Afogo olhar em lágrima, tão rara,
Por amigos que a morte anoiteceu;
Pranteio dor que o amor já superara,
Deplorando o que desapareceu.
- Shakespeare - Soneto 30
– Senhorita?
O corpo de Priscila Nova sacolejava em ritmo lento como se flutuasse nas nuvens.
– Senhorita? – repetiu o homem que se sentara ao seu lado, três pontos antes.
Assustada, Priscila abriu os olhos, apertando a bolsa junto ao corpo, e olhou em volta para ver se já havia chegado ao seu ponto. Virou o rosto bonito para o passageiro ao lado e assim que viu o olhar humilde do homem sentiu o sangue subir as bochechas pelo medo tolo (mas não tanto para ser repreendido) que sentira há pouco.
O homem se levantou para que Priscila pudesse sair do bonde e tirou o chapéu simples que usava em cumprimento. Ela sorriu acanhada, agradeceu e tocou seu chapéu vermelho com dois dedos antes de descer o degrau do bonde.
O transporte seguiu seu curso junto do fluxo de carros. Ela viu o vulto do homem que a acordara se sentar novamente e sentiu o asfalto morno refletir os raios de sol. O som de seus tamancos ecoava pela calçada e se perdia em meio ao andar de outros tantos trabalhadores que corriam para o labor.
A mulher de vinte e nove anos, saia e terno vermelho escuro, para combinar com o chapéu Homburg, virou uma esquina próxima, onde o sol não conseguia ainda passar pelos prédios altos e as luzes dos postes ainda se encontravam acessas. Afinal de contas, não eram nem seis e meia da manhã.
Assim que ela atingiu metade do longo quarteirão de edifícios comerciais, um aglomerado de pessoas chamou sua atenção. Várias permaneciam muito próximas do prédio onde ela trabalhava, os rostos quase se tocando, os ternos e vestidos se misturando com o vento de outono.
Uma aflição estranha fez cócegas no coração de Priscila, que apertou o passo. A sensação de que algo estava errado se tornou mais palpável ao ouvir os cochichos dos pedestres.
– ...mas que horror...
– ...é uma calamidade...
– ...e justo aqui...
Ao que lhe parecia, o público tomava toda a frente do Edifício Ártemis. Priscila não conseguia ver o que chamava tanto a atenção daquelas pessoas e perguntou-se se conseguiria chegar até a porta de entrada.
– Com sua licença, senhor?
Um homem de belo porte e barba escura olhou-a de alto a baixo, o semblante sério se suavizando ao notar a beleza clássica, mas ao mesmo tempo exótica pela cor negra de Priscila. Ele tocou o chapéu castanho escuro e caro com uma das mãos, sem o tirar da cabeça.
– Toda, minha senhora.
– Senhorita – corrigiu ela.
Priscila meneou a cabeça, tocando o chapéu com a leveza de uma bailarina e assim foi conseguindo se esgueirar por aquele grupo vigilante, levando consigo não só a bolsa Gucci e o porte alto, como também os olhares de todas aquelas pessoas.
Ao chegar no limite do grupo, uma fita amarela da polícia impedia-a de avançar e um papel grande, pesado e branco cobria algo que estava bem em frente à porta do seu prédio.
Ela abafou uma exclamação, chamando a atenção de um dos policiais que ali estavam para aplacar os ânimos e impedir que pessoas tentassem chegar perto do corpo.
– Minha senhora, por favor, tenho que pedir que se afaste.
Priscila sentia as mãos tremerem levemente e o coração falhar no compasso ao pressentir como as coisas transcorreriam naquele dia. Ela respirou fundo, endireitando os ombros (o que a fez tornar-se ainda mais alta e majestosa) e fez sua voz profissional, fria e imperiosa.
– Senhor policial, entendo que este é seu trabalho e vejo que o faz muito corretamente, mas eu tenho que ingressar no edifício, de outra maneira estarei atrasada para o trabalho.
O policial piscou duas vezes, um pouco abalado pela altivez de Priscila, e olhou para a porta dupla do edifício, depois para o corpo encoberto que lá jazia. Todavia seu código de conduta falou mais alto.
– Lamento, minha senhora. Isso só será possível depois que retirarmos o corpo...
Uma movimentação à esquerda dos dois cortou a fala do policial, que foi ter com dois sujeitos que tentavam transpassar a faixa amarela para tirar fotos, os flashes explodindo alto, junto ao som dos vidros das lâmpadas das câmeras que estouravam na calçada.
– Ao menos me diga quem é essa pessoa! – exclamou ela em voz alta, mesmo já tendo ideia de quem seria aquele corpo sem vida.
Um outro policial se aproximou de Priscila, temendo que ela avançasse. Ela ia insistir uma segunda vez, mas foi gentilmente empurrada para o lado por um sujeito tão alto quanto ela, vestido de casado e chapéu cinza, o qual escondia parcialmente seu rosto, deixando à mostra apenas um lado coberto com uma fina barba castanho-claro.
– Deixe-me passar, por favor.
O policial encarou o olhar do homem por alguns segundos, acenou a cabeça e levantou a fita amarela.
Priscila acompanhou a cena se sentindo humilhada e injustiçada. Quem seria aquele sujeito? Ela não o vira mostrar nenhum distintivo e ele com certeza parecia tão civil quanto os outros que por ali passavam.
O homem alto se aproximou do corpo e levantou uma parte do papel branco. A ação levou apenas alguns segundos, mas foi o suficiente para arrancar gritos das mulheres e maldições dos homens. Para Priscila, aquilo foi apenas a constatação de um fato. Ela sempre soube que Lúcia seria uma vítima da vida muito antes dela.
Apesar do rosto negro, fino e de maçãs altas mostrar enfado e tédio diante da visão do corpo morto de Lúcia, sua face não conseguia expressar o sentimento de revolta e repulsa que tomava conta de seu corpo.
Apenas um mostro poderia fazer aquilo com um ser humano.
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Como um eco das sombras do passado, a Escuridão tece uma teia através do tempo, criando laços entre lugares e personagens que nem sequer sabem das existências uns dos outros até que sua presença tenebrosa se manifeste. *Todas as artes utilizadas nesse universo foram criadas com Artbreeder* Leia mais sobre Bordas da Escuridão.
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