Helen chegou esbaforida ao hospital. Recebera o telefonema assim que abrira os olhos. Não deveria ser coisa boa. Nunca é quando se tem alguém internado há algum tempo. Fora recebida com deferência na recepção e logo encaminhada à presença do especialista que tratava de seu pai.
— Helen, eu sei que é uma decisão difícil, contudo, não há mais nada a ser feito pelo Dr. Anastor. Seu corpo não responde mais aos estímulos e o coma é profundo.
— O senhor está sugerindo desligar os aparelhos? — questionou, incrédula.
— A morte cerebral já foi constatada. Talvez seu coração aguente mais alguns dias, entretanto, creio não que haverá uma recuperação, não na idade dele.
— Ele ainda pode surpreendê-lo, doutor. O senhor não conhece papai. — encarou o homem à sua frente, que sorria com o canto da boca.
— Eu o conheço bem, querida. Somos amigos de longa data.
— Ele deve estar lutando de alguma forma. O senhor bem sabe. Nunca foi um homem de ligar para outra coisa que não fosse seu precioso império — proferiu, ressentida.
— Anastor é um homem difícil, porém é seu pai. Cabe a você a decisão de mantê-lo vivo por mais alguns dias.
— Preciso refletir, doutor. Não quero me precipitar.
Helen deixou o hospital com os pensamentos fervilhando em sua mente. Nunca tivera um pai no sentido exato da palavra. Aquele fora apenas o homem que lhe dera a vida. Sempre fora ausente. Lembrava-se bem dos vários Natais que passara junto da mãe cercada de brinquedos caros, contudo, o olhar que ela lhe transmitia era sempre impregnado de uma mágoa que acabava com sua felicidade. Não dirigida a ela, propriamente. Para Helen sempre havia um sorriso doce que ela se esforçava para expressar. Mais tarde soubera que o pai também era um homem impiedoso. Inclusive o fora com sua mãe. Gostava de passar por cima de tudo e de todos quando necessário.
Trabalhou a tarde toda, questionando o império que agora gerenciava. Não por seu desejo, mas porque foi preciso. Ela bateu o pé na diretoria e conseguiu a vice-presidência com o intuito de uma administração mais humana e menos férrea.
Naquela noite, após um jantar de negócios, embalada por várias garrafas de Biscardo Amarone della Valpolicella, jogou-se na cama. Pensaria no velho pela manhã.
***
Ele caminhava por uma estrada sinuosa. Já não existia nenhuma amarra. Suas pernas se moviam seguras por entre a névoa rasteira que se dissolvia a cada passo seu. Os olhos tornaram-se aguçados no breu que o acompanhava, enquanto se dirigia para a luz à frente. Era necessário alcançá-la. Ninguém lhe dissera aquilo. Cada partícula de seus poros gritava que era assim que se libertaria dos barulhos gorgolejantes e molhados que ouvia, sorrateiros, atrás de si.
Era possível imaginar as mãos se arrastando, quase agarrando seus pés desnudos na tentativa de impedi-lo. Nada o faria desistir de cumprir seu intento. Ele jamais sucumbiria em um lugar como aquele. Construíra sua vida e fortuna sendo temido e respeitado por todos. Apertou o passo e, quando a luz parecia se aproximar, a mão invisível que comprimia seu estômago em dor, forçava-o ao looping que lhe fora impingido e o aprisionava mais uma vez. Rangia os dentes de raiva. Não iria se entregar. Nunca! Nenhuma pirralha metida a besta o manteria naquele lugar.
Arrastou as pernas, agora pesadas, pela estrada sombria. Agarrou e feriu as mãos nodosas nos troncos afiados das árvores, sem se importar com o vermelho que escorria da ferida aberta que pulsava no negrume, iluminado pela luz libertadora que estava lá novamente. Esperando por ele. Um mundo que ele merecia e que era seu por direito. Afinal fora um benemérito. Ajudara tantas pessoas com seus remédios. Enriquecera sim, mas por sua habilidade em fazer dinheiro.
Afinal, quem não precisa de medicamentos que os livrem de suas dores? É claro que o monopólio das indústrias pertencia a ele. Teriam que seguir suas regras. Seu império ninguém destruiria. Haveria de voltar para o seio da família que construíra assim que se livrasse da pirralha. Não deixaria que ninguém tomasse o seu lugar, nem mesmo sua filha metida que achava que um dia poderia ser melhor que ele. Chegando à luz, negociaria com Deus, se assim fosse preciso. Só precisava chegar até ela.
O bip dos aparelhos que o prendia à cama do hospital estava cada vez mais distante. Não morreria naquele lugar ridículo e sujo. Não pelas mãos de uma criança vingativa. Só mais um passo. Suspirou pesado. Seu corpo estava cansado. Perdera as contas de quantas vezes fizera aquele mesmo trajeto. Lá estava a luz, tão perto, tão inacessível.
Deitara-se no chão pegajoso, sentindo-se ofegante. Fincou a mão na terra suja, obrigando o corpo a continuar. Só mais um tiquinho. Podia sentir o calor da luz tocando seu indicador. Se conseguisse, fugiria dali e talvez pudesse resolver a enrascada em que se metera quando pôs os olhos na mãe da garota. Fora tolo e soberbo. Meter-se com empregados nunca fora uma boa ideia. Porém, foi fisgado pela beleza morena da mulher, pelo seu gingado e sabor.
Bastou uma única vez. Sua esposa descobriu e a pôs no olho da rua sem direito a nada. É claro que ele se calou. Não tivera culpa. A rapariga o forçara.
Tempos depois descobriu que a empregadinha estava grávida. Ela teve a audácia de lhe cobrar. Disse que não era para ela e sim pela menina que se encontrava doente. É claro que ele não acreditou. Gente desse tipo só quer dinheiro fácil. A criança morreu. Ela fez questão de trazer a menina morta nos braços e mostrar a ele.
— Eu só precisava de um remédio para ela! — gritava em pranto, fazendo um escândalo em frente da sua mansão.
O mal já estava feito. Não dava para voltar atrás. Sua esposa se afastou e fez o mesmo com sua herdeira. Mas quem se importa com uma mulher em casa se basta estalar os dedos, acenando com uma boa grana, e elas aparecem aos bandos? Contudo isso é passado. Agora ele estava ali, naquele limbo maldito, desesperado para chegar à luz e negociar. Então veio a dor novamente. A pirralha da garota massacrava sua mão com os pés firmes e fortes. Ele não tivera culpa, diretamente, em sua morte. A pestinha parecia não acreditar e o mantinha prisioneiro naquele lugar nodoso.
— Você ficará comigo, papai. Eu já lhe disse. Por que insiste? Eu cuidarei de você da mesma forma que cuidou de mim.
Helen encarava aquele looping, encenado por seu pai, como uma testemunha ocular de seu merecido sofrimento. Contudo, a garotinha com uma rota camisola branca, de olhos amarelos e rosto coberto de riscos negros, sorriu diretamente para ela:
— Deixe-o comigo, irmã. Prometo que ficarei com ele o tempo todo. E tome cuidado para não ficar como papai, senão eu também posso te esperar.
O grito rompeu o silêncio do quarto de Helen que acendeu a luz do abajur sentindo-se ofegante. Ela se lembrava de ouvir a mãe brigando com o pai, enquanto se escondia atrás da porta. O velho aprontara e isso destruíra a mãe. Não sabia que a criança havia morrido. Fechou os olhos depois de muito pensar. Antes de o dia raiar já havia tomado sua decisão. O pai estava bem melhor nas mãos da irmã.
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