentada nas escadinhas da casa que um dia abandonou, dobrada sobre si, viu o sol se pôr e enterrar-se pesadamente no horizonte. Bocejou numa preguiça bem espreguiçada e recostou-se vazia.

Sem adormecer, envolvida no crepúsculo do dia, percebeu que a realidade era mais bonita, quando sonhada com poesia.


“Este conto é dedicado a todos os que ainda se atrevem a sonhar"


Tiago F.

13 de Novembro de 2018 às 13:37 3 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

tiago freitas Excepcional amante do maravilhoso, explorador de sonhos e compulsivo leitor de histórias.

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Rosie Tk Rosie Tk
Bom dia, muito obrigada pela ótima leitura que me proporcionou
November 11, 2022, 12:14
Diego Campos Diego Campos
Parabéns
September 20, 2022, 19:00
Giovanni Turim Giovanni Turim
Ótima história, gostei do final do conto.
September 13, 2022, 17:27
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