A escuridão encobria toda a cidade, obscurecendo os becos e os cantos, ocultando em meio as sombras densas e frias o que estivesse relativamente afastado do restante. Por sob as nuvens cinzas carregadas, havia milhares e milhares de pessoas espalhadas pela enorme avenida de paralelepípedo, o espaço vazio entre elas praticamente mínimo. Vozes e mais vozes se colocavam umas sobre as outras, altas, ensurdecedoras como ruídos incompreendidos. Um grande amontoado de gente com rostos, cabelos, peles e idades diferentes.
Lu Han era uma dessas pessoas, um ponto comum em meio à multidão a falar e a falar. Sua voz não era ouvida por si mesmo, assim qualquer outro som que produzisse; porém ele continuava, um sorriso parafusado em seu rosto e as mãos gesticulando sem parar quando não estavam a segurar o celular a digitar.
Não sabia para quem estava falando, ao mesmo tempo que não sabia quem falava com ele. Tudo parecia uma confusão, barulho desnecessário. Nada tinha lógica, não tinha sentido. E ainda assim ele continuava, copiando os demais fielmente, se mesclando a todos como uma grande mistura.
Permaneceu assim por muito tempo, seguindo o fluxo pré-definido, falando e falando sem nada a dizer, ouvindo e ouvindo sem nunca escutar, escrevendo e escrevendo sem saber ler. Seus ouvidos ardiam, sua cabeça doía, sua voz raspava em sua garganta como lixa. Não era capaz de entender seus próprios pensamentos, sequer conhecia-lhes a existência, incapaz de escutá-los por estarem abafados pelos zumbidos detestáveis ao seu redor.
O coração batia forte em desespero, desconfortável dentro daquela massa vazia de humanidade. Estava completamente sozinho embora estivesse rodeado por milhares. Todos eram distraídos demais neles mesmos para notá-lo deslocado, para direcionar qualquer olhar a ele. E assim Lu Han permaneceu, ignorante sobre o que deveria fazer e a conviver com tudo aquilo que o transformava em alguém sem voz.
O sentimento crescia cada vez mais, um câncer que se espalhava, agravando o estado lamentável. Lu Han virava a cabeça de um lado para o outro em busca da cura, enxergando cada vez mais pessoas se aglomerando, apertando umas às outras por espaço enquanto abdicavam uma parte maior. A sensação era claustrofóbica, agonizante.
Os rostos que antes pareciam ser diferentes entre si agora eram tão iguais, cópias um dos outros, sem formas ou cores a destacar por sobre a penumbra. A multidão era feita do mais puro vazio de sinceridade, todos sendo iguais a todos como xérox de um impressora em perfeito estado.
Lu Han tentou pedir que lhe dessem espaço, o rosto embargado em preocupação. No entanto sua voz parecia estar presa na barreira fantasma. Sua boca se movia e nada dela era soado, se movia novamente e nenhum som era ressonado. Não possuía voz o suficiente.
A frustração era instantânea, dissolvendo-se ao medo a aflorar forte no peito dolorido; o medo de que jamais pudesse se livrar daquela bola de ar o sufocando e o fazendo arfar. Contudo foi isso que o fez finalmente dar o primeiro passo, seus instintos tomando controle de sua consciência e o obrigando a tentar fugir.
Com o mínimo de movimento, suas pernas estalaram e reclamaram de dor pela falta de uso, tantos e tantos anos sem nunca mexer-se uma única vez, conformado. Lu Han se esgueirou por entre todos os paralisados a dificultar sua passagem, empurrando com cuidado alguns sem se importar mais em tentar conversar com eles.
Nunca seria ouvido, de qualquer forma.
Mesmo os movendo de um lado para o outro, aquelas pessoas continuavam a atrapalhar-lhe o caminho, bonecos incapazes de dar qualquer reação sem ser aquela superficial, falsa e fria que vestiam em suas faces. Lu Han tentou e tentou, mas quanto mais se debatia, mais agitavam-se para impedi-lo, passando a bloquear cada pequeno buraco. Já não conseguia mover-se mais que girar ao redor de si mesmo, preso entre manequins humanos.
Tomado pelo medo completo de para sempre ficar ali naquela agonia, o sufoco de Lu Han tornou-se maior, cortando-lhe de vez o ar rarefeito. Os olhos se fecharam com força, querendo se desligar daquela realidade, querendo deixar de ver o horror. Mas ele estava muito a fundo nela, impedido de escapar.
Escapar sozinho.
Todavia, não era o único desperto em meio ao oceano de almas condenadas. Assim como Lu Han, havia outros tão solitários e perdidos, gritando ao mundo e jamais sendo percebidos, suas vozes abafadas pela falação excessiva. E durante o tempo que esteve a aguardar por seu fim, as ondas trouxeram para próximo dele alguém que igualmente buscava uma maneira de escapar, que há anos vagava entre todas aquelas pessoas à procura de uma luz:
Minseok.
Eles se esbarraram costas a costas, se assustando quando se viraram um para o outro e não deram de cara com o igual. Aos olhos de cada um, o outro era diferente, eminente entre tudo. Ambos chamavam a atenção, as duas peças que não combinava com as demais, uma grande denúncia sobre a consciência que obtinham.
Lu Han tentou usar sua voz para falar com aquele a sua frente. Mas além de não a ter mais, Minseok já não era capaz de ouvir direito, há muito surdo após tentar com puro afinco escutar cada pessoa ao redor, essas tirando-lhe a capacidade de compreender através da palavras depois de tanto aguentar o egoísmo e o ódio alheio.
Imediatamente, Lu Han voltou a perder as esperanças, julgando que nunca conseguiriam se comunicar.
Agora seus corpos praticamente grudavam com o aperto da conglomeração que se tornou maior e maior, os aproximando ao máximo a ponto de que um podia sentir os batimentos cardíacos rápidos do outro, suas respirações se encontrando em seus rostos e pescoço. Lu Han era obrigado a abraçar Minseok, tendo-o mais perto do que jamais alguém esteve de si.
E naquele instante, conseguiu perder o desespero.
Não estava só, não mais. Ainda que nunca tenha verbalizado com Minseok, foi entendido tão bem quanto Lu Han havia sido ouvido sem as palavras. Estavam imóveis, paralisado por todos a sua volta como nunca estiveram antes. No entanto, estando tão perto um do outro, a calma reinou em seus corações a bater em um só ritmo, espantando os sentimentos claustrofóbicos que os importunaram por tantos anos a fio.
Só quando já não tinham mais o medo que os assombrava, é que ganham a verdadeira coragem para prosseguir.
Minseok agarrou a mão de Lu Han e juntos enfrentaram todas aquelas pessoas, passando por entre elas embora parecesse impossível. Empurraram, lutaram, se debateram, correram.
Os rostos a cercá-los foram se tornando cada vez mais irreconhecíveis, uma mancha sem fisionomia ou cor. Ninguém fazia nada além de espremê-los e permanecer em seus caminhos, diversas vezes quase quebrando o agarre que os dois mantinham em suas mãos. As fileiras de pessoas pareciam não ter fim, aumentavam em questão de minutos e prolongava-lhes o tormento. Minseok e Lu Han sequer piscavam, os olhos pregados a frente para nunca perder de vista aonde deveriam ir, o labirinto humano os confundindo. Arquejavam de cansaço, as faces encharcadas pelo suor a escorrer em abundância. As mãos já se encontravam pegajosas e levemente escorregadias, querendo quebrar-lhes o contato.
Mas, após o esforço extremo, por fim alcançaram a última fileira.
Ao verem-se libertos, Lu Han e Minseok puxaram todo o ar que podiam com a boca para preencher seus pulmões em todo, os olhos mantendo-se arregalados como se temessem fechá-los e perceber que não tinham saído. Suas pernas tremiam inexplicavelmente, mas se mantiveram de pé com a força da adrenalina a percorrer seus corpos pelas veias.
A sobreposição de vozes continuava tão alta quanto antes; barulho dispensável que tomava conta de toda a rua, inundando o ambiente com as palavras sem sentido. Contudo não estava tão ensurdecedor como antes, somente odioso.
Quando recuperou o fôlego e já sentia seu coração regularizar os batimentos afoitos, Lu Han não conseguiu evitar de olhar para trás, assustando-se ao avistar a multidão crescer e começar a se aproximar deles novamente. No instinto, movido pelo medo de voltar para todo aquele inferno, a ideia de ver-se naquele desalento outra vez; agarrou a mão de Minseok com firmeza e o puxou consigo, escapando o mais rápido que suas pernas conseguiam para longe de tudo aquilo.
Correram e correram, e a cada vez que olhavam para trás, o bando de pessoas estava a avançar em tamanha velocidade absurda, quase alcançando eles.
Ninguém estava perseguindo-os, era claro aos olhos deles. As pessoas somente se duplicavam e triplicavam de forma completamente insana, fazendo surgir mais e mais cópias que quase os engoliam de volta para aquele mundo vazio de egoísmo e solidão.
Não sabiam para onde estavam indo, apenas continuaram seguindo por toda a avenida sem fim, o diafragma subindo e descendo para encher seus corpos com a respiração hiperventilada. Não mais olharam para trás, focados em todo o espaço completamente vazio de qualquer alma humana a frente.
Não podiam continuar no mesmo ritmo para sempre, logo a exaustão tomou-lhes conta, os obrigando a parar bruscamente onde quer que estivessem. E assim que o fizeram, os pelos de seus braços se arrepiaram com o que soou ao redor deles.
Minseok e Lu Han se entreolharam, incrédulos com o que ouviram. A respiração tornou-se presa em seus pulmões, os olhos arregalados em completo espanto.
Nada.
Simplesmente nada.
Deram mais alguns passos e o som deles ecoou por toda a extensão da rua de paralelepípedos. O lugar era tão silencioso, que assim que voltaram a respirar, o barulho do ofego parecia alto e claro como nunca puderam notar, da mesma forma que havia sido ao enfim conseguirem escutar.
Lu Han fechou os olhos e somente escutou, usufruindo daquela paz descomunal e única. Conseguia não só ouvir a si mesmo, como seus próprios pensamentos novamente. Um paraíso tão satisfatório e perfeito, capaz de fazer tudo o que havia vivenciado ficar somente no passado.
No entanto, logo a felicidade fluiu embora com o vento, as ideias agora ouvidas dizendo não só a Lu Han, mas a Minseok que aquela paz não era duradoura. Não demoraria até que a multidão alcançasse aquela parte e toda a rua fosse tomada pelas pessoas como toda as demais estavam sendo.
Não havia para onde fugir, não ali.
Não encontrando outra escolha, Lu Han e Minseok deixaram a rua. Se afundaram em meio a escuridão dos becos e nela se esconderam, deparando-se com outras pessoas que assim como os dois se encolhiam ao máximo e ficavam onde jamais os olhos de quem estivesse de fora pudessem enxergar.
Os dois se abraçaram apertado, colando seus corpos, dividindo o calor e o suor que produziram juntos. E assim ficaram, escondidos e aproveitando o som do silêncio.
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