O calor estonteante queimava as plantações das terras desérticas do reino de Godo. A cada grão de poeira que o vento varria, uma gota de água a menos brotava no poço de Carlos Pé D’água. Eram tempos difíceis, mas Carlos não admitia submeter-se às vontades da natureza, tinha esperança de que tudo poderia mudar um dia e que tempos prósperos estariam por vir. No fundo do poço, na frente da casa, um balde de madeira batia em um pequeno fio de água, apenas para ressoar o barulho molhado de esperança.
— Secou de vez! — Disse sua mulher.
— Acalma-te Maria, ei de buscar água no riacho Longo, creio que lá a água ainda corre. —Disse Carlos pondo alguns jarros e baldes na velha carroça.
— O Tico não vai aguentar a viagem, ele está fraco, com fome e com sede. —Maria afagava a cabeça arqueada do cavalo esquelético amarrado a carroça.
— Ele vai se animar, logo vai sentir o cheiro da água do riacho. — Apesar de otimista, Carlos não mudava a feição moribunda.
Um tempo depois, Carlos e Tico enfrentavam a estrada com uma lentidão de dar dó. Logo a frente, após passar um grande rochedo, o cavalo Tico deu um relincho, tonteou e caiu no chão esbaforido. Carlos levantou-se penosamente e vendo o estado do animal, todo seu otimismo fraco sucumbiu de vez.
— Pobre animal, terei de sacrificá-lo? — Disse Carlos vendo a pata quebrada de Tico, que se torcia de dor no chão.
O homem desceu da carroça e se prostrou diante do bicho que arfava agonizando. Olhou para a pata quebrada e viu no chão, logo atrás, uma pequena protuberância prateada brilhando a luz do ardente sol, parecia algum objeto ornado com pequenos rubis. Ele engatinhou no chão empoeirado da estrada e começou a escavar ao redor do objeto. Após seus dedos começarem doer por conta terra seca, fez um último esforço e conseguiu retirar uma garrafa com uma rolha prateada na ponta, estava cheia de água.
Com uma certa dificuldade abriu a garrafa, cheirou para ver se não era cachaça, ficou um pouco decepcionado ao perceber que era só água mesmo. Deu um único gole e algo fantástico aconteceu, suas forças pareciam ter voltado como um milagre e sua sede havia sido saciada. Ele deu uma olhada na garrafa tentando achar alguma coisa escrita ou algo do gênero, mas ela era lisa, simples, apenas a rolha era prateada e com rubis.
O pobre Tico deu um gemido e mexeu a cabeça, parecia ter sentido o cheiro da água. Carlos trambalhou às pressas até o animal e lhe deu um único gole. O animal pôs-se em pé, as costelas antes aparentes de Tico, agora não eram mais visíveis, seus músculos haviam crescido novamente, seu pelo estava brilhoso e sua pata estava milagrosamente curada.
A carroça voava pela estrada de chão, levantando poeira e arremessando pedras para todo lado, Carlos Pé D’água gritava de alegria em cima dela. Maria ao ver a algazarra aproximando-se com rapidez da casa, largou a vassoura de palha e saiu porta afora. Carlos pulou da carroça e correu até Maria dando-lhe um beijo, que não estava entendo nada, sem demora deu-lhe um gole da água mágica e ela parecia rejuvenescer-se diante dos olhos de Carlos. Ele disse não saber do que se tratava, mas que aquilo era fantástico e só podia ser um presente dos deuses.
Os dois pulavam e dançavam cantarolando, celebrando a descoberta da água milagrosa. Abriram uma das três garrafas de vinho que guardavam a anos para uma ocasião especial, festejaram e embriagaram-se, fazendo planos, imaginando o que poderiam fazer com a garrafa e sua magia. Foi quando, em um dos voluptuosos movimentos de êxtase do casal, a garrafa de água caiu no assoalho de madeira, rolou porta a fora e caiu em cima de uma pequena pedra pontuda, espatifando-se e derramando seu precioso líquido. A água penetrou o solo e dele uma grama incrivelmente verde e várias flores brotaram, se espalhando por toda a frente da casa. Ao verem a água milagrosa desaparecer em um instante, abraçaram-se e choraram o resto do dia.
No dia seguinte Carlos estava montado na carroça com seus jarros e baldes, ele olhou para Maria tristonha e disse suas costumeiras palavras de otimismo.
— Acalma-te Maria, ao menos agora tens um belo jardim.
Despediu-se de sua amada e partiu lentamente pela estrada seca. Maria voltou-se para casa com sua vassoura em mãos, mas logo ali à frente casa, sem que nenhum dos dois tivesse percebido, o balde de madeira amarrado a uma corda boiava quase todo imerso na água do poço, que havia voltado milagrosamente.
A guilda dos andróginos malvestidos se passa em universo inspirado em lendas do mundo real, mais precisamente as histórias terão como cenário a ilha de Hy-Brasil, uma ilha fantástica que existiu apenas nos mapas das grandes navegações. Uma mistura de histórias medievais, lendas irlandesas (e da Europa em geral) e brasileiras, tendo sempre um tom satírico e bem humorado. Leia mais sobre A guilda dos andróginos malvestidos.
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