Eu ainda consigo lembrar do seu rosto, me encarando como se eu fosse um grande triunfo de seus planos horrendos. Um olhar tão frio e profundo que parecia atravessar a minha alma, mas um grande sorriso escancarado naquela boca pálida. Ninguém mais o via, só eu. E não podia fazer nada, pois era apenas um bebê. Eu queria que as pessoas pudessem vê-lo. Elas se assustariam com a presença de um homem alto e esquisito, com longas asas de penas negras e um par de chifres acinzentados que apontavam para baixo. Sua voz ainda ecoa na minha cabeça. Uma voz que só eu poderia ouvir e nenhuma outra pessoa seria torturada por ela.
—Você é o ápice das minhas criações, Kian — o homem estranho falou, com sua voz arranhada que sempre parecia estar sussurrando. — Juntos, nós seremos imbatíveis e eu colocarei em prática todos os meus melhores planos! Tudo não poderia estar acontecendo de forma mais perfeita! Este é o meu momento de glória.
Aquele monstro andou até mim. Sua forma física foi se desfazendo, se transformando em uma espécie de pó preto, que flutuou até entrar dentro de meu corpo pela minha boca. Naquele dia, eu percebi que não estava mais sozinho. Nunca estaria. Esse seria o meu tormento.
Aos meus oito anos, comecei a ter episódios estranhos envolvendo a imagem de um homem de cabelos longos e pretos como a própria escuridão. Ele sempre vestia um terno e sapatos igualmente escuros, com uma camisa social branca por baixo e uma gravata vermelha. Tentei contar aos adultos o que via, mas ninguém acreditava em mim. Para eles, tudo era fruto da imaginação fértil de um jovem garoto, e que eu deveria brincar para gastá-la. Alguns se preocupavam um pouco mais e perguntavam se esse homem tinha me tocado de forma estranha ou se me perseguia pelas ruas. Como eu poderia explicar aquilo? Como eu conseguiria dizer que alguém só existia dentro da minha cabeça? Foi tanto descrédito que passei a acreditar neles. Aquilo era apenas a minha imaginação.— — —
Tirando o fato de eu ver um homem, que ficava imóvel e nunca falava, era uma criança normal. Brincava e me divertia como qualquer um. Meu passatempo preferido era jogar bola com os amigos. Corria, caía, me machucava e voltava a correr. E esse ciclo se repetia, dia após dia. Mas tudo mudou no meu aniversário de nove anos.
— Ei, Kian! — Jonas, meu melhor amigo, gritou para chamar a minha atenção. — Vem brincar de pique-pega com a gente!
— Estou indo! — respondi.
Eu corri pela sala, me desviando dos convidados, até chegar ao quintal. Meus amigos estavam todos lá: Jonas, Kléber, Ana, Marcos e tantos outros. Eu tinha tantos amigos. Era tão feliz. Nós brincamos por muitos minutos, correndo de um lado para o outro. Como os adultos dizem, a energia de uma criança nunca acaba, mas, no meu caso, era verdade. Nunca me cansava como as outras pessoas. Meu avô materno sempre dizia que eu deveria me tornar atleta, que venceria todas as competições, pois nunca pararia para descansar. "Você é uma máquina imparável", ele falava.
Minha mãe apareceu no quintal, chamando todas as crianças para bater os parabéns. Quem estava cansado, deixou de estar, porque todos adoravam o bolo do meu pai. Na sala, uma mesa continha o bolo, docinhos de festa, cupcakes, jujubas e muitos outros doces. A família estava quase toda reunida e eu estava muito feliz por poder estar aproveitando aquele momento com eles. As luzes se apagaram e a vela no formato de "9" foi acesa. Todo mundo começou a cantar o parabéns e bater palma. Ao som do meu nome sendo gritado a quatro cantos, me inclinei para soprar a vela.
— Feliz aniversário, Kian!
Eu paralisei quando ouvi o homem da minha cabeça falar bem perto do meu ouvido direito. Nunca tinha ouvido a sua voz, mas ela soava familiar. Estava com medo. Por que ele falou aquilo? E por que ele só falou agora? Minha mente voltou à realidade com meu pai me chamando.
— Não vai assoprar a vela, filho? — perguntou. Ele colocou a mão no meu ombro, como se estivesse checando se eu estava bem.
Assoprei a vela e tentei fingir que estava tudo bem. Para a minha sorte, não faltava muito para a festa acabar. Eu só queria ficar sozinho.
Quando chegou a hora de dormir, tentei descansar meus olhos, mas era impossível. Aquele homem não saia da minha cabeça. Eu liguei a luminária e olhei ao redor, tentando encontrá-lo. Ninguém apareceu. Será que era tudo fruto da minha cabeça mesmo? Meu pai estava do meu lado direito, então eu poderia ter confundido a voz dele. Tentei acreditar nisso. O sono não veio. "E se eu tentar falar com ele?", pensei. Sempre tive medo da sua presença, então nunca tentei me comunicar com ele antes.
— Você está aí? — sussurrei, com medo de ser respondido.
— Quem, eu? — Ele se materializou na ponta da minha cama. — O que você quer comigo, Kian?
— Como você sabe meu nome?
— Eu sei tudo sobre você. Não se lembra me mim?
— Não. Deveria?
— Eu não sei. Talvez meu plano não tenha sido perfeito.
— Você é o Diabo?
Ele riu.
— Eu já tive vários nomes, Kian, mas acredito que este não era um deles.
— Então quem é você?
— Se tudo der certo, você vai saber quando a hora chegar. — Ele se levantou. — Agora durma!
De sua mão saiu um pó preto e eu o inalei. Em instantes, me senti sonolento e dormi.
Ao longo do resto do ano, conversei um pouco com o homem da minha cabeça. Perdi o medo dele, afinal, ele não fazia mal algum a mim. Cheguei à conclusão de que tinha agido daquela forma irracionalmente. Até diria que viramos amigos. Eu era uma criança muito curiosa, e ele só tinha a mim. Fui pego por adultos algumas vezes conversando com ele, mas dizia que estava brincando com um amigo imaginário.
Quando as férias acabaram, a minha tristeza começou. Nós tivemos que nos mudar, mesmo meus pais e eu odiando a ideia. Fomos para muito longe do meu bairro antigo, então também tive que mudar de escola e dar adeus aos meus amigos. A despedida foi muito triste. A nova casa era mais ao centro, então tinha menos crianças brincando nas ruas, porque era perigoso. Tudo o que víamos eram prédios para todos os lados. Pelo menos eu ainda tinha alguém para conversar. Alguém que jamais sairia de perto de mim.
Minha nova escola não era tão bonita quanto a anterior, nem mesmo tão interessante. Ela parecia vazia, mesmo lotada de alunos. O uniforme não era confortável e tinha um tom de vermelho muito esquisito, que até chegava a irritar os olhos se olhasse para eles por muito tempo. Minha mãe foi comigo no primeiro dia, para me ajudar a me localizar lá dentro. Ela tentava fazer elogios vagos ao lugar, na tentativa de me animar, mas não funcionou nem um pouco.
— Olha, filho, aqui diz onde cada turma vai ficar! — Ela sorriu e me puxou até o mural de notícias. — A sua turma vai ficar na sala 12B.
Ela se abaixou e me deu um beijo na testa.
— Eu sei que parece que tudo está muito ruim, mas é só uma questão de adaptação — falou. — Promete para mim que vai tentar se enturmar e fazer novos amigos?
Eu relutei para responder.
— Prometo, mãe.
— Esse é o meu garoto! Aposto que todo mundo vai gostar de você.
Eu subi a rampa principal até chegar no segundo andar e encontrar a minha sala de aula. Bati na porta, esperei alguns segundos e entrei. A turma toda já estava lá dentro, e todos pararam o que estavam fazendo para me observar. O silêncio se instaurou, até que a professora olhou para o lado e me viu. As crianças estavam fazendo tanto barulho, que acho que ela nem mesmo me ouviu bater na porta.
— Mais um rostinho novo? — ela perguntou, retoricamente. — Pode escolher um lugar para se sentar, querido.
Eu olhei para as carteiras, mas não tinham muitos lugares disponíveis. Andei até um espaço vago no meio da sala. As outras crianças não tiravam os olhos de mim. Fingi que não estava vendo e fiquei encarando a mesa. Aos poucos os murmúrios voltaram ao normal, se tornando, posteriormente, um barulho alto de múltiplas vozes finas de crianças. Conseguia observar que outros alunos também estavam sozinhos, então não seria o único ou um dos poucos rostos novos ali.
— Muito bem, pessoal! Prestem atenção aqui na professora. Meninos, parem de conversar agora um pouquinho — ela falou e apontou para um grupo de garotos sentados no fundo da sala. — Como temos bastante aluno novo, vamos todo mundo nos apresentar. Vou começar por aqui. Qual é o seu nome?
— Júlia — uma menina baixinha respondeu.
— O que você quer ser quando crescer?
— Quero ser bailarina.
— E você atrás dela?
— Meu nome é Marcelo, e quero ser médico.
A dinâmica persistiu assim, passando por cada aluno. Alguns tinham respostas interessantes, queriam se tornar coisas que eu até consideraria na minha resposta. Quando chegou no fim da fileira, um garoto respondeu: "meu nome é Carlos e eu quero ser é rico, tia", enquanto os amigos riam. Eu me vi perdido em meus próprios pensamentos e nem percebi quando a minha vez estava chegando.
— E você, distraído, qual o seu nome e o que quer ser?
— Meu nome é Kian...
Os murmúrios voltaram.
— Que nome é esse? — uma garota sussurrou para a amiga.
— "Kian"? Que nome idiota! — Carlos riu.
Suspirei fundo.
— E eu não faço ideia do que quero ser quando crescer.
— Você ainda tem bastante tempo para conseguir achar a sua vocação, não se preocupe — a professora falou.
Acho que ali eu pude ver que aquele lugar não era para mim. Não importaria o quanto eu tentasse, jamais me encaixaria naqueles grupos. Andava tão cabisbaixo que nem fiz esforço para imaginar um cenário bom para o fim daquela história.
O intervalo chegou, mas pareceu ter demorado uma eternidade. Não estava com fome, então apenas procurei um lugar distante das outras pessoas para me sentar. Encontrei um banco no final de um extenso gramado. Sentei-me, mas o tempo não passava. Acho que o relógio me detestava, pois seus minutos passavam tão lentamente. Tinha levado comigo a minha mochila, porque a aula seguinte seria em outra sala, e foi aí que eu me lembrei que meu boneco favorito estava dentro dela. Eu a abri e o tirei de lá. Não sei o que aconteceu, mas ele não tinha o mesmo brilho. Segurava ele na mão, na esperança de algum sopro de criatividade surgir e brincar com ele. Nada. O mundo realmente tinha ficado mais cinza.
Uma sombra veio surgindo pelo chão. Olhei para cima e vi o dono dela: era Carlos, o garoto que mais cedo tinha falado mal do meu nome. Junto a ele estavam alguns de seus amigos. Eles tinham a maldade tatuada em seus olhos. Se tinha uma coisa que eu sabia, era que eles não foram até mim para me dar as boas-vindas. Carlos se jogou para frente rapidamente e pegou o meu boneco das minhas mãos. Tentei impedi-lo, mas não fui rápido o suficiente.
— Me devolve! — gritei.
— O que você tá fazendo aqui? — Carlos perguntou com uma voz calma. — Por que você não volta para o seu lugar?
— Me dá o meu brinquedo!
— Você quer ele? Então vem pegar!
Parti para cima de Carlos, mas ele foi mais rápido e jogou o boneco para um de seus amigos. Eu corria, tentando retomar o que era meu, mas meus esforços eram inúteis. O brinquedo voava de um lado ao outro, mas nunca parava na minha mão. Eles riam. Algumas crianças ao redor estavam vendo, mas nenhuma tentou me ajudar. Só fui ter paz quando o alarme tocou, indicando o fim do intervalo.
— E vê se aprende a não ficar no nosso caminho — Carlos falou e jogou o meu boneco no chão.
Eu estava com tanto ódio, mas não podia fazer nada. Também tinha vontade de chorar, mas isso seria pior ainda. Queria a minha escola antiga, mas isso era impossível. Eram tantos "mas" na minha cabeça.
— Bata neles! — o homem da minha cabeça falou.
— Não, eu sou fraco — sussurrei.
— Você é mais forte do que imagina, Kian. Precisa começar a se defender.
Peguei as minhas coisas e fui para a sala de aula. Carlos e seus amigos estavam sentados, como se nada tivesse acontecido. Aquela foi a minha vida na escola por meses. Não tinha amigos e ninguém tentava me ajudar. Dia após dia eles me perturbavam e faziam bullying comigo. Chegou em um ponto que eu comecei a achar natural, já que não podia fazer nada além de aceitar o meu destino.
Em casa, as coisas não estavam tão bem assim, mas meus pais me prometiam que tudo iria melhorar. Eles já estavam passando por tanta coisa, que resolvi não contar para eles sobre o que acontecia na escola. Não queria preocupá-los e não queria que meus pais fossem na escola. Isso poderia não resolver nada e ainda aumentar o bullying que faziam comigo, eu pensava. O jeito era aceitar a realidade e esperar que ela não piorasse.
As férias de meio de ano estavam prestes a chegar e isso era o que eu estava esperando há muito tempo. Faltava apenas mais um dia. Finalmente teria um pouco de paz, mesmo que por algumas semanas apenas. Fui para a escola e, naquele dia, tudo até ocorreu de uma maneira normal. Sem bullying, perturbação ou qualquer outra coisa ruim que pudesse acontecer. Ao sair da escola, peguei meus fones de ouvido e coloquei uma música. A minha casa não era muito longe, então sempre ia e voltava a pé. Tudo estava perfeito, até eu encontrar Carlos e seus amigos no meio no caminho.
— O que você está ouvindo, esquisito?
Eles fizeram um círculo ao redor de mim.
— Me deixa em paz, Carlos.
— Te deixar em paz? Por que você não deixa a gente em paz?
— Bata neles!
— A gente falou para você não ficar no nosso caminho, e você sempre aparece — Carlos voltou a falar. — Você não tem medo da gente, não?
— Bata neles!
— Não — respondi, mas não sabia com quem eu estava falando.
— Não?
Carlos me empurrou.
— Me deixa em paz, Carlos!
— Bata neles!
Ele me empurrou novamente, mas desta vez não fiquei parado. Revidei e o empurrei de volta. Isso o deixou furioso. Carlos me golpeou e eu caí no chão. Ele e seus amigos começaram a me chutar sem parar. Não conseguia ver nada, apenas o homem da minha cabeça na minha frente. Ele me observava.
— Você não vai bater neles?
Não respondi.
— Mostre para eles que você é forte, Kian.
Silêncio.
— Você precisa aprender a se defender.
Chutes.
— Bata neles! — ele gritou.
Eu passei a mão em meu nariz. Sangue. O homem olhou para isso, arregalou os olhos e abriu um grande sorriso. Branco. Quando abri meus olhos, estava em pé. Passei a mão novamente em meu rosto, mas não tinha nada. Olhei ao redor e vi Carlos e seus amigos, caídos no chão e chorando. O que tinha acontecido ali? Alguém tinha me ajudado?
— Não, por favor! — Carlos suplicou e chorou.
Eu tinha feito aquilo? Mas por que não me lembrava de nada? Tudo estava tão confuso. Peguei a minha mochila e voltei para a minha casa. Fui direto para o meu quarto e sentei-me na cama, tentando refletir sobre o que acontecera. Carlos parecia estar com muito medo de mim, e também estava ferido. Eu ainda estava um pouco desnorteado.
— Foi bom bater neles, não foi?
O homem estranho apareceu, mas, desta vez, eu sabia quem ele era. Pela primeira vez eu consegui lembrar de tudo antes daquele momento em branco com Carlos e seus amigos. Ele era o cara que apareceu para mim lá no passado, quando era apenas um bebê. Seu nome era Mormo'Hukàn, o deus do caos e da morte. O que ele queria comigo?
Até o presente momento, a única coisa que sabemos é que não estamos sozinhos neste mundo. Seres misteriosos espreitaram a humanidade desde o seu surgimento, mas será que eles são amigáveis? As informações deste universo serão atualizadas conforme as histórias se desenvolvem. Nada de spoiler. Leia mais sobre O Eco dos Ascendidos.
Obrigado pela leitura!
Podemos manter o Inkspired gratuitamente exibindo anúncios para nossos visitantes. Por favor, apoie-nos colocando na lista de permissões ou desativando o AdBlocker (bloqueador de publicidade).
Depois de fazer isso, recarregue o site para continuar usando o Inkspired normalmente.