Neve e gelo. Tudo estava daquela forma há algum tempo, sempre tão frio e azul e todos os sentimentos gelados e não afáveis que puderam ser armazenados no reino de Gelo. Era inverno em todos os dias do ano, sempre álgido, assim como o coração de Viktor Nikiforov, príncipe herdeiro do trono. Para ele, era agradável a ausência de felicidade e luz aquecedora, ele não necessitava delas. Não deveriam ser felizes, nada deveria possuir alegria, a escuridão deveria reinar.
Não repudiava diversão e sexo, entretanto, não achava admissível o amor. Contudo, pensara errado que seu avô o deixaria viver uma vida sem ninguém, pois, para os preparativos de seu vigésimo sétimo aniversário, deveria encontrar uma esposa, ou então, que ele nem ao menos sonhasse em usar a coroa de pedras azuis que rei Nikolai ostentava no alto de sua cabeça.
Perda de tempo, afinal, não acreditava naquela besteira de par ideal. Entretanto, se aquela era a única exigência, não se importaria em ter um objeto sexual para chamar de cônjuge.
Então, teria um baile. Algo no estilo The Great Gatsby*, um livro antigo que encontrou na biblioteca do palácio por acaso, alguns anos antes e, lá encontraria alguém. Não importava quem fosse, desde que Vossa Majestade aprovasse, teria sua teia pronta para a abdicação da coroa, onde tomaria o trono real por direito.
— Vitya...
Todavia, todo homem possui um ponto fraco e, Viktor também. O olhar triste de seu irmão mais novo, prostrado na porta era de lhe partir o coração, porém, não vacilaria, não daria colher de chá para Yuri, sempre seria indiferente à sua dor.
— O que quer? — arqueou uma sobrancelha, apoiando as mãos uma em cima da outra na bengala de madeira que utilizava como um acessório requintado, que trazia mais veracidade de seu traje principesco.
— Eu... Ficarei na torre novamente? — seus olhos marejados e postura curvada, encolhido em seu próprio eixo, exalando o medo de contrariar o irmão. Viktor sentia sua humanidade se esvair cada vez mais que agia rudemente com o garoto.
— Deveria estar lá, não?
— Mas... É seu aniversário. Eu fico todos os dias lá, no meu aniversário e no do vovô também. Eu já tenho vinte anos. Nada nunca aconteceu--
— Nada nunca aconteceu pois sempre esteve seguro na torre. Chamarei Jean para que o leve de volta. Se comportar-se novamente desta forma, haverá severas consequências para você e aqueles inúteis. — Seu tom cortante fez com que um arrepio pavoroso atravessasse o corpo do loiro e o mesmo saísse correndo para seu quarto, vários andares acima.
Viktor sentou-se na cama, sentindo-se exaurido. Massageou as têmporas, sentindo a vontade de gritar e socar algo em cheio.
Desde que seus pais foram assassinados em um atentado contra o palácio, Viktor não permitia mais a saída de Yuri da torre leste, que era protegida por mais de cinquenta homens. O garoto não podia sair para nada no exterior, nem mesmo lembrava-se do cheiro da grama molhada ou da sensação de correr na neve. Recebia poucas visitas durante as semanas, por longos quatorze anos ali, tendo apenas Mila e Jean para passar o tempo. Viktor só aparecia à noite, deitando-se na cama e o protegendo para que pudesse ter sonhos agradáveis. Sempre da mesma forma.
Viktor, por mais que quisesse Yuri ao seu lado, não podia se dar ao luxo de deixar que qualquer coisa acontecesse à única pessoa que sentia afeto em toda a sua existência.
Yuri às vezes parecia um pobre animal indefeso perto do príncipe herdeiro, por medo ou, talvez, respeito. Entretanto, o garoto conseguia dificultar a vida dele e de seus guardas sempre que tinha oportunidade, tentando fugir daquela torre que o aprisionava.
— Sua Alteza, Vossa Majestade requisita sua presença imediatamente em seus aposentos. — Georgi nunca havia se dado bem com príncipe Viktor, ainda mais por ter crescido com o mesmo antes de tornar-se mordomo-mor com tão pouca idade.
— Estava indo ao seu encontro agora mesmo, Sr. Popovich. — Viktor levantou-se com a postura ereta, olhando o outro com superioridade. — Deixe um claro aviso aos guardas de Yuri e à srta. Babicheva, o Sr. Leroy e Giacometti: Ninguém tem permissão de entrar no quarto do príncipe hoje, a não ser eu ou o Imperador. Não tolerarei desobediências.
— Mas, senhor--
— Como? — suas íris azuis acinzentadas eram do mais puro gelo cortante.
— Perdoe-me, Alteza. Irei repassar a ordem agora mesmo. — Curvou-se desgostoso, saindo dali.
Viktor respirou fundo e saiu do enorme aposento, rumando para o quarto de seu avô.
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Yuuri Katsuki era o exemplo de rapaz que desejava um romance, entretanto, era tão sociável quanto uma porta. Baixinho, míope e quase um gago, possuía somente um amigo que não fizesse parte de sua família. No auge de seus — quase — trinta anos, ainda esperava o dia em que se apaixonaria pelo cara certo, e este o amaria incondicionalmente, entretanto, mesmo tendo passado por mais de quinze casamenteiras, nunca conseguiu despertar o interesse de alguém que lhe calçasse a aliança.
Contudo, seu melhor amigo, Phichit tinha um noivo e, não era ninguém menos que Christophe Giacometti, o passe livre mais pervertido que os dois rapazes tinham para o palácio.
— Notícia boa, Yuuri. Consegui um convite formal para que nos acompanhe no baile de aniversário que ocorrerá amanhã. — Sorriu, estendendo um papel azulado com o selo real, com a serpente envolta e um cajado.
— Uma boa oportunidade para encontrar um marido, não a desperdice. — Phichit deixava beijos por toda a pele bronzeada do futuro marido.
— Obrigado Christophe. Será bem aproveitada.
Segurava aquela carta contra o peito, em uma clara confusão sentimental entre a ansiar com o ensejo ou temer ser o último.
— Conte ao tio Toshiya e ao Takeshi. Nos encontraremos na 'Toca' amanhã, às 18h.
Só pôde assentir, mordendo o lábio inferior ao direcionar seu olhar às letras douradas e cursivas que enfeitavam o convite.
Talvez aquela fosse sua última chance de conseguir um marido, não que se importasse tanto com títulos, contudo, a sensação e o desejo de ser amado lhe preenchia como água em um jarro e, se pudesse, gostaria de transbordar.
Levantou, sendo ignorado pelo casal e, caminhou em passos rápidos até a janela, observando a neve voltar a cair, depois de um pequeno descanso de 12 horas. Por mais que estivesse acostumado, não gostava tanto do frio como os outros moradores do reino de gelo. Gostava do reino da luz, onde teve a oportunidade de ir uma única vez. O sol, a alegria, o calor... Não diria que o reino de gelo era um lugar ruim para se morar, entretanto, não era o mais aconchegante. Todavia, ver cada floco único descendo do céu nublado e cobrindo as árvores, os rios, as casas e os vales com toda sua neve, ainda era uma visão bela que só ali poderia ter.
— Chris... Por que sua pele é tão bronzeada? — perguntou distraidamente, arrumando mais o casaco em seu próprio corpo.
— Passo tempo demais com o Imperador fechando negócios no reino da Luz. Foi lá que comprei a aliança de Phichit.
Yuuri deu de ombros, tendo vista do incrível palácio de inverno ao longe, quase escondido entre as montanhas e os pinheiros que o cercavam. O quão triste e solitário deveria ser viver isolado de seu próprio povo?
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— Salvo entre os peitoris de pedra e o carrilhão — Yuri desviou o olhar do lado de fora. — Aqui dentro a alegria some. — Segurou sua gata rajada que, sonolenta, tentava relaxar em seu colo. — Toda minha vida eu vivi na solidão. /Não ter liberdade me consome. — Suspirou, pousando o braço no parapeito da janela. — Preso aqui em cima vi pessoas/ Eu conheço todas pelo nome/Toda minha vida eu imaginei descer/Ir até lá, passear lá.../ — seus olhos não possuíam brilho, apenas desalento. — Lá fora como alguém comum.../Me dê um dia ao Sol, basta apenas um/Pra ser lembrado/ Se der numa ocasião qualquer/Se eu sair se eu puder quero ir a onde der... — era quase uma súplica, contudo, sabia que era em vão. Ouviu batidas na porta e se virou.
— Alteza, hora de se alimentar. — Yuri pôde ver a ruiva entrar com algo em seus braços e pousar na mesinha de madeira maciça, no canto do cômodo.
— Leve de volta, Mila. Não sinto fome. — Os cabelos loiros ao vento escondiam perfeitamente a visível tristeza na expressão do rapaz.
Sentia-se como um pássaro em cativeiro, tendo o apoio de seu avô e de seu próprio irmão, já não lembrava mais o que era ver pessoas que não estivessem ali para o vigiar e prender.
— Yuri...
— Não, por favor. Eu... Ele... Vovô nem ao menos está aqui, fui abandonado nessa torre como um simples prisioneiro de guerra.
— É para sua--
— Segurança? Há quantos anos não temos um ataque direto? Há quantos anos estou fadado a permanecer em cárcere? Viktor tem um excesso de proteção obsoleto e exacerbada.
— Tente entendê-lo, querido. — Mila se aproximou, encostando-se na parede de pedra e acariciou as mãos do príncipe caçula. — Yurio, pense na dor que causaria ao Imperador se ele o perdesse.
— Por que só eu? Por que Vitya tem livre acesso ao lado de fora?
— Porque sou o mais velho.
Voltaram-se imediatamente para a porta, onde o herdeiro, vestido em suas roupas de linho em tons frios e uma cartola negra no topo dos cabelos prateados, os encarava com desprezo, mais por parte da dama de honra de seu irmão.
— Seus serviços estão dispensados pelo resto do dia, srta. Babicheva. Vá e ajude na cozinha, assim como Jean. Nenhum de vocês está permitido a entrar hoje, pedi para que Georgi os avisasse, contudo, há duas formas de eu ter sido desobedecido...
A garota curvou-se em respeito, lançando um olhar pesaroso a Yuri e rumando para fora do quarto.
— Já não lhe bastava tirar-me a liberdade, ainda impede que meus servos me façam companhia? — era inquisidor, como todas as vezes que se via sem saída para uma discussão desagradável com Viktor.
— Pensei que estava insatisfeito com suas visitas e círculo de amizade. Apenas estou lhe dando o que quer. — Debochadamente, retirou a cartola e a pousou na cômoda.
— Sabe bem o que quero, Viktor. Não irei aceitar de braços cruzados sua decisão de prender-me para sempre.
— Não seja ingrato. Sempre teve tudo o que quis materialmente.
— Tire-me tudo, mas deixe-me viver.
Viktor levou uma das mãos coberta pela luva preta e afagou as madeixas aloiradas do menor.
— Fique feliz com o que lhe dou, Yuri. Posso tirar ainda mais, até que já não haja nada, e seu único desejo seja a morte.
— Talvez eu já a queira. Se me jogar desta janela for a única forma de me ver livre dessas amarras, me ver livre de você, estarei mais do que disposto em passar para a outra vida. — disse entre dentes, nunca quebrando o olhar.
— A morte não lhe trará a liberdade que deseja. Não poderá se livrar de mim nunca, Yuri, tenha isso em mente. — Deu um sorriso de escárnio, empurrando-o levemente com dois dedos em sua testa e virou-se, agarrando a cartola pela lateral e desaparecendo pela porta de madeira com chapeletas de ferro.
Yuri sentiu todo o ar que prendia sair em uma bufada exasperada. Aquele era, de longe, o Viktor de antigamente. Seu irmão, aquele que o colocava para dormir todas as noites, cantava a mesma canção quando tinha pesadelos e o abraçava até que todo o medo desaparecesse. Lembrava ainda da primeira noite naquela torre solitária, onde o irmão se dispôs a vigiá-lo.
"— Vitya, cadê a mamãe? - perguntou o pequeno loiro de forma chorosa, após acordar abruptamente de mais um pesadelo. Não gostava daquele quarto, era longe do de todos e já havia passado alguns dias sem ver os pais. Viktor suspirou, sentindo todo um peso lhe cair sobre suas costas. Tinha apenas 13 anos, mas, deveria permanecer firme diante da tragédia que acontecera, principalmente pelo fato de Yuri não ter nem mesmo completado seis anos direito.
Afagou os cabelos do garotinho, sorrindo de forma carinhosa. — Feche os olhos, Yuratchka.
Por mais que seu coração estivesse quebrado em pedacinhos, abraçou o irmão com toda sua força, vendo-o obedecer-lhe e abaixar as pálpebras totalmente.
— Assim, irmãozão? — fez um bico confuso, não hesitante em confiar, mas, curioso em saber o que viria a seguir.
— Um sonho é um desejo d'alma/N'alma adormecer/Em sonhos a vida é calma/É só desejar para ter. — cobriu o pequeno corpo, ficando de lado para que pudesse acariciar-lhe o rosto dócil e infantil. — Tem fé no teu sonho e um dia/Teu lindo dia há de chegar/Que importa o mal que te atormenta/Se o sonho te contenta — sorriu, vendo Yurio já ressonar baixinho, após ter adormecido quase instantaneamente. — E pode se realizar... — sussurrou, beijando-lhe a testa e aconchegando-se em meio as cobertas para cair em um sono sem sonhos que lhe seguiria pelos próximos 14 anos."
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Otabek não era o exemplo de homem sedentário que come às custas do dinheiro real e se aproveita de seus subordinados, na verdade, de todos, era o que mais treinava, incansavelmente, como se pudesse prever uma repentina guerra na manhã seguinte. Sem camisa, expondo os bíceps rijos e o abdômen definido, ignorando o frio insuportável, se posicionou em frente da tropa de soldados novatos. A maioria ali não conseguia nem ao menos levantar um galho fino de árvore, entretanto, tinham a disposição de proteger seu povo e a família real.
— Homens, hoje será mais um dia de árduo treino. Não estamos aqui para brincadeiras, mas para sermos instrumentos de defesa para todos os inocentes. Aqueles que não entendem o quão sério é estar no exército do Imperador, retire-se agora. Aqueles que pretendem entregar seus corpos e corações em prol de uma vida cheia de perigos, peguem seus bastões, iremos começar os exercícios técnicos de combate corpo a corpo. — Por mais intimidados que pudessem se sentir, o número de homens a dar um passo para trás e abandonar a tropa foi mínimo; era excitante a possibilidade de haver alguma ameaça rondando o reino. Otabek segurou seu próprio bastão e o colocou em sua frente. — Vamos à batalha/Guerrear, vencer. — Virou em um giro de 180º, em frente ao peito. — Derrotar os outros*/É o que vai valer/Vocês não são o que eu pedi/São frouxos e sem jeito algum — flexionou a perna para frente, em posição de ataque. — Vou mudar, melhorar/Um por um. — Os soldados seguiam os movimentos de modo ritmado, não deixando de prestar atenção. — Calmo como a brisa/Chamas no olhar/Uma vez centrado/Você vai ganhar/São soldados sem qualquer valor/Tolos e sem jeito algum/Mas não vou desistir de nenhum!
— Homem ser! — vociferaram em alto som, todos juntos, movendo seus bastões em atos rápidos e com uma destreza invejável. — Seremos rápidos como um rio! /Homem ser! /Com força igual a de um tufão! — Saltaram de forma coordenada, ficando a ponta no chão áspero. — Homem ser! /Na alma sempre uma chama acesa/Que a luz do luar nos traga inspiração!
— O inimigo avança/Quer nos derrotar — refez os movimentos, segurando o bastão com forma para dar impulso e pular — Disciplina e ordem/Vão nos ajudar — colocou-o em frente novamente, para o jogar em frente, nunca deixando cair. — Mas se não estão em condições de se armar e combater/Como vão guerrear e vencer?
— Homem ser! — bradaram novamente — Seremos rápidos como um rio!/Homem ser!/Com força igual a de um tufão! — os soldados imitaram os movimentos de Otabek e saltaram, chutando o ar — Homem ser!/Na alma sempre uma chama acesa/Que a luz do luar nos traga inspiração! — pousaram o bastão com a ponta no chão, flexionando os joelhos em posição de ataque.
— General Altin, pode acompanhar-me por um segundo? — Otabek virou-se para o jovem pálido que se prostrava em seu campo, assentindo lentamente e deixando sua tropa aos comandos de Yakov.
Caminharam brevemente até estarem fora de alcance, perto do arco de pedra coberto de gelo. Limpou suas mãos na calça e encarou o jovem pajem. Georgi o encarou boquiaberto, enquanto usava mais de três casacos, o moreno estava seminu, ostentando seu físico, sem nem ao menos aparentar estar arrepiado, enquanto ele mesmo tremelicava à cada rajada de vento.
— Diga o que tem para dizer.
— Sua Alteza, príncipe Viktor, requisita sua presença no baile que irá ocorrer amanhã. Leve seus melhores homens e os deixe ao redor do palácio de inverno; o senhor deverá proteger diretamente o Imperador e o príncipe, entendido? — Georgi achava aquela super cautela hilária, nada acontecia há mais de quatorze anos, qual era a probabilidade de algo vir a ocorrer?
— Estaremos lá. Agora, vá para dentro, está frio aqui fora. — Bagunçou os cabelos do rapaz, fazendo-o bufar e voltar para dentro.
Otabek avistou, ao longe, seus soldados voltando para a formação e, permitiu-se sorrir brevemente, entretanto, logo seu olhar voltou-se para a torre mais alta do castelo, podendo enxergar fios loiros que dançavam ao vento e, a curiosidade se fez presente, contudo, a afastou, afinal, não era seu assunto, sua jurisdição.
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The Great Gatsby: No clássico "O Grande Gatsby", escrito pelo célebre F. Scott Fitzgerald, obra é centrada em um misterioso e excêntrico milionário americano dos anos 1920: Jay Gatsby. Ele é conhecido pela elite de Nova York por oferecer festas luxuosas em sua mansão. Apesar da popularidade, ninguém sabe de suas origens.
Derrotar os outros*: Para que encaixasse na história, alterei "hunos" por "outros".
MÚSICAS DO CAPÍTULO (em sua respectiva ordem) :
Lá fora - O Corcunda de Notre Dame
Sonhar é desejar - Cinderela
Homem ser - Mulan
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