Era de se imaginar que para uma missão dessa dimensão nós estaríamos em posse das mais recentes e extraordinárias criações que a mente humana pudesse produzir, mas a realidade era bem diferente; a terra estava saindo de sua quarta guerra-mundial e as nações ainda procuravam um jeito de se reconciliarem. Porém, mesmo que nem todos os rancores tivessem sido sanados, os governos remanescentes já haviam chegado em uma mesma conclusão, os recursos estavam escassos, era hora da humanidade dar um passo adiante.
Então, pelo nosso futuro, criou-se uma união entre cada povo da terra em busca de um bem maior, porém, uma grande parte do que tínhamos foi usado na guerra, e uma parte ainda maior foi perdida durante ela, então, abandonando as concepções majestosas das naves dos filmes de ficção, nasceu Homero, a primeira nave capaz de viajar pelo espaço.
Sua estruturação simples permitia um fácil entendimento de seu funcionamento e seu tamanho reduzido pela quantidade limitada de recursos acabou se mostrando de extrema usabilidade, visto que eram necessárias apenas cinco tripulantes para controlá-la.
Nossa viagem foi de relativa harmonia, não passamos por chuvas de meteoros e nem buracos negros famintos, nossos problemas foram muito mais pessoais. Mas isso já era previsto, afinal, cada tripulante representava seu país de origem – só achei que demoraria um pouco mais para os Estados Unidos e a China se atracarem.
Nossa decolagem foi enjoativa e melancólica, não tínhamos expectativa de retorno, não sabíamos nem se conseguiríamos sair da exosfera e quando a passamos e vimos nossa casa aos poucos se afastar mais e mais de nós, foi difícil manter as lagrimas presas.
Passamos pelas inóspitas terras de Marte, testemunhamos as infindáveis tempestades de Júpiter, contemplamos os majestosos anéis de Saturno, sentimos o toque gélido de Urano e Netuno e por fim nos assustamos com a decadência mórbida e solitária de Plutão. E, após conversarmos com nossos vizinhos celestes, seguimos viagem junto à monotonia, carregados pelo vácuo do cosmos, contemplando as estrelas silenciosas, imaginando que tipo de criaturas se escondiam por entre suas fendas.
O vimos assim que cruzamos a borda de nosso sistema solar. Ele era idêntico às inúmeras descrições de nossas sondas espaciais, formoso e fenomenal, com aspectos naturais tão idênticos ao nosso velho planeta azul – desde sua composição biológica e geológica até mesmo suas composições químicas que nos permitia respirar seu ar. Era inacreditável, irresistível. Fomos hipnotizados e atraídos por ele, assim como as mariposas são seduzidas pelas luzes artificiais das lâmpadas.
Já existia um conhecimento concreto sobre sua existência, mas com a guerra, todos os olhos foram voltados para nossos desejos e disputas mesquinhas, ignorando um dos maiores descobrimentos da nossa era e de todas as outras, um planeta como o nosso, perfeito para nós.
Nos sobrevoamos partes do planeta e chegava a ser doentio o nível de similaridade com a Terra. Os campos eram verdejantes e serenos, a florestas frondosas e com uma variedade considerável de espécies vegetais, os montes era imponente e carregavam consigo uma fina manta de neve assim como os nossos montes, e ainda havia a água, os rios eram cristalinos e potáveis enquanto os mares eram salgados e profundos. Para nós, aquilo não era um planeta, era o próprio Éden encarnado, o paraíso, uma segunda chance para a humanidade.
Escolhemos um dos inúmeros campos abertos para pousar, ele ficava próximo a uma montanha solitária rodeada por um conjunto de florestas e que ainda possuía um rio que o transpassava, atravessado o campo e seguindo caminho até o mar.
Por mais que cada um de nós fosse versado nos conhecimentos gerais para vir abordo, cada um tinha sua própria área de interesse e seus objetivos secretos dados pelos seus governos. Nós nos instalamos perto do rio, criamos regras de sobrevivência e convivência e acordamos de sempre fazer explorações juntos – pelo menos em dupla, e as coisas seguiram-se sobre os trilhos, no começo.
Logo os desejos e aspirações pessoais ressoaram mais alto no âmago de meus companheiros, fazendo cada um seguir por um lado, buscando sua própria verdade. Como capitão, a responsabilidade da integridade da minha tripulação caia sobre mim, então óbvio que fiquei preocupado com cada um deles, até mesmo os de personalidade mais forte. Porém, minha preocupação mostrou-se sem fundamentos, visto que o planeta parecia carecer de vida animal – mesmo as mais simples pareciam estar em falta.
Esse fato foi a base de nossa nova união, e cada um parecia estar de algum modo afetado pelo silêncio sepulcral que permeava o ar. Vindo de um país tropical, era enlouquecedor acordar sem ouvir o canto dos pássaros, ou o assobio das cigarras. Mas acho que foi pior para nossa bióloga, toda sua excitação com um mundo novo e com as possibilidades de descoberta murcharam como flores no inverno, sentia-se escusada, um peso desnecessário para a viagem.
Foi na tentativa de dar-lhe um objetivo que nosso terror realmente começou. Tentando distraí-la, pedi que ela fosse ajudar nosso botânico que havia feito seu centro de pesquisa improvisado entre as árvores na floresta ao pé da montanha, no fim do dia, ele voltou sozinho afirmando que a bióloga e ele não se encontraram o dia todo.
Procuramos dia e noite, mas sem sucesso tudo o que nos restou foi imaginar que tipo de coisa misteriosa e sombria havia acontecido à nossa colega. Nossos dias não melhoraram depois desse incidente, um a um e de forma crescente. Demorou uma semana até nosso biólogo desaparecer, depois três dias até nossa geóloga, então, anteontem, meu piloto.
Enlouquecido e assustado, vendo como meu último recurso, tentei sozinho pilotar a Homero, contudo, quando achei que tivesse uma chance de fugir de todo aquele pesadelo, a nave pareceu estar presa por amarras que me fizeram colidir com a montanha solitária.
Acordei horas depois, com uma enxaqueca terrível, mas o mais surpreendente, vivo. A montanha mostrou ser feita de uma espessura metálica e anormalmente frágil, facilitando a entrada da nave em seu interior. Eu acabei caindo em uma estranha rede de túneis que me levavam até o interior da montanha
Quanto mais eu adentrava em seu âmago, mais o lugar ia abandonando seu aspecto biológico e natural, dando lugar a placas de metal, redes de fios e estrutura anômalas. Terminei caindo em um lugar similar a um laboratório, amplo e repleto de aparatos de estudo e pesquisa. O mais assustador foi reencontrar meus companheiros, senti meu coração implodir ao ver dois deles presos em jarros enormes como animais em um experimento científico bizarro, mas pior foi quando vi os outros dois presos a mesas de dissecação, abertos e violados, senti minha alma murchar e morrer ainda dentro de mim.
Embriagado pela fúria e pala loucura, tomei a única atitude saudável que me cabia, comecei a destruir todo o lugar. Enquanto punha tudo abaixo descobri um pequeno artefato decagonal, de um azul intoxicante e que guardava todos os meus terrores infundidos.
Fugi dali às pressas e me abriguei na primeira caverna escura e úmida que encontrei. Ontem, enquanto eu o explorava, descobri como acessar seus mistérios e nunca amaldiçoei tanto minha capacidade de compreensão.
A princípio pensei que era uma base de registros, mas, analisando melhor, o objeto era mais como a mente da coisa, ou um pedaço dela. Descobri que fora desse inferno que nasceu o homem, mas não do jeito que conhecemos. Não nascemos de um elemento celestial como dizem as religiões, tampouco somos frutos de uma evolução natural como afirmam os filósofos e cientistas. Fomos criados aqui, por algo que parece um planeta, mas é algo muito mais diabólico. Ele é um ser consciente, que vagava pelo tempo e espaço, sem rumo e faminto. Contudo, quando começou a ser bombardeado por meteoros e outros materiais naturais, ele percebeu que aquilo também trazia algo capaz de saciar sua fome.
Então ele começou a se adaptar, versada nos campos da ciência e da alquimia – em um nível que para nós seria considerado magia, ela fundiu-se com a matéria-prima que vinha do espaço, passando por incontáveis íons de pesquisa e metamorfose, ela havia finalmente se transformado em um amálgama de metal e terra, um deus biomecânico. E assim, com novos aparatos, ela voltou-se na busca de saciar sua fome infinita, ela havia finalmente criado algo que saciasse sua fome, nós.
Vendo que por mais que tentasse, suas condições artificiais eram infrutíferas para a vida humana, ela seguiu pelo cosmos, espalhando sua prole pelos planetas, semeando sua criação em cada lua, e depois se retirando para a sombra do cosmos, aguardado a hora certa de retornar.
E nós demos a ele a confirmação de que precisava, de que estamos prontos para sua colheita. Tudo aqui foi forjado para nós, cada árvore, cada gota que preenche o oceano foi esquematicamente feita para nos atrair, para nos iludir e fazer-nos acreditar que esse é o lugar perfeito para nós, um paraíso feito para nós.
Ele nos programou assim, para acreditarmos que de alguma forma o universo se movia a nosso favor, mas não podíamos estar mais errados. Não somos nada mais que filhos de um deus faminto, que olha para nós assim como olhamos para o trigo pronto para a colheita.
E é nesse desenlace enlouquecedor, diante dessa verdade cruel e aterradora, que me vem a alcunha perfeita para nomeá-lo, nada menos que o deus filicida, o senhor de tudo, o único e inigualável, Cronos.
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