[05h45]
Caro diário, meu amigo, ontem tive um sonho terrível. Preciso detalhar o mais rapidamente possível para que minha mente não o esqueça.
Eu estava caminhando por uma rua escura, na verdade, toda a cidade estava escura, como se a noite engolisse toda a terra. Não havia pessoas, eu estava sozinho ao que aparentava. De repente avistei uma sombra que não se podia descrever, não se sabia se era homem ou mulher, nem se era humano ou não, e sua presença trazia o mais profundo desconforto. E eu corri. Escondi-me em um depósito, até que a sombra me encontrou, então despertei. Estava avulso ao meu quarto, portador de um frio que congelava toda a espinha, de um medo implacável e um coração que ameaçava explodir. Senti-me sufocado pelo ar que outrora me prometera abastecer a vida.
Decerto não é a primeira vez que tenho pesadelos, sou cercado por eles desde a minha infância, são mais comuns do que sonhos para mim, sem explicação devida. Apesar da situação lastimável passada na noite anterior, a palavra pesadelo me recorda algo engraçado de minha infância. Certo dia decidi, por conta dos pesadelos, que não iria mais dormir, então abracei Doodles, o cachorrinho de pelúcia que eu ganhará em meu aniversario de oito anos. Virei-me para ele e disse que essa noite estaríamos acordados. Mal passou das 22h e eu já estava apavorado com o guarda-roupa que claramente era um monstro faminto, esse medo durou alguns minutos, e então caí em um sono profundo. Não tentei me impedir de dormir após isso, digamos que Morpheus faz seu trabalho excepcionalmente, e não me deixa estar acordado depois das 20h!
[Escrito em 28 de Fevereiro.]
Após assinar a data, fechei meu diário vi-me gargalhando como não fazia há um bom tempo. Desde o meu retorno para São Petersburgo e as dificuldades na livraria em que trabalho, tenho estado muito estressado e ansioso. Muitos clientes são rudes, as ruas cheias, a jornada cansativa, etc. Sinto-me doente pelo ar poluído que meu pulmão é obrigado a aceitar. Além disso, as pessoas olham para a minha prótese no braço, olham e aparentam zombaria, desdém ou o pior de todos, aparentam pena. Como se eu não estivesse acordando, cuidando de minha casa e trabalhando o dia inteiro, como se não tivesse amigos e me divertisse. Eles me olham como se eu fosse um coitado, e isso me enfurece.
[07h25]
Finalmente cheguei ao trabalho, limpei toda a livraria e terminei os últimos detalhes para poder abrir as portas. A BlackBooks é de minha responsabilidade desde o falecimento do meu avô, cuja propriedade pertencia anteriormente. Ele compreendia meu amor pela arte, e me deixou de herança seu bem mais precioso, sua livraria. Eu aceitei prontamente, larguei tudo em Moscou e vim para São Petersburgo, retornei à cidade natal, e me enchi de lembranças.
Como sou filho único e recentemente órfão devido um trágico incêndio na casa de meus pais, não tenho mais familiares para visitar. Apenas alguns tios e primos espalhados pelo mundo, muitos dos quais não me procuram e não tentam contato, mas isso pouco me incomoda. Agora sou apenas eu e essas pilhas de livros, todos com o cheiro e as lembranças do meu avô, principalmente os romances que me fazem lembrar de suas cartas para minha avó. Certamente o amor existe, e era apenas deles, o mais belo amor.
Saio de meus devaneios ao ouvir o sino da porta, significa que tenho um cliente. Vejo que é uma mulher extraordinariamente elegante e bela, com roupas escuras, meio vitorianas, e um imenso chapéu preto. Confesso que estou sem folego.
Bom dia, posso ajudar a senhorita em algo? Chegaram muitos livros novos essa semana, dos mais variados gêneros. Se for de seu agrado, posso apresentar os devidos setores. – Eu disse, calorosamente.
Obrigada, meu bom senhor. Estou conhecendo a livraria, me pareceu tão encantadora pela vitrine, mas confesso que não tenho certeza do que procuro. Alguma indicação? – Ela me disse, calma e paciente.
Olhei em seus lindos olhos, vi um anjo se afogando em escuridão, naquelas pálpebras escuras. Era uma maquiagem bem forte e sombria, mas trazia tanto poder para a senhora à minha frente. Só havia uma recomendação para a mesma, e eu sabia exatamente o que falar.
Se for de seu interesse, senhora, eu recomendaria Drácula. Certamente vai prender vossa atenção, é romântico, sombrio, e lembra o goticismo... – Revelei uma de minhas leituras favoritas para à mesma.
Você acha que vou gostar? Lembra-te eu? – E então ela me olhou com aqueles olhos frios, mas apaixonantes. Eu fiquei completamente desnorteado. Deus, como ela era direta, não havia tempo para jogos, apenas a verdade nua e crua.
Limpei a garganta e prossegui.
Decerto muitos amam esse livro. Ele é expressivo, creio que atrairá sua atenção, por mais que não seja conhecedor de seus interesses. – Disse-lhe.
Bem, esse livro certamente me interessou. Eu vou leva-lo. – Contou-me a bela senhora.
Recebi o valor, embalei seu pedido e entreguei-o em uma sacola preta com a logo da livraria, acompanhado de um marca pagina preto com uma rosa sangrenta.
Agradeço a compra, senhorita. Volte sempre. – Falei, feliz interiormente.
Eu que agradeço, senhor. Veremos-nos de novo em breve, sem duvidas. – ela abriu um sorriso que me desconcertou.
E então ela saiu, com seu livro e cabelo esvoaçante. Nunca senti tanta falta do escuro em um lugar. A própria luz parecia me arrancar a alegria de lembrar a mulher que passou pela porta da frente. Meu bom Deus, o que ocorre comigo?
Nem mesmo perguntei seu nome... – Murmurei, frustrado.
Pensei sobre sua fala, ela quis dizer que voltaria? Deve ser isso. Só achei a colocação da frase um pouco misteriosa, contudo ela também é.
[17h34]
Meu horário encerrou. Sempre fecho a livraria mais cedo para evitar o terrível frio da noite. Ajeito tudo e vou para casa, exausto, mas inspirado. Fiz o meu jantar, tomei um banho e me preparei para deitar em minha cama. Já deitado, peguei um caderno e comecei a compor melodias para uma musica. Obviamente ninguém a ouviria, eu tocava apenas para mim mesmo, mas amava tocar ao piano. Quando menos imaginei, a melodia se desenvolveu estranhamente rápido.
Ah, amor...
Voe comigo, sim!
Sei que tens asas em ti
Guardadas de mim
E pergunto à ti como são
Se são brancas e macias
Ou cheias de correntes
Se tu es um puro anjo
Ou o tal concorrente
Eu não sei dizer
Mas amo você
O que posso fazer
Para estar com você?
Diga-me para onde ir
E eu vou
Já escrevi muitas melodias, é claro que sem alguém para cantá-la. Eu apenas sei tocar ao piano, mas a canção nunca foi meu forte. De todo modo, eu amo escrever letras que talvez um dia possam ser cantadas, quem sabe... Por enquanto irei guardá-la junto das outras melodias. Já são 19h40 e eu preciso descansar, amanhã será outro longo dia. Talvez eu a veja novamente, seria interessante conhecê-la melhor.
[Dia seguinte]
[04h23]
Abro meus olhos, o céu não parece muito claro, ainda está escurecido e adormecido em sombras. Eu tento me levantar, mas para minha surpresa ou, melhor dizendo, horror, eu não consigo me mover. Não é a primeira vez que isso me ocorre, mas permanece apavorante. Meu coração acelera, estou sufocado pelo medo, forço meu corpo a mover, mas nada acontece. Para piorar, começo a ouvir murmúrios nos meus ouvidos, e eu quero gritar. Quero mandá-los parar, quero pedir ajuda, mas embora minha mente grite, minha boca não produz nenhum som. Estou sozinho e engaiolado na armadilha do demônio psicológico. A paralisia do sono.
Após o que pareceram horas, finalmente consegui mover minha mão, depois meus pés, virei a cabeça e finalmente me levantei, creio que puxei todo o ar do ambiente com a minha respiração desregulada e desesperada. Olho rápido para o relógio e são 04h29, e sei que não irei dormir novamente. Não me sinto bem. Preciso sair daqui agora.
Sem nem ao menos trocar o pijama, pego o monte de chaves e saio de casa, completamente alucinado. Pensando agora, nem sei se fechei a porta, espero não ter sido roubado. Eu fui para a rua e andei sozinho naquele frio maldito, quando repentinamente fui tomado por uma dor agonizante, relutante eu abaixo o olhar e noto meus pés descalços naquela fina camada de neve. Murmuro alguns xingamentos e continuo andando, rumo à livraria, pois a mesma não é muito longe da minha casa.
No caminho eu já estava congelando, pensando o que aconteceu com a minha vida, quando me acostumei a sofrer assim? Deveria fazer algum acompanhamento, procurar ajuda, mas que Deus me ajude, nessa época a ajuda psicológica é muito mal vista. Me chamariam de louco! E quem não seria louco nessa sociedade neurótica? Todos são loucos, mas alguns assumem suas loucuras, enquanto outros a lançam em forma de preconceito desordenado e ignorância pura.
Já perto da livraria, eu não aguentei o frio, e desmaiei. Lembro-me de ver o escuro me abraçar, enquanto o som e a cor sumiam. Lembro-me de estar fraco e me sentir atraído para o chão. Só queria não estar sozinho. Mas as vezes o chão frio, a terra e um caixão... são tudo que nos acolhem. Deve ser um pensamento niilista, mas julgo ser verdadeiro.
[04h59]
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