amanda-kraft1664221938 Amanda Kraft

Ela havia brigado com o namorado. Pensando se deveria perdoá-lo, afasta-se dele indo em um passeio na fazenda dos tios. Disposta a ficar a sós, senta-se à sombra de uma mangueira, contemplando a lagoa à sua frente. Então um estranho surge com seu olhar triste, mirando o horizonte. Ela o interpela e, mesmo desconfiada e com medo, sente-se presa a ele...


Crime Para maiores de 18 apenas.
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A Lagoa


Não estava no clima para encontros familiares, contudo, por insistência de minha mãe, acabei me vendo dentro do carro indo a caminho de um almoço na chácara de meu tio Aurélio, irmão de meu pai. Pus os fones de ouvido, pois não queria ser incomodada com as conversas de sempre, principalmente as sem graças do meu irmão mais novo. Estava com o coração ferido e não me sentia feliz de ter que responder as perguntas tolas de meus pais. Preferia fingir que estava tudo bem, contudo, não estava. Briguei com Paulo quando fomos ao Senta Aqui, um barzinho frequentado pela turma da faculdade.

Aquela insidiosa da Milena resolveu jogar charme para cima dele e o tonto não se fez de rogado. Porém, eu vi a troca de olhares dos dois. Senti um ímpeto de esganá-lo ali mesmo. O idiota negou. Claro que o faria. Quem em sã consciência admitiria o fato numa boa? Mas não sou dessas que perdoam fácil. Não com tantos gaviões dando sopa por aí. Mandei-o para o inferno e voltei para casa de carona com a Dani, que ficou ouvindo meus lamentos.

Não vou dizer que esqueci o cara da noite para o dia, mas não iria dar o braço a torcer, nem mesmo com ele dizendo que eu era ciumenta demais, que não tinha olhado para ninguém, que gostava de mim e etecetera e tal. Jurei não pensar nele nas próximas vinte e quatro horas. Mas estava difícil. Traição não é algo que se supera assim. Não é algo que se desliga da vida da gente.

O papo dos velhos corria solto em volta da mesa enorme que o tio pusera na varanda da casa. Eu gostava de ir lá quando criança. Os tios eram muito amáveis e a chácara linda. Andando à direita, em direção à plantação de milho, havia uma lagoa que fazia divisa com a chácara do seu Chico. De um lado, eu e os primos brincávamos ali o domingo todo. Do outro lado, dava para ver os filhos do seu Chico brincando. Às vezes eles nadavam em nossa direção e fazíamos a festa.

Sentindo saudade desses dias, em que nossa preocupação era apenas voltar para casa e ir para a aula no dia seguinte, esquivei-me de meus pais e primos e fui em busca do velho tronco caído embaixo da mangueira. Aquele verão estava atípico. Mais quente que o normal. Queria me sentar ali, contemplar a lagoa e pensar se daria mais uma chance ao idiota do Paulo, que insistia em enviar mensagens de amor para meu celular.

Aquele lugar trazia tanta paz, que cheguei a pôr os fones no ouvido novamente, deixando minha playlist rolar baixinho. Precisava pensar. Depois de um lauto almoço, uma sombra, a brisa refrescante que subia do lago a me embalar e um som calmante, meus olhos estavam quase se fechando. Mirei a estrada que corria sinuosa lá no alto, deserta àquela hora, e me acomodei no tronco da mangueira. Acho que cheguei a bocejar, entretanto, vi-me em alerta. Não sei exatamente o que me tirou do torpor. Ao levar a mão ao fone de ouvido, um rapaz desconhecido se aproximou de mim, fazendo meu corpo gelar de medo.

— Olá — ele disse, sentando-se ao meu lado.

Seria totalmente normal eu me levantar e tentar correr de volta à segurança da minha família. Um cara surgir do nada e sentar-se ao seu lado era um prato cheio para uma desgraça acontecer. Estava pronta para arrumar uma desculpa e tentar fugir dali, quando ele sorriu, olhando na direção da lagoa, e foi como se uma paz muito grande me prendesse ao lugar. De alguma forma sabia que não me faria mal algum.

— Você mora aqui perto? — perguntei, vendo que ele mantinha o olhar fixo na água cintilante.

— Sim.

— Nunca o vi por essas bandas. Acabou de se mudar? Meus tios são donos da Chácara das Flores. Logo virando a plantação de milho. Pertinho daqui.

Ele não respondeu de imediato. Continuou com seu olhar perdido.

— Olha, eu preciso ir. — disse, levantando-me do tronco. Embora a razão me mandasse sair daquele lugar, o jeito triste do rapaz fazia com que eu desejasse continuar ao seu lado e saber mais sobre ele.

Como não esboçou nenhuma reação diante de minhas palavras, resolvi me sentar novamente e encarar seu perfil. Como disse, não estava tão longe assim. De vez em quando dava para ouvir as risadas dos meus pais e tios trazidas pelo vento. Um grito meu e eles viriam correndo.

— Está tudo bem com você? — indaguei, notando sua palidez um pouco anormal para aquela época do ano.

— Agora está, porém, você pareceu-me triste há minutos atrás. — respondeu, sem olhar em minha direção.

— Não é nada. Tive uma briga boba com meu namorado. Estou com raiva e pensando se devo perdoá-lo ou não. Ele está insistindo. — sorri, encabulada, mostrando meu celular para ele.

— Brigas nem sempre acabam bem. — constatou, sem desviar os olhos daquela lagoa.

— É. Nem sempre. Você já brigou com alguma namorada? — questionei mais para puxar conversa com ele do que realmente saber sobre sua vida.

— Não com ela. Mas uma briga me trouxe para esse lugar.

— Entendo. Você se mudou para cá para fugir? — Senti-me curiosa e passei a analisar o perfil do rapaz. Parecia ser um jovem bem bonito, contudo trazia algo de estranho na face.

— Não para fugir. Não tive escolha.

— Eu sinto muito. O que houve? Por que não teve escolha?

Devo confessar que o rapaz havia prendido minha atenção. Mordi o lábio inferior, refreando minha curiosidade.

— Eu e a minha namorada estávamos saindo de um cinema quando nos deparamos com o seu ex e a turma dele. Saímos do local e fomos nos misturando no meio do pessoal, esgueirando-nos para que não nos visse. Quando chegamos ao carro, estacionado há alguns quarteirões dali, vimos sua caminhonete nos cegando com o farol alto. Mantive-me firme ao lado de Stela. Antes que eu abrisse a porta para ela entrar, ele desceu correndo e agarrou seu braço.

— O que está fazendo com esse panaca? — perguntou a ela, fazendo-a gritar.

— Isso não é da sua conta. Solte meu braço. Está me machucando. — Ela tentou empurrá-lo, encarando-o com raiva.

— Eu não podia assistir aquela cena sem me intrometer. Estávamos namorando há pouco mais de um mês. Eu sabia sobre seu ex e sua brutalidade. Mas o amor falou mais alto. Stela é a menina mais linda que vi na vida, de uma docilidade incrível. Vê-lo machucando-a daquela forma, enquanto gargalhadas estouravam dentro da caminhonete, fez-me perder a cabeça. Puxei seu braço com ímpeto, fazendo-a soltar-se dele. Ele me encarou furioso.

— Vá para casa — disse a ele, que me encarava com escárnio — Stela está comigo agora.

— Óhhh. A “bichinha” está falando comigo? Dá o fora daqui seu “viado”, antes que acabe com você. — gritou com escárnio e ódio, erguendo o punho.

— Desferi um soco bem dado em sua boca, jogando-o ao chão. Enquanto ele estava estatelado, segurando o nariz que sangrava, mandei Stela entrar no carro. Antes que me desse conta, seus amigos estavam em cima de mim. Eram três contra um. Defendi-me como pude. Desferi socos a esmo, enquanto era golpeado por todo o corpo pelos marginais, amigos dele. Aproveitou-se, vendo-me caído e abriu a porta do carro puxando Stela para fora. Tentou beijá-la à força, mas seus gritos chamaram a atenção de um pessoal que passava por ali. Eles gritaram, dizendo que chamariam a polícia. O desgraçado soltou Stela e os outros se afastaram com medo. Alguém me ajudou a levantar. Ela me abraçou e vi, com um o olho que não estava inchado, a caminhonete cantar pneu e desparecer.

— Beto, você está bem? — Stela perguntava, enquanto um rapaz me amparava.

— Estou bem.

— Abracei-a e ela se jogou em meus braços, soluçando. Agradeci aos rapazes, meus salvadores, e deixamos o lugar. Stela não queria ir para casa. Insistiu para que fossemos para a minha, para que pudesse cuidar de mim. Não deixei, pois meus pais ficariam furiosos com meu estado e talvez até proibissem nosso namoro ao saber da verdade. Ela não parava de soluçar e de dizer que a culpa era dela. Toquei o carro pelas ruas, esperando que se acalmasse. Queria que eu fosse à polícia e o denunciasse. Contudo, esse passo traria consequências desastrosas para mim e minha família. Mexer com gente importante é uma faca de dois gumes. O pai dele tem metade da cidade nas mãos e nós não tínhamos nada. Seria uma briga injusta.

— Mas que filho da mãe! — Eu disse, interrompendo-o pela primeira vez. Senti um ódio imenso ao notar um pequeno corte em sua face. Firmei os olhos no perfil de seu rosto, naquela tarde quente e seca, e creio que o mormaço me fez acreditar que a briga que ele narrava havia acontecido na noite anterior. Achei estranho, uma vez que logo que ele se sentou ali, não notei nenhum sinal de violência. Pelo menos no lado do rosto voltado para mim. — O que você fez? — indaguei, curiosa, e ele sorriu de forma triste, antes de continuar a narração.

— Dei mais uma voltas pela cidade e parei em frente à sua casa. Stela disse que queria ficar comigo aquela noite. Que não se importava com mais nada. Disse que me amava. Eu encarei aqueles olhos marejados e senti uma força romper dentro de mim. Tomei seu rosto em minhas mãos e, mesmo sentindo todo o corpo gritar de dor, beijei-a com sofreguidão. Já era tarde. Pedi a ela para entrar na casa. Que não temesse, pois eu a levaria dali para outra cidade. Já estava mesmo planejando ir para outro lugar, começar uma vida nova. Ela sorriu, animada. Fizemos planos para um futuro feliz. Prometi que viajaria nos próximos dias e, assim que tivesse arranjado um lugar para morarmos, voltaria para buscá-la. Ela entrou em sua casa e nunca mais a vi.

— O quê? — senti a velha raiva me acometer. — Como assim, não a viu mais? Não vá me dizer que depois de tudo isso ela voltou para o ex?

Ele virou o corpo em minha direção e então pude ver seu rosto com perfeição. Havia algumas marcas de agressão nele, mas isso não maculava a beleza que eu contemplava. Seus olhos eram de um verde escuro, da cor das águas da lagoa, e seu olhar era o mais triste que já havia visto em toda a minha vida.

— Depois que eu a deixei, segui para minha casa. Estava feliz, andando devagar, distraído com meus sonhos, quando de repente, não sei de onde, senti um baque na traseira do meu Fusca. Olhei para o retrovisor e a caminhonete, com os faróis até então desligados, empurrava meu carro para frente. Tentei manter o volante firme, porém sem êxito. Ele acendeu o farol alto, cegando-me. No impacto forte, acho que o eixo do volante travou, pois não consegui esterçar para lado nenhum. Fui empurrado para fora da cidade. Reconheci o lugar para onde ele me levava. Era um terreno de chácaras que estava sendo posto à venda. A poeira levantada pela terra vermelha cobria o para-brisa. Sabia o que ele pretendia. Ele desencostou a caminhonete do meu para-choque e acelerou, fazendo uma curva larga, bloqueando a minha frente.

Um de seus amigos dirigia a caminhonete. Ele saltou da porta do passageiro e veio feito louco em minha direção. Mal consegui sair de dentro do carro, mas nem precisei. Ele socou meu rosto antes que eu pudesse me defender. Inclinei o corpo para o lado do passageiro fugindo dos golpes certeiros. Seus amigos riam do lado de fora. Enquanto suas mãos me acertavam, um colar com um pingente balançava em seu pescoço. Puxei-o com força, machucando-o. Acho que desmaiei. Acordei quando senti a água fria tocar minha pele. Abri os olhos e vi minhas mãos amarradas firmes no volante. Meu carro está nessa lagoa até hoje.

Fiquei chocada com seu relato, sem entender o que ele estava me dizendo. Quando perguntei como ele conseguiu escapar, ouvi meu irmão, contornando a mangueira do lado oposto ao dele, chamando-me aos berros:

— Ei, Gi! Com quem você está falando? — perguntou olhando para mim, curioso. — O pai chamando.

Olhei para o lado onde o rapaz se sentara e não havia ninguém ali. Virei, espantada, para o meu irmão, que ficava me perguntado se eu estava bem. Não conseguia responder. Algo no meio da lagoa chamou minha atenção e lá estava ele, flutuando sobre a água, como a me indicar onde seu carro havia sido jogado. Gritei a plenos pulmões e corri até a casa, com meu irmão no meu encalço.

Contei para todos, que me ouviram fascinados. Mamãe achou que eu devia ter cochilado e sonhado tudo aquilo. Dei um escândalo e fiz meu pai prometer que iria até a polícia pedir que drenassem a lagoa, ou mandassem alguém do corpo de bombeiros vistoriar o ponto exato onde vi o rapaz pela última vez. A contragosto, papai prometeu. Assim que cheguei em casa, fui para o computador pesquisar pessoas desaparecidas. Para minha surpresa, vi a foto dele. Estava encostado em seu Fusca verde, com os braços cruzados, abaixo de uma legenda. Usava uma calça jeans e uma camiseta com a manga enrolada. Sorria para a câmera. Talvez o seu último sorriso. A reportagem datava de vinte anos atrás. A namorada, Stela, dizia que achava que ele havia ido embora procurar trabalho em algum lugar para que pudessem ficar juntos. Contudo os meses viraram anos e ele nunca voltou. A polícia buscou por ele, mas ninguém, nem seus parentes, souberam mais do seu paradeiro.

Papai cumpriu a promessa que me fez. Acionou seus amigos maçons e conseguiu que os bombeiros fossem até à lagoa. Lá estavam seus ossos, em roupas desgastadas, flutuando dentro do carro. A corrente que ele me disse que havia arrancado do pescoço do assassino estava entre a falange de seus dedos. Mas nenhum inquérito seria instaurado, pois o crime havia prescrito. Entretanto, saber que o nome do assassino encontrava-se gravado na placa de ouro do pingente, pendurado na corrente, fez com que a cidade inteira soubesse o que ele fez.

Stela, depois de perder contato com o rapaz, casou-se com outro. Havia lágrimas em seus olhos quando a família sepultou seus restos mortais, dando-lhe o descanso merecido. Nunca mais o vi, depois daquela experiência. Talvez o fato de me sentir triste tenha contribuído para ele aparecer para mim naquela lagoa. Sinto-me grata por tê-lo ajudado a, finalmente, encontrar a paz.

13 de Março de 2023 às 20:47 4 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

Amanda Kraft Participo com mais de cem contos em diversas antologias de várias editoras. Livros lançados: Somente eu sei a verdade; Traição; Uma Segunda Chance; A Noiva da Neblina e o Segredo de Lara pela buenovela.com e também contos e livros inéditos na Amazon kindle.

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LF LEIDE FREITAS
Adorei a história. Enquanto lia, pensava que o rapaz fosse um ser encantado da lagoa, mas a história tomou outra direção. Parabéns pelo excelente conto.
March 14, 2023, 17:07

Norberto Silva Norberto Silva
Adorei a história. Concordo que o motivo da Gi ter brigado com o namorado foi algo exacerbado, mas sei como são as coisas quando o ciúme fala mais forte. Quando o rapaz pareceu ter surgido do lado da moça já brilhou um alerta aqui e conforme a narrativa avançava perfeitamente, eu saquei o que estava por vir e, preciso dizer, você mandou bem demais no momento da revelação e no final, ao mostrar os eventos posteriores ao descobrimento do corpo. Meus parabéns!
March 14, 2023, 14:06

  • Amanda Kraft Amanda Kraft
    Mto obrigada. É sempre um prazer ter um conto lido e comentado por você. E sim. Mulheres ciumentas são fogo! March 14, 2023, 18:33
~