CLACLÁQUE! É o barulho que a caixa verde faz depois que você coloca o cartão de ponto nela. Acima, com o vidro quebrado, um relógio te olha. Clacláque! Clacláque! Marca-se o exato horário, no exato quadradinho, de mais uma página de sua vida. A sua biografia escrita num papel-cartão, e você mal sabia disso.
— Bom dia, George.
Uma fila enorme de homens se forma. Atrás de um balcão de mármore com tampo semicircular, o primeiro dos clacláques dentre todos os clacláques do dia te cumprimenta.
“Bom dia, George.”
“Bom dia, Joe.”
“Bom dia, Charles.”
Ele tem de estar lá, te esperando, porque é essa a função da vida dele: abrir as portas da indústria para todos os clacláques seguintes. Para que eles peguem, eles próprios, as páginas de suas próprias vidas, carimbe-as na mesma caixa verde de aço, coloque-as no outro quadro – no quadro encimado pela placa “EM SERVIÇO” – e façam aquilo que esperam que façam, a função de suas vidas: prolongar a existência de um ser que só existe dentro da definição jurídica do que seja uma “pessoa”. Uma pessoa jurídica.
Uma transfusão muito além do limite; não de sangue, mas de vida.
— Bom dia, Wagner — George responde.
Na boca de George, o gosto amargo do café de hoje, sobre o gosto amargo do café de ontem, sobre o gosto amargo do café de anteontem, e assim infinitamente, até que se tenha criado uma grossa camada de anestesia degustativa, que faz com que o sabor de tudo que não seja cafeína e tabaco se torne tão indiferente quanto seria o sabor da cor cinza, caso ela tivesse um.
— E aí, Jean!
— E aí!
Os mesmos sorrisos vão de encontro aos mesmos cumprimentos, de encontro aos mesmos sorrisos, de encontro aos mesmos cumprimentos, e se nulificam. São partículas e antipartículas uns dos outros, e os outros do um. Intrinsecamente vazios em seus campos eletromagnéticos. Funções fáticas da linguagem (“e aí”, “como está?”) servindo apenas para se fazer prolongar um bem-estar social. Mas, uma vez esgotada a sua utilidade, fazem com que os rostos, as vidas, os pensamentos daqueles que as usaram retornem ao estado estático de absoluto 0.
— Como vai?
George não percebe, mas anda até o vestiário, aos armários verde-musgo de sempre, ao molho de chaves do mesmo bolso direito de sempre, tateia a 1ª, a 2ª, a 3ª, a 4ª delas sem nem precisar olhar; sem nem precisar sentir a textura; pega-a, abre a porta e se veste com o macacão azul.
Ao lado dele, Jean não percebe, mas anda até o vestiário, aos armários verde-musgo de sempre, ao molho de chaves do mesmo bolso esquerdo de sempre, tateia a 13ª, a 14ª, a 15ª, a 16ª delas sem nem precisar olhar; sem nem precisar sentir a textura; pega-a, abre a porta e se veste com o macacão azul.
Ao lado dele, Edgar não percebe. Mas...
Quando percebe, já está de volta pegando o cartão no quadro encimado por “EM SERVIÇO”, colocando-o (a página de sua vida) no Clacláque!, e então no quadro “FORA DE SERVIÇO”, e indo para casa.
Quando George percebe, já está de volta ao corredor mal-iluminado, já está em frente ao “FORA DE SERVIÇO”, e o que acontece com ele enquanto o papel-cartão está ali não é nada mais que uma vírgula num parágrafo de sua vida, e ele mal sabe disso.
Floquinhos de comida para o peixinho dourado, paredes cintilando a luz-azul do programa na TV. No calendário, um círculo vermelho em cima do 8.
Fim.
Círculo no 9.
Clacláque! É o barulho que a caixa verde faz depois que você coloca o cartão de ponto nela e lhe aperta a alavanca.
— Bom dia, George.
— Bom dia, Wagner.
— E aí.
— E aí.
Na boca de George, o gosto amargo do café de hoje se sobrepõe ao gosto amargo do café de ontem. O sabor da comida do refeitório é cinza. A cor da conversa jogada fora no refeitório é a mesma da comida: ou seja, 0.
— Sabe? — disse Yoshida. — Vocês já repararam que as portas principais do prédio se parecem com uma boca?
— Uma boca? — alguém perguntou, e ele respondeu que sim com a cabeça, mastigando.
E foi só isso. O assunto morreu aí.
Clacláque. É o tique-taque do relógio que você não vê.
— O que a gente faz aqui, exatamente?! — uma vez gritou um homem sem nome, do meio do pátio. Seguranças vieram contê-lo.
Encaminhado ao psicólogo.
Encaminhado ao RH.
Encaminhado ao “FORA DE SERVIÇO” para sempre.
Em virtude da lembrança, os olhos de George se arrastaram da superfície do próprio prato para a mesa de metal, e para as pessoas, e para os tijolos da parede norte, até então chegar ao cartaz de cores desbotadas – o que devia ter sido colorido, e então ficou azul, e agora já estava branco – e, nele, lá em cima para que todos o vissem, ler escrito assim: “VOCÊ, COLABORADOR, É SUMAMENTE IMPORTANTE PARA A MANUTENÇÃO DA SOCIEDADE.”
Clacláque. “EM SERVIÇO”.
Clacláque. “FORA DE SERVIÇO”.
Peixinho dourado.
— O que a gente faz aqui, exatamente? — George perguntou um dia.
— Não sei — alguém disse.
— Também não.
— Também não.
Também não, disseram todos. O único que não o fez foi o mais afastado, o russo, que limpou a boca com o guardanapo e o jogou na mesa como se tivesse acabado de ganhar contundentemente uma partida de cartas. Um gestual ostensivo, que atraiu o olhar de George, Jean, o de Wagner, e o daquele outro cara, seja lá que nome ele tenha.
— O que foi?
— “O que foi”? — repetiu o russo, contando as palavras. — Vocês não sabem o que fazemos aqui?
Os olhares de um lado e de outro da mesa eram como postes apontando para o fim de uma rua.
— Nós produzimos tempo — ele disse.
Os postes se entreolharam. Aliás, se fossem postes, eles teriam as faces iluminadas, mas o que tinham na cara não era senão sombra.
— Tempo?
— O tempo, cambada de idiotas. Nós produzimos tempo.
Produzimos tempo?
Sim, eles ficaram nisso de repetir as últimas frases que o russo dizia, até que alguém perguntou:
— Pra quem?
E o russo respondeu:
— Para todo mundo que não nós mesmos.
Péeeee.
A campainha-cigarra cantou. O dia raiou. O tempo acabou. De volta ao serviço. Cada um deles se levantou do banco corrido, deixando gotículas de suor no formato de pêssego carimbadas exatamente onde estavam suas bundas um segundo atrás. Deveriam voltar a fazer o que faziam, seja lá o que fosse.
Mas não George, George não.
— Ei, russo. O que você quis dizer com isso?
— Exatamente o que eu disse.
E virando-se de volta, falou:
— Olha, cara, se não acredita — disse ele, apontando para o salão principal. — Por que não vê por si mesmo?
Mas George não foi.
Pelo menos não imediatamente.
Clacláque. “FORA DE SERVIÇO”. Peixinho dourado. O que ele quis dizer com isso?
Clacláque. “EM SERVIÇO”. 1ª, 2ª, 3ª, 4ª chave. Sem olhar. Péee. Cigarra cantou.
— Russo. Ô russo! — George estava com metade do corpo inclinada para dentro da baia onde trabalhava ele, e os japoneses, e os chineses, e os sul-africanos, e os bolivianos, e todos os outros -eses, e todos os outros -anos. Todos os outros meses e anos. Rostos emoldurando um estático e absoluto 0.
— Russo!
Em frente a uma máquina de escrever sem folha, o russo teclava incessantemente várias letras. Seus dedos não tinham mais digitais.
— Você foi lá ver? — disse o russo, sem olhar para George.
— Fui.
— E...? — ele disse, virando a cadeira ao redor do próprio eixo.
— O que é aquilo?
Clacláque.
Corredor mal-iluminado.
“FORA DE SERVIÇO”.
Em casa, o peixinho dourado morreu e foi substituído por outro igual; igual, a ponto de parecer o mesmo peixe, que parecia o anterior, e que parecia anterior. Uma morte sobre outra morte sobre outra morte, até que isso também se tornou um fato tão indiferente quanto qualquer outro – quanto o sabor da cor cinza, por exemplo, caso ela tivesse sabor.
Shuuuu... Descarga.
Mas para todos os efeitos, para George, é o mesmo peixinho. Essa sua morte é apenas uma vírgula no parágrafo de sua vida.
Chaves sem olhar. Péee. Cigarra cantou.
Russo?!
O russo levou George até o salão no centro da indústria. Ao redor deles, vários clacláques de macacão azul apinhavam-se em suas próprias máquinas e afazeres, tanto que sequer notaram as presenças dos dois. No centro, uma teia viva de eletricidade serpenteava por uma gigantesca engrenagem ligada a várias outras engrenagens.
— Esse — disse o russo —, é o gerador de tempo. O campo eletromagnético dele é tão potente que, ainda que não o percebamos, distorce o espaço.
E dando um tapa na mão de George como uma tia dando-o num sobrinho tentando furtar um doce da mesa, ele disse:
— O que está fazendo, imbecil?
George iria tocar o objeto.
— Se você tocar aí, a entropia pode ser absurda.
— O quê?
— Entenda: cada segundo é como se fosse uma folha de papel escrita, que é o backup exato da folha de papel anterior, mas com um acréscimo de +1.
— Quê?... Back... up?
— Tocar nisso poderia ser o mesmo que pegar uma dessas “folhas” e colocar ela no meio da pilha.
— Quê?
Péee. Floquinhos de comida para o peixinho dourado.
Qual? Todos. O mesmo.
Um círculo vermelho. Não em cima do 14, mas em cima do 8.
Ele havia tocado.
Clacláque! É o barulho que a caixa verde faz depois que você coloca o cartão de ponto nela.
— Bom dia, George.
— Bom dia, Wagner.
— E aí, russo.
E o russo: — Quem é você?
Péee. Cigarra cantou.
— Russo, porra. Sou eu.
E o russo: — Se você não parar de me encher o saco, eu vou chamar o superior.
DE FATO, NINGUÉM SE IMPORTAVA se ele estava ou não no meio do salão onde o gerador de tempo ficava. Ninguém se importava se ele o tocasse de novo. É o gosto da cor cinza.
Tocou.
“FORA DE SERVIÇO”. Peixinho dourado. Dia 8 circulado.
Clacláque! É o barulho que a caixa verde...
— Bom dia, George.
— Que dia é hoje?
— Hoje são 7.
Clacláque! É o barulho que a caixa verde faz.
— Que dia é hoje?
— Hoje são 4.
— Hoje são 3.
— Hoje são 2.
Clacláque! É o barulho que a caixa verde faz. O vidro do relógio não está mais quebrado.
— Hoje é dia 1º.
— De que ano?
De 15 anos antes.
— Você parece cansado, George — disse Wagner, que não estava muito melhor.
A fila de sorrisos ia de encontro aos mesmos cumprimentos-antipartículas, e até o vestiário, e então aos armários verde-musgo de sempre, onde um molho de chaves o aguardava no bolso direito.
Clacláque!
— Que dia é hoje? De que ano?
De 50 anos antes. Não há Wagner. Não deveria existir George. Só o pai de George, cumprimentando antipartículas. Sorrindo sabores cinza. O cartaz “VOCÊ, COLABORADOR, É SUMAMENTE...” tinha cores amarelas, vermelhas, verdes.
Clacláque!
— Que dia é hoje? De que ano?
De 80 anos antes.
Não há Wagner. Não há pai de George. Só há avô de George, e George, ambos cumprimentando antipartículas.
— O que fazemos aqui? — disse George ao próprio avô, que o respondeu:
— Nós produzimos tempo.
— Pra quem?
— Para todo mundo que não nós mesmos.
Clacláque!
Clacláque!
Clacláque!
— Que dia é hoje?
Que importa? Todos os dias são um peixinho dourado. Dia 8 circulado. Sua morte é apenas uma vírgula no parágrafo de sua vida, que é escrito em sua folha de ponto.
Clacláque! É o barulho que a caixa verde faz. Que é o barulho que faz a caixa verde de outra indústria, e a de outra empresa, e também o barulho invisível da caixa que não existe (mas existe) no trabalho do autônomo que odeia o que faz.
— Que dia é hoje? — perguntou George.
— Hoje são ∞ — disse VV4gn-3R.
— De que ano?
— De 99999.
— O que fazemos aqui?
— Produzimos tempo.
— Pra quem?
— Para todo mundo que não nós mesmos.
Em frente a uma caixa de holograma verde, no qual os homens de macacão azul digitavam runas e hieróglifos representando a marcação do tempo, George perguntou isso ao androide flutuando atrás de uma mesa de tampo de vidro fumê:
— E o que é o tempo?
— Ora — respondeu o robô —, mas que pergunta idiota!
E disse:
— Todo mundo sabe que o tempo é isso.
O quê?
— Um alimento.
E com a mão em concha na orelha-fone, disse:
— Ouça! Ouça!
Clacláque!
— Ouviu?
Sim. E daí...?
— Ora! Mastigou!
Clacláque!
E de novo!
Clacláque!
E de novo!
Clacláque!
E de novo!
De novo!
De novo!
E o gosto é cinza.
Obrigado pela leitura!
Fantástico como o som nos coloca imerso na história. Uma sequência de socos que te deixa desnorteado, se perguntando o que está acontecendo? Recomendo!
Como fã declarado de Batrachius Hop, eu me segurava, aguardando ansioso por sua próxima história, como ficamos ao saber que um de nossos escritores favoritos está trabalhando em algo novo. E valeu cada segundo de espera ! Mais uma vez, com uma escrita primorosa, inteligente, divertida e original, ele nos leva a um tempo fora do tempo, um lugar de sonhar e refletir. Um lugar onde eu ou você bem podíamos ser o George. Fascinante. Recomendo muito, não só esta, mas toda sua obra !
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