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IDYLLIO RUSTICO


A Fialho d'Almeida.

Quando atravessou a povoação, rua abaixo, com o rebanho atraz d'elle, era ainda muito cedo. Ao longo das ruas tortuosas, as portas conservavam-se fechadas, e não vinha das habitações o mais insignificante ruido. Dormia-se a somno solto por todas aquellas casas. Apenas algum cão, subitamente acordado em sobresalto pelo chocalhar do rebanho, ladrava do alto dos escadorios de pedra onde ficara de sentinella, ou de dentro das curraladas, onde levara a noite fazendo companhia aos novilhos. D'onde em onde, gallos madrugadores entoavam matinas sonoras, que eram como risadas vibrantes de bohemios, n'alguma esturdia, a deshoras...

Mas passadas as ultimas casas, o silencio condensava-se para toda a banda, n'uma grande pacificação de templo adormecido. Nem viv'alma pela ladeira que levava ao rio, por um caminho em zig-zags. Fulgiam no céo [2]azul-escuro cardumes prateados de estrellas. A toda a largura, a paizagem era torva e indecisa, immersa n'uma luz muito mortiça que nem era bem a da madrugada, nem era bem a da noite. No emtanto a manhã era calma; nem rumores de briza pela rama das azinheiras velhas que faziam guarda ao corrego por onde o rebanho tomara. Cigarras, grillos nas hervagens, rãs que coaxavam nas regueiras, era o mais que se ouvia acima do rumor brando dos chocalhos. Nem um balido de ovelha em todo o rebanho que se ia submissamente á mercê do pequeno pastor, parando se elle parava a colher as amoras frescas dos silvados, recomeçando marcha se de novo elle se punha a caminhar.

Quando passou rente ao meloal da fidalga, ouviu-se o ruido de um tiro, que o echo levou para longe.

―Não gastes polvora, Antonio!―recommendou o pastor.―Ouviste?

E logo a voz do guardador:

―Madrugas hoje, Gonçalo!

―P'ra que saibas: cá um homem não tem medo.

―Está bem. Adeus!

―Saudinha.

A esse tempo ia-se já definindo a manhã, na luz, no som, na côr. Invadia a amplidão da cupula celeste uma tinta alvacenta, onde as estrellas feneciam no seu brilho. Ao alto, na ladeira d'além, entravam de fazer-se nitidas as linhas sinuosas das cristas, onde enormes rochedos tinham altitudes de uma immobilidade mysteriosa e sinistra... [3]N'este assomo d'alvorada, as coisas iam despertando lentamente para a alacridade vigorosa da luz. Das moitas e sebes, calhandras era bandos levantavam-se repentinamente, em vôo perpendicular, e cortavam ares fóra, chilreantes e alegres, até se perderem de vista por de traz dos arvoredos e cabeços. De cauda em riste e orelhas immoveis, o rafeiro espreitava as hervagens seccas, onde algum reptil passasse vagaroso.

―Busca, Turco!―fazia-lhe o Gonçalo que tinha medo ás cobras.―Busca, valente!

Á medida que descia a ladeira, um marulhar monotono de aguas ouvia-se, mais e mais distincto. Era o rio que parecia perto; mas primeiro que lá se chegasse ainda era preciso andar... Era um poder de passos e de paciencia,―reflectia o pastor, a quem aborreciam de morte os interminaveis torcicollos da vereda. Ia andando, descendo sempre, á frente do rebanho silencioso. E quando os sapatos começaram de calcar areia, e ali, perto, o rio lampejava, sob aquelle céo ainda estrellado, o Gonçalo desabafou:

―Uff! até que emfim!―E pensava aliviado:―Nada mais facil do que terem-me sahido os lobos!...

Mas vista áquella hora, e no meio de tal silencio, a corrente liquida tinha o que quer que fosse de sinistro, que evocava lembranças aterradoras, espectros dos que ali mesmo tinham morrido afogados, n'uma lucta desesperada com as aguas, clamando em vão que lhes acudissem, em tamanho transe afflictivo. A margem de lá, especialmente, era toda accidentada de rochedos informes, blocos medonhos, por entre os quaes no inverno o vento assobiava lugubre, e as aguas faziam remoinho, o que era um perigo para os pobres barcos que se aventurassem [4]incautos, n'um descuido involuntario―simples remadela pouco a tempo, manobra menos segura de leme, ou impulso errado de vara.

E então, cabeços enormes d'um lado e d'outro, projectando sobre o largo leito do rio a sua sombra pesada e desconforme, que mais triste fazia o sitio e parece que mais solitario, pois fechavam-no bruscamente, fazendo limitada a paizagem.

A todo o comprimento da margem, o rebanho pôz-se então a beber manso e manso, e sem o minimo ruido.

Foi quando o Gonçalo acabou de se convencer que na margem de lá, um pouco mais abaixo, outro rebanho bebia tambem.

―Táte, Gonçalo! Aquella chocalhada...

E immovel, remordendo o labio, com o ouvido á escuta, pensava:

―Ora se será ella?...

Subito, estremeceu. Ante o seu espirito infantil perpassou, como um clarão de relampago, a imagem de uma rapariga, pastora como elle, com quem se havia encontrado mais vezes, mas que havia muito não vira.

―Ai, se fosse a Rosaria!... dizia comsigo.

E impondo silencio ao rebanho, que acabara de beber, pôz-se attentamente á escuta do tilintar dos chocalhos na margem opposta.

[5]«O rebanho parecia o mesmo, lá isso... Agora o pastor é que podia ser outro que não a Rosaria...»

Senão quando, uma ideia lhe acudiu que o fez sorrir de contente. Atirou ao chão a manta e o marmeleiro, e puxando para deante o bornal, feito da pelle de uma ovelha branca, morta pelas segadas, tirou de lá a sua flauta e pôz-se a tocar apressadamente um trecho de cantiga rustica.

No mesmo instante, uma voz muito sonora gritou-lhe:

―Ehlà, Gonçalo, és?

O pastor desatou a rir.

―Uhlá, Rosaria, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona!

E logo a voz fresca da rapariga lembrou:

―Não te esqueceu a moda, rapaz!

―Isso esquece ella!... Ouviste, Rosaria?―Se outra fosse que m'a tivesse ensinado...

N'este meio tempo já o Gonçalo retomara a manta e o marmeleiro para ir ter com a Rosaria. Mas primeiro perguntou:

―Boto pela ponte, ou és tu que vens, ó cachopa?

―Vem tu d'ahi. Por cá sempre é outra coisa p'r'as ovelhas. Han?

―Basta!

[6]E dando o signal da partida, o Gonçalo pôz-se em marcha. D'ahi a pouco, entrava mais o rebanho pela velha ponte moirisca, toda severa de construcção nos seus tres arcos lançados sem elegancia, atufados de parasitas seculares que a faziam pittoresca, heras, silvas, ortigas bravas.

A meio da ponte, mão piedosa fizera construir pequeno oratorio ao Senhor Salvador, cujo rosto sereno, espreitando por grades de arame, diziam dar coragem a barqueiros e almocreves, que ante o pequeno e humilde nicho com respeito se descobrissem, e com devoção rezassem uma velha prece que era como um talisman precioso para livrar de maiores desgraças―naufragios no rio, e então maus encontros por aquelles caminhos escabrosos, que eram um perigo constante para homens e animaes.

D'ahi a pouco, as duas creanças estavam perto uma da outra, cada qual seguida do seu rebanho.

―Ora viva a Rosaria!―disse o pastor muito alegre, parando defronte da cachopa.

―Bons dias, Gonçalo; então que ventos?

Entre os dois travou-se então um longo dialogo em que se contaram tudo o que haviam feito desde aquelle dia em que ambos tinham voltado juntos da feira dos Caniços.

―Por signal que nem rez se vendeu!―lembrou o Gonçalo.

―Por signal!―disse com pena a Rosaria.

[7]Mas elle contou que viera por ali muitas vezes, muitas, sempre na fé que a encontrava. «Vêl-a agora, só por milagre de santo; quem o havia de sonhar! Nanja elle...»

―Mas se eu estive tão doente!―volveu triste a Rosaria.

E como o outro acudiu a informar-se, ella explicou:

―Umas quartãs que me tiveram mondada! A peste as mate! Febre que era mesmo lume desde manhã até ao escurecer... Uma assim!

E na sua ingenuidade infantil, contou ao Gonçalo que muitas vezes, na febre, sonhara com elle, que se encontravam os dois por montes e prados, como agora tinha acontecido, «tal e qual».

―Assim te Deus salve, ó Rosaria?―atalhou rapido o pastor, a quem enchiam de orgulho os sonhos d'aquella pequena amiga.

―Assim; pois que duvida?―tornou-lhe confiada a Rosaria.

―Não!―disse agastado o Gonçalo.―Não has-de dizer assim... Diz certo, has-de jurar direito.

―Pois assim me Deus salve...

―Como é verdade...―Diz tudo, Rosaria!―supplicava o pastor.

―Sim, volveu-lhe paciente a companheira,―como é verdade que sonhava que nos encontravamos―concluiu por fim, muito risonha.

[8]E sem disfarçar o jubilo, prestes o Gonçalo a certificou de que tambem não a esquecera. «Tanto é que tirava da frauta as cantigas todas que ella lhe tinha ensinado.»

―Lembras-te?

A Rosaria faz que sim com a cabeça. E logo, batendo na frauta de sabugueiro, o pastor apressou-se a declarar:

―Sahem d'aqui sem falhar uma.―E resoluto:―Vá feito, Rosaria, pede por bocca!

A Rosaria pediu então a Pastorinha.

―Eu é da que mais gosto,―explicou.―É a mais linda.

―E é!―concordou o Gonçalo.―Ora escuta lá.

E levando aos labios a avena, pôz-se a tocar a Pastorinha, emquanto a Rosaria, com a sua vozita em surdina, entrava a tempo com a lettra:

Onde vás, ó Pastorinha,
Ai-li, ai-li, ai-li, ai-lé...

―Sabes essa! É mesmo assim!―disse-lhe a Rosaria a rir-se.

―É como vês!―affirmou contente o Gonçalo.

Aos seus pés tinham-se deitado os rafeiros, e já os dois rebanhos, confundidos, andavam na pastagem.

―Olha as ovelhas juntas!―notou o Gonçalo.

[9]―Tambem nós nos quedámos juntos,―volveu-lhe a pequena, sorrindo.―As pobres dão-se bem, são amigas...―continuou com jubilo.

―E nós tambem, ora tambem, Rosaria?

―Tambem―respondeu afoita a pastora.

E foram-se ter conta no rebanho, que choviam as coimas e as denuncias.




A esse tempo, no céo alto e lavado a estrella d'alva fenecera por fim, e o horisonte começava de carminar-se ao de leve. Por todo o céo em cupula, a luz fresca e viva da manhã vibrava harmonias extranhas que iam despertar tudo, a côr da paizagem e a musica dos ninhos, cantigas de perdizes e rumor de gente por moinhos e atalhos. Manhã de verão, serena, tranquilla, dulcissima. Ia pelo ar um movimento extraordinario de azas―passarada alegre que sahia agora dos ninhos e voava a matar a sêde á borda das ribeiras, andorinhas que deixavam as suas casinholas em reconcavos de rocha e tomavam para hortejos convisinhos onde a vegetação era mais rica de seiva e mais facil a presa dos insectos, perdizes gralhadoras que iam de monte em monte, tordos, poupas, melros. Nos vinhedos das encostas, por entre os renques verdejantes, gente em mangas de camisa ia fazendo as vindimas. Pelos caminhos, em torcicóllos, viam-se os que desciam aos moinhos, tangendo machos carregados de taleigos, e berrando-lhes cada chó! que se ouvia na outra ladeira. Já nas povoações proximas sinos chamavam para a missa d'alva ou tocavam a Ave-Marias. Nas quintas e casas fumegavam os tectos, dizendo [10]horas de almoço. De modo que o sol quando rompeu, solemne e triumphante no céo immaculado, encontrou muita vida pelos campos, toda a natureza acordada para a labuta interminavel do dia. N'uma clareira elevada, dominando o rio e um trecho de paizagem para sul, tinham-se sentado os dois pastores e continuavam conversa.

Ao pastor parecia-lhe agora mais bonita a pequena amiga, com a sua côr trigueira levemente pallida desde que tivera as maleitas. Não se lembrava com que santa que elle tinha visto se lhe parecia agora a Rosaria...

―Mas o cabello assim cortado...―disse com magua, mirando-lhe a cabeça nua, e passando a mão pela d'elle,―é que te não fica bem!

«Melhor fôra que lhe tivessem deixado as tranças. Negras, de mais a mais, que era como elle gostava...»

―Promessa da mãe se eu melhorasse―explicou a Rosaria―Lembranças... A gente quando está afflicta...

―...Quando está afflicta...―repetiu como um echo o pequeno. E depois, amuado:―Se promette os olhos...

A rapariga fitou-o, espantada.

―...é porque t'os tirava!―concluiu convicto.

Houve um momento de silencio, em que o Gonçalo se pôz a escavar o chão com uma pedra, e a Rosaria a torcer um fio saliente do seu vestido grosseiro. Ouviam-se as ovelhas chocalhando nas pastagens, ia a passar na rodeira, longe, um carro que chiava, com uvas para algum lagar.

[11]―Não fallas, Rosaria?―perguntou o pastor sem levantar os olhos para ella.

―Tambem tu...―começou com medo a pequena,―logo te zangas! Olhem a lembrança dos olhos! Se a mãe fazia isso, credo!―E depois animando-se:―Já foste á Senhora dos Remedios?

O Gonçalo fez signal que não tinha ido.

―Pois foi lá que deixámos as tranças, eu mais a mãe. N'um prego ao lado do altar, um lacinho verde nas pontas. Ficou lindo.

O pastor teve um movimento de enfado, não lhe agradava a conversa. E para acabar com ella:

―Que emfim como melhoraste...―fez que concordava, pondo o bilro a girar.―Olha como dança...―E depois, mais pensativo, batendo com o bilro nos dentes:

―Que ás vezes as promessas pouco fazem...―E interrompendo:―Sabes quem fez este bilro?

―Foste tu, aposto.

Bateu no peito e fez com a cabeça que sim, mostrando-lh'o orgulhoso―«que visse os torneados.» Depois continuou:

―Vae uma pessoa andando e os santos não se importam. Ora, os santos!―Olha a minha Joaquina, tu não conheceste. A gente bem resou e bem promessas fez, mas ella foi-se.

[12]E pondo-se de joelhos, começou a procurar pelo rebanho.

―Aquella ovelha, a branca, não vês? A que se vae agora deitar... Pois era p'ra Nossa Senhora, repara que é a melhor.―E deitando-se para traz:―Lá anda ella a pastar!―concluiu desalentado.

―Mas tinha de ser,―volveu-lhe triste a Rosaria,―que as promessas sempre fazem, lá isso...

E convicta, a pequena contou casos acontecidos para convencer o Gonçalo de que sempre valiam as promessas. No emtanto, deitado de costas, com a jaqueta a fazer de travesseiro, as pernas em angulo tocando-se com os joelhos, o Gonçalo soprava pela palha o bugalhinho que constantemente ia subindo e descendo, acompanhado pelo olhar bondoso do cão que ali perto se deixara estar sentado. E contando, contando casos, a Rosaria ia entretendo o pastor. Mas quando ella fazia pausa, logo o rapaz acudia, firme na sua objecção:

―Ora! mas a nossa Joaquina morreu-se! Coitadinha da Joaquina!




Á medida que o sol ia subindo, no céo glorioso e fulvo, iam os dois conduzindo as ovelhas para sitios mais ensombrados, para se livrarem da estiagem que ia valente. Calor de rachar, ali por volta do meio dia, que foi quando tomaram para a banda das azinheiras, e para os pinheiraes, depois. E sempre ao lado um do outro, os dois companheiros levaram de conversa quasi o dia inteiro. Nunca tinham dado fé que as horas passassem tão depressa. [13]Ainda armaram aos passaros, mas foi o mesmo que nada, os demonios andavam espantados e já conheciam as esparrellas.

―Olha lá não caiam,―tinha dito o Gonçalo, já cançado de estar á espreita, agachado, com o fio da armadilha preso ao dedo.―Se elles fossem tolos...

E foi-se a recolher as esparrellas, dando ao demonio os passaros. Ella então propoz que jogassem a pocinha.

―E o fito, ó Rosaria? Sabes jogar ao fito? No adro, aos domingos de tarde, bato-me com qualquer, sabias?

E generoso:―Mas a ti dou te partido: vinte e cinco ás quarenta...

Como o tempo rendia, jogaram tudo―a pocinha, o fito, as necas, a bilharda. Na bilharda, como o rafeiro trazia á mão, era elle que ia buscar o pausinho, quando zinia longe.

―Turco, traz cá!




No emtamto, ia descaindo a tarde. Ao alto, o largo céo esmorecia no seu azul suavissimo. Em todo o espaço o ar estava tranquillo e sereno, e já começava para poente a decoração phantastica do occaso. Parece que se ouvia mais distincto o marulhar das aguas no rio; já não faiscava assim tão viva a areia branca das margens.

Foi quando o Gonçalo lembrou que era melhor irem-se chegando, mais as ovelhas, para as terras onde tinham de [14]pernoitar. E fitando fixamente os olhos negros da Rosaria, disse-lhe assim:

―Mas olha o que prometteste... Inda vaes feita no que disseste?

«Ora que lhe custava a ella! Já que as ovelhas tinham andado juntas todo o santo dia, que mais era que dormissem no mesmo curral, essa noite?»

―E o mais, ó Rosaria?―perguntou de novo com interesse.

A pequena ficou perplexa. Mas como o pastor não cessava de a olhar, respondeu:

―Tambem.―E sorriu-se.―Pois eu...

Só depois d'esta segunda promessa o Gonçalo se levantou, e deu o signal de partida, assobiando aos cães.

D'ahi a pouco, estavam de marcha para o curral, Quando passavam a velha ponte, a obliquidade dos raios do sol fazia alongar desmedidamente pelo areal a sombra dos tres arcos. Nas rugas da corrente, uma luz alaranjada tremeluzia, tirando á agua a sua translucidez normal.

―É bonito!―fez notar o pastor.

A Rosaria explicou logo:

―São as moiras a caçar com redes d'oiro, sabias?

Para a outra banda, um pouco mais abaixo, assomavam á flôr da corrente as cabeças dos dois rapazotes do moleiro. Dentro da chata que vogava serenamente, a mãe [15]com o mais novito ao collo não os perdia de vista, emquanto o pae, em mangas de camisa, de pé n'um topo de fraga, lhes ia ensinando as manobras. Ao fundo, tres vitellas passavam o rio a vau, muito devagar, parando a espaços, alongando o pescoço para a veia d'agua serena, bebendo mansamente. Sobre o vitello das malhas brancas, o guardador cantarolava, acenando com o chapeu ao moleiro―«boas tardes! boas tardes!» Ao sahir da ponte, o rebanho teve de se affastar um pouco do caminho: aproximava-se um almocreve com a longa fila de machos carregados, tilintando campainhas.

―Adeus pequenos! cumprimentou.

―Venha com Deus!―tornaram-lhe ambos.

E de novo se pozeram em marcha. As ovelhas continuavam confundidas, confraternisavam os cães como bons e leaes amigos. Á frente, o Gonçalo ia tocando na flauta o mesmo que a Rosaria cantava. O brando rumor dos chocalhos, que se levantava de todo o rebanho, casava-se com a musica, fundindo-se n'uma nota subtil, d'um pittoresco ingenuo de ballada...

Até que chegaram a um topo de serra, escurentado de matagal rasteiro, e então, parando um momento, o Gonçalo perguntou, collocando na sua frente a Rosaria, e pondo-lhe á cara a flauta, na direcção em que devia olhar.

―Vês além... n'este direito? Rez-vez do castanheiro, não enxergas?

A outra fez que sim com um gesto, e interrogou:

―Então é ali?

[16]―Ali mesmo―volveu-lhe já de marcha.

E repoisando a mão direita sobre o hombro esquerdo da rapariga, repetiu-lhe muito contente:

―É mesmo além.

N'uma terra de restolho, um largo quadrado de cancellas marcava o espaço que as ovelhas tinham de occupar essa noite.

―Falta pouco; a gente vae pelo atalho que é só mau p'ra quem passa a cavallo.

E como elle ia expansivo, e a companheira não dava palavra, quiz então saber:

―Estás triste, ó Rosaria?

―Triste... não. Já agora... tem de ser―volveu-lhe cabisbaixa.

―Huum! Arrependeu-se...―volveu comsigo o pastor.




Até que por fim chegaram, tinha anoitecido havia instantes. Gado para dentro e toca a merendar; o que era d'um era d'outro: elle ainda trazia azeitonas, um naco de queijo, pão. Mal acabaram de comer, o Gonçalo apontou para a cabana que ficava alli perto, e propoz que se deitassem: estavam moídos da soalheira de todo o dia e da caminhada agora.

[17]Quando o Gonçalo e a Rosaria entraram na cabana e se deitaram sobre o colmo, cobrindo-se com as mantas, e achegando para a cabeça um do outro os bornaes que faziam de travesseiro, cerrára de todo a noite, e formigueiros de estrellas scintillavam vivezas de prata polida no azul indefinido do céo.

―E os lobos?―perguntou a Rosaria com medo.

―Não ha perigo―tranquilisou-a o Gonçalo.―Isso é lá com os cães.




Pouco a pouco, foi-se extinguindo no curral a musica triste dos chocalhos. A ladrar, os cães faziam echo. O rebanho devia dormir profundamente, immerso no mesmo somno em que jazia prostrada toda a Natureza, ao largo. Dentro da cabana, os dois conversaram algum tempo, n'um ciciar brando de vozes, até que por fim, vencidos da fadiga, se deixaram adormecer,―quando a historia das moiras encantadas ia no seu melhor episodio...

E lá no alto céo, mesmo sobre a cabana, a estrella da tarde não era nem mais pura nem mais luminosa do que a alma simples e boa d'aquellas duas creanças...

Quando ao repontar da manhã se levantaram, e sahiram a vêr o céo...

―Bonito dia, Gonçalo!

―Bonito dia, Rosaria! Olha...

...na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas iam voando... voando...



SULTÃO

(Copiado do Natural)


Ao meu Henrique e a Beldemonio, seu amigo.

I


Ao cair da tarde, o Thomé da Eira entrava em casa, cançado, esfalfado de andar um dia inteiro a mourejar no campo.

―Meus peccados, boa tarde!―dizia elle para a mulher, com um sorriso a affectar seriedade.

Vinha logo o pequeno, o Manuel, de mãos postas pedindo-lhe a benção.

―Deus te abençoe.

―Pae, olhe que o «Sultão»... ia a dizer o pequeno.

―Bem sei! atalhava logo o Thomé.―O «Sultão» é um maroto e tu és outro.

[20]E emquanto procurava no bolso da jaqueta a sua bella navalha de meia-lua, que lhe custara um pinto havia bons quinze annos, e abria a gaveta do pão, o Thomé punha-se a fazer de interesseiro comsigo mesmo, resmungando alto p'ra que a mulher o ouvisse:

―É que por este caminho não tenho um dia descançado... Nem uma hora...

Vinha a mulher com as azeitonas, com o queijo, sem dar palavra.

―...Pois vamos já que já era tempo... Porque p'ra mim ha de chegar... A modos que vou já cançando...

Mas o Thomé não era homem que dissesse estas coisas de coração. Pareciam-lhe longos, interminaveis, os aborrecidos domingos que passava sem ir campos fóra, madrugador como um melro.

―Uma aquella como outra qualquer! dizia o bom do Thomé encolhendo os hombros, como quem está desgostoso com um genio assim.

Partiu uma ampla fatia, um naco de queijo muito branco, do leite da sua cabrada, e veiu sentar-se, consolado, ao fundo da larga escada de pedra que dava para a rua, arregaçado, em mangas de camisa, muito á vontade.

Costume velho do Thomé:―mal se sentava, mastigando o «boccado», dizia logo para o filho:

―Ouves, Manuel? Bota cá fóra o «Sultão».

[21]O rapazito corria o caravelho de uma pequena porta lateral, que rangia nos gonzos ao impulso dos seus bracitos roliços, e punha-se a pular de contente, dizendo cá da rua:

―«Sultão»! Sae cá p'ra fóra, «Sultão»!

No fundo negro do pequeno cortelho, na moldura rectangular da porta baixa, destacava-se então a cabecita parda de um jumento, orelhas em riste, grandes olhos de uma tristeza perpetua, n'um movimento moroso de palpebras pestanudas...

E ali se quedava parado, absorto, muito bem posto nas suas pequeninas pernas delgadas, a olhar o Thomé que o chamava,―um grande riso de alegria nas feições amorenadas, contente de ver o seu «Sultão».

Mas o pequeno jumento não avançava um passo, divertindo-se em arreliar o Thomé, fitando-o com um ar estagnado. Altivo na sua nobre linha de quadrupede de boa raça, alguem lhe poderia lêr no olhar, mole e impassivel, o frio, gelado despreso a que parecia votar o dono...

Mas era áquillo mesmo que o bom do lavrador achava graça. E punha-se então a fallar muito serio, entre resignado e cortez, para o pequeno e desdenhoso jumento―o pão e o queijo esquecidos n'uma das mãos, na outra a navalha de meia-lua:

―Então, «Sultão», não vens?

―Não! parecia responder-lhe o animal. E abstracto, continuava a envolvel-o no seu olhar profundo. A quebrar a harmonia d'aquella immobilidade de estatua, apenas [22]de quando em quando uma pequenina patada na soleira, zap!

―Zangado, «Sultão»? perguntava o lavrador.―De mal comigo?

E prestes voltava a cara para a outra banda, para se rir á vontade...―que não fosse vel-o o «Sultão»... Mettia entre dentes um pedacito de queijo, logo uma codea de pão, e fazendo umas grandes rugas na testa, de quem começa a zangar-se, voltava-se então muito serio:

―Ficas ahi, «Sultão»? Já não és meu amigo?

O gerico abatia um pouco as orelhas, inclinava o pescoço, parece que fazendo-se humilde...

―Então se és, anda d'ahi. Olha...―E mostrava um pedacito de pão.―P'ra ti se vieres...

O «Sultão» dava tres passos, e ficava fóra do cortelho. E por se vingar, o Thomé carregava o semblante n'uma seriedade muito pesada, e erguendo o rosto iracundo chamava-lhe interesseiro, maroto, affirmando que já lhe não dava o pão. E desfechando-lhe emfim a ameaça de o vender a um cigano, entrava a tratal-o por senhor―sôr «Sultão»...

Mas o pequeno jumento ia andando muito devagar... andando... orelhas baixas, pescoço cahido, a modo de arrependido, parece que pedindo perdão da arrelia.

Nervoso, sapateando, o Thomé voltava a cara para a outra banda, a rir como um perdido.

―Diabo do gerico! diabo do ratão! Capaz é elle de [23]fazer rir as pedras, o mariola!―E tossia de engasgado, uma migalhita de queijo na guela.

No emtanto, o «Sultão» ia avançando, muito ronceiro, até que tocava com o focinho, levemente, nos joelhos do lavrador. O Thomé sacudia-o:

―Sae-te p'ra lá! dizia elle muito amuado, sem se voltar.―Cuidas talvez que te não conheço, cuidas? Já te não quero, vae-te!

Mas como que irreflectidamente, fingindo não querer, chegava-lhe ao focinho um pedacito do pão, o melhor da fatia. «Sultão» lançava um olhar obliquo, entre surrateiro e medroso, levantava cautelosamente o beiço superior, a tremer, e roubava-lh'o da mão.

Pazes feitas! Era então rir a perder, n'umas casquinadas agudas, muito estridulas.

―Credo, homem! dizia de cima, da janella, a sr.a Josefa.―Até pareces doido!

―Você assim rouba seu dono? Diga! Você assim rouba seu dono? perguntava o Thomé, n'uns grandes gestos.―Vamos que eu lhe não queria dar da merenda? Ladrão, de mais a mais!... Ora bem! agora brinque.

Era precisamente o que o Thomé queria:―ver o «Sultão» a brincar.

...Nada, com effeito, meus amigos, que mais divertisse o bom do lavrador, e melhor o indemnizasse d'aquellas fainas laboriosas que lhe consummiam os dias, imperturbavelmente, perpetuamente, sob soes causticantes e chuvas torrenciaes.

[24]Por isso, era de ver como elle ria, com uma boa vontade deliciosa, das «partidas» e «diabruras» do «Sultão»! Ás vezes, o pequeno jumento, ferido não sei por que vespa invisivel, despedia sem mais nem menos n'uma carreira aberta, focinho entre as pernas deanteiras, agitando a cauda, por aquella rua fóra. Rompia de toda a banda n'um alarido o rancho pacifico das galinhas, que já no ar andavam como doidas, cacarejando, como se um pé de vento as levasse. Accudia gente aos postigos, ás portas, ás janellas, a ver a polvorosa; e subito se inundava a rua de rapazes, rotos, descalços, alguns quasi nús, correndo atraz do burro, gritando-lhe, acenando-lhe, espantando-o―como se o mesmo vento de folia os houvesse varrido a todos, varrendo a propria rua... E um lá ia a terra, e sobre esse passavam os outros, e sobre todos voava o «Sultão», apupado, perseguido, acclamado, na malta espavorida dos inimigos...

―«Sultão»! eh lá! «Sultão»!

Subito, como se lhe estalasse a corda, o animal estacava, e logo de volta d'elle postava-se a rapaziada, mas n'um alor de nova fuga, não lhe desse na bôlha atacal-os... E abriam alas de repente, quando elle, tomado de novo accesso, voava para as bandas do dono, que por se não deixar atropellar investia com o «Sultão» de braços abertos, o que era, já se vê, um modo de o abraçar, fingindo medo. E vinham as gargalhadas estridulas, os rogos para que pozesse treguas, as supplicas para que se accommodasse, recuando o lavrador até ao ultimo degrau da escada, onde se deixava cair,―derrotado!

―P'ra lá, «Sultão»! p'ra lá! fazia então o Thomé, oppondo-lhe os pés, desviando-o, apoiando-se nos cotovelos, muito inclinado para traz, a rir como um perdido.

[25]Então o pequeno jumento estacava, offegante. Mas prestes rompia a girandola dos coices, em que era eximio, sacudindo muito as patas, cauda no ar, muito direita, ao mesmo tempo que o Thomé solicito dava aos rapazes o aviso de se arredarem―«porque era doido, aquelle demonio»!...

Outras vezes, parece que variando de tactica, entrava de seguir muito cauteloso, n'um ronceirismo perfido, como um borrego ou como um cão, certa mulher que passava. Até que lá ia uma focinhada, e logo após os saltos do costume, respondendo com uma ameaça de pinotes á surpresa da viandante.

―Dê, tia Luiza! bata n'esse maroto! fazia de lá o Thomé, com ares de zangado. E depois, batendo o pé, pedindo que lhe dessem uma verdasca:―«Sultão»! venha já p'r'aqui! intimava.

E se encontrava um cão? Se encontrava um cão, ia logo direito a elle, muito de vagar, cauda caida, orelhas murchas, n'um cumprimento humilde de focinho. O cão regougava, desconfiado, entreabrindo a dentuça, preparando a sua dentada. Não dava o «Sultão» signaes de medo, e humilde proseguia para o outro, propondo paz. Mas ao primeiro latido, recuava um passo, espertando da sua indolencia passiva; e de espinha arqueada ganhava o terreno perdido―fitando impassivel o cão... O bruto formava então o salto, regougando forte, o pêllo eriçado; e ao investir para a primeira dentada, salvava-o de um pulo o «Sultão», evitando-o, até que por compaixão lhe dava um pequenino coice, «mais feitio que outra coisa», pondo em fuga o mastim, corrido, ganindo, vencido:

―Eh! valente! gritava-lhe então o Thomé.

[26]E com duas palmadas na anca, espantava-o emfim para o cortelho, dizendo ao correr a caravelha:

―Não ha dinheiro que te pague, assim me Deus salve!

E comido o caldo verde da ceia, nunca o Thomé da Eira ia para a cama sem primeiro descer a vêr o «Sultão»,―de candeia na mão esquerda, e na direita, contra o sovaco, a bella quarta do grão, acogulada.

Muitas vezes acontecia esquecer-se o Thomé a vel-o comer, de candeia attenta, encostado á mangedoira, sorrindo: e, de cima, a sr.a Josefa tinha de intervir então, gritando-lhe pelas frinchas do sobrado:

―Thomé, vê se te vens deitar, meu pasmado! olha que são horas.

E piamente, como fanatico, achava verosimil a lenda da burra que fallou,―historia que uma tarde, passando, o abbade lhe contara. Tanto que mais de uma vez, dando ao burro as boas-noites, extranhou com certo desgosto que o «Sultão» lhe não respondesse:

―Boas noites!




Mas o demonio, que sempre as arma, armou-lh'a tambem um dia! Foi ao cortelho, de manhã cedo, e não encontrou o burro. Ficou parvo! Poz-se a mirar, espantado, a loja que lhe pareceu enorme, e além de enorme―gelada...

[27]―Ó Josefa! Josefa! entrou de gritar da rua.―Ó Josefa!

A mulher assomou á janella, sobresaltada.

―Queres apostar que me roubaram o burro, ó mulher?!

―Que te roubaram o quê? fez a sr.a Josefa, muito attonita.

―O burro, o «Sultão»! Vem cá ver que m'o roubaram!

E como ao tempo acudira já o Manoel, em camisa, descalço, romperam todos tres na gritaria, defronte do cortelho vazio:

―Á d'el-rei! Á d'el-rei! Á d'el-rei!

Até que o regedor, que era compadre, intervindo estremunhado, poz na peugada do burro, mais dos larapios, os cabos que compareceram.

Mas em vão! Um a um foram regressando, pelo dia adeante, e desfechando ao peito abatido do Thomé a negra e vazia palavra:

―Nada!...

II


Dois annos depois. Tarde d'agosto. Ao longe, fechando o horizonte que a eira dominava, as arestas dos montes quebravam-se n'uma sombra egual, e embaciavam [28]ainda o poente as suaves, brandas pulverisações doiradas da ultima luz do sol. Riscos vermelhos de nuvens, como grandes vergas de ferro levadas ao rubro, destacavam immoveis n'um fundo verde-mar, esvaecido e meigo, raiado de listrões de uma coloração leve de laranja. Pequenos algodões transparentes, com alvuras de neve, cortavam aqui e além, alegremente, a monotonia profunda do azul. N'um deslado, sob os castanheiros proximos, surgiam os telhados da aldeia, a torre branca da igreja, as paredes caiadas da escola.

A vasta eira commum, levemente accidentada, apresentava áquella hora o aspecto tranquillo e de paz de uma grande officina em repouso. Poucas «mêdas», iam no fim as colheitas: mais uma semana, duas quando muito, e estaria tudo recolhido. Já sobre a palha das «parvas» ou ao sopé das «mêdas» altas, entre os utensilios da trilha e a creançada estridula que brincava, os da lavoura descançavam―vermelhos da soalheira intensa de todo o dia, alguns deitados, em mangas de camisa, peito nú, arregaçados os braços musculosos, n'uma prostração regalada de matilha que alfim tem a sua hora de socego, após um dia de caçada. Parecem prostrados da fadiga os proprios malhos, os trilhos, as pás, os «baleios» que levaram todo o santo dia varrendo o chão em volta das «parvas». E aqui e ali, dando uma sensação agradavel de fartura, perfilam-se os altos saccos no meio das rasas, extravasando de grão. Além, gente em mangas de camisa, ao redor de um grande montão de palha triturada, vae «limpando»―visto que sopra um «ventinho». E sente-se sobre as pás a chuva do grão, ao mesmo tempo que a palha, voando, faz monte da outra banda, e os «baleios», em mãos de mulheres, não cessam de arrebanhar o grão, varrendo em roda n'um afan... Em certo ponto, carros vasios; um além, de altissimas «angarellas», vae-se enchendo de palha; emquanto outros, atulhados de saccos, em rimas entre as cancellas [29]mais baixas, estridulamente chiando abalam para as tulhas, levados pelos bois gigantes.

Eiras além, livres dos trilhos que ficavam em cima da palha, levas de bois caminhavam vagarosamente, as largas orelhas pendentes, caudas oscilantes afagando nas ancas espaçosas o luzidio pêllo. E lá vão encosta abaixo, roçando pelos troncos asperos dos castanheiros a enorme corpolencia, fartar o largo bandulho á serena agua das ribeiras, sorvendo vagarosamente, impando a cada sorvo, pesadamente, monotonamente, parece que insaciaveis no meio da agua em que se atolam, submissa...

Ao fundo da eira, rente aos castanheiros escuros, um rancho de mulheres cantava alegremente, em côro. Acabara de ensacar-se o ultimo grão da farta colheita do Thomé da Eira.

―Colheita rica, sim senhor! vinham dizer-lhe os visinhos.―A primeira da aldeia!

―Qual? isso sim! vão vocês vêr a tulha. Muita palha, é que vocês hão de dizer, muita palha e pouco grão...

E muito azafamado, sem prosapias de maioral nem geitos de soberba, as mangas arregaçadas pelos cotovelos, O Thomé ia e vinha, dando ordens, repetindo avisos, distribuindo aqui e além as ultimas tarefas.

―Ahi vae um sacco, ó tu! É p'r'as «rabeiras». Que não fique nem um grão, ouviram? É aviar, toca a aviar! Cautela que não fique por ahi alguma coisa esquecida: essas pás, esses «baleios», tudo isso. Margarida! ó Margarida! qu'é da tua rasa? Deixa! se vae no carro está bem.

E era como um doido a metter-se no serviço de todos, [30]muito expedito, loquaz, alegre, pedindo pelas bentas almas que se não deixassem agora dormir...

―Vamos lá! vamos lá! As pás, ó tu que cantas? Deixa-me por ahi alguma, que eu depois te ensinarei, ouviste?―Que faz ahi no chão esse «rasouro», ó coisa?―Olha p'r'o que estás a fazer, tu: esses saccos que fiquem bem atados.

O criado, que ia abalar com a carrada, perguntou, já de «aguilhada» no ar, se era preciso mais alguma coisa.

―Não, pódes ir. Ouves? lá em casa que tenham a ceia a horas. Avia-te. Ouves, Francisco? Não piques os bois, a carrada é valente. A passo, deixa ir os animaes a passo. Vae-te.

Como o carro chiava, levantou a voz para dizer:

―Olha, descarrega na tulha do meio. Na tulha do meio, não ouves? Os bois para o lameiro.

Mas o Francisco apontou dois saccos que ficavam:―«seria preciso vir por elles?»

―Não vale a pena, lá irão.

E depois, para aquella gente, observou que bem sabia elle quem os levava, aquelles dois saccos...

―Com mil demonios! Apostar que vocês não adivinham?

«Elles sabiam lá?... Quem quer podia levar os dois saccos, olhem agora!»

[31]―O «Sultão», sabem? o «Sultão»! Esse é que os levava. E digo-vos então que valia o dobro a colheita, assim me Deus salve!

Alguns riram da lembrança. «Tinha graça que a scisma do animal não lhe passava nem á mão de Deus Padre!»

―A modos que isso é já mania, ó sr. Thomé?

Nisto, porém, o lavrador soltou um «oh!» de surpreza. Voltaram-se todos―«que era?» Na estrada que a eira dominava, um homem ia passando, a cavallo.

―Vocês não querem vêr, ó rapazes?! perguntou o lavrador, fazendo-se pallido.―Aquelle burro, hein? se não é o «Sultão» é o diabo por elle...

Recordaram:―«estrella malhada na testa, a mão direita branca»...

―É elle, com um milhão de diabos! não ha que vêr! E aquelle é o ladrão!

E cuspindo nas mãos, e arregaçando mais as mangas da camisa, arrancou, d'um abanão, o cabo d'uma «espalhadoura» e botou a fugir direito á estrada.

Prestes ouviu-se um berreiro, as mulheres do rancho em alarido:

―Que o mata! gritavam todas.―Ai que o mata! Acudam! Ai a desgraça! Nem a alma lhe deixa! Acudam!

Os homens deitaram a correr atraz d'elle, affluia gente de todas as bandas da eira, os cães ladravam.

[32]―Então, sr. Thomé? olhe que se perde, sr. Thomé! diziam-lhe, já agarrados a elle.―Largue o cabo, que se desgraça! Tudo se faz a bem, sr. Thomé, largue vossemecê o cabo!

―Qual bem nem qual diabo! Qual larga? Arreda! Racho-lhe as costellas, mais a vocês, se me não largam! Arreda!

E esbracejava furioso, levando-os de roldão, agarrados a elle mais ao cabo. Chegou a ferir um, os outros desanimaram por instantes.

―Vê, sr. Thomé?!

«Não via nada, não queria ver cousa nenhuma! Arreda!» E n'um rompante de ira, abrindo brecha com um «sarilho», de um pulo saltou á estrada, aos tropeções nas pedras que encontrava, mal se equilibrando.

―Abaixo! intimou.―Você é um ladrão!

―Um quê?

―Um ladrão! É meu esse burro! Hei-de matal-o aqui, seu patife! Deixem-me! larguem-me! Ha-de ahi ficar estendido, como um cão!

E no meio da malta em alvoroço, com a arreata do burro na mão esquerda, e na direita o minacissimo cacete, berrava que o deixassem, que ia tudo razo―«com seiscentos milhões de diabos!»

Seguiu-se altercação, vieram razões de parte a parte, insultos.

[33]―Já lhe disse que você é um ladrão!

―Ladrão será você!―tornou-lhe o outro já de pé, avançando de punhos cerrados.―E não m'o diga outra vez, que o racho!

Afflictas, algumas mulheres voltavam-se, de mãos postas, para a capellinha proxima, rogando o soccorro da Virgem. O lavrador entrava de tremer como varas verdes, desfigurava-o a raiva, uma saliva muito branca bordejava-lhe os cantos da bocca. Pela camisa rota, via-se-lhe já um pedaço de hombro. Tinham, alfim, conseguido arrancar-lhe o cacete, mas agora esbracejava, punhos no ar sobre aquellas cabeças em desordem.

Já, para uns certos do grupo, o homem do burro se desculpava:―«tinha-o comprado a uns ciganos, fossem lá adivinhar que o burro era roubado...»

―Vê, sr. Thomé? acudiram logo uns poucos.―O homem não tem culpa.―E gritavam-lhe aos ouvidos:―Não tem culpa! Comprou o animal na boa fé. Vês-ahi está!

―Mente! objectava incredulo o Thomé, cada vez mais irado.―Mente!

―Mente?! perguntava o outro de lá, assanhado.

―Como um judeu! cuspia-lhe da outra banda o Thomé.

De modo que para o convencerem, foi preciso afinal leval-o quasi á má cara, chamar-lhe homem de rixas, despropositado, bulhento. Elle então, abrindo os braços como se fosse para nadar, socegou um pouco, amainou,―prometteu levar aquillo com paciencia, ás boas. Chegou [34]quasi a pedir desculpa, limpando com a manga branca as bagas das camarinhas.―«Mas tinha perdido a cabeça, que lhe queriam?»

Chegou-se por fim a um accordo. «Sim, senhores, accommodava-se, mas punha uma condição: largasse elle o burro, e o burro é que havia de resolver...»

―Serve-lhe o contracto?

―Qual contracto?

―Mau! Larga-se o burro, você entende? deixa se o burro ás soltas. Depois, é p'ra onde elle fôr. Se o burro larga p'ra traz, lá p'r'as bandas d'onde você vem... Você d'onde vem?

―Dos Casaes.

―Pois ahi está. Se o burro tomar p'r'os Casaes, o burro fica seu...

―E tomando direito á aldeia, é do sr. Thomé,―concluiram alguns do grupo, conciliadores.

―Nem mais! Serve-lhe assim? Diga se lhe serve assim.

Por um desfastio, o outro concordou. Mas lá lhe parecia historia que o burro tomasse para a aldeia... Vinha de tão má vontade, que até lhe custara tiral-o de casa.

―Olhe que vae pr'os Casaes! Digo-lhe então que vae pr'os Casaes...―affirmou.

[35]―Melhor p'ra você. Mas nós veremos p'ra onde vae. Você está pelo dito?―quiz saber o Thomé.

―Sim senhor, estou! Pois que duvida tem que estou? disse-lhe o outro n'um rompante. Olhe: uma, duas, tres; ás tres largo-lhe a arreata.

Ia já a abrir a bocca para dizer―«uma!»

―Alto! fez o Thomé. Espere lá um pouco. Primeiro hei-de fazer duas festas ao animal.

E pôz-se a bater-lhe na anca, no pescoço, no peito, demorando-se um pouco a fital-o de frente, «para que o animal o conhecesse.»

―«Sultão»! gritou-lhe de repente. Eh! «Sultão»!

O burro estremeceu... Dir-se-hia que no fundo da sua memoria, a lembrança porventura adormecida d'aquelle nome despertara subitamente...

―Eh! Eh! riu-se muito satisfeito o lavrador. O burro, agora, vira-se p'ra ali. Isso. Nem é p'r'os Casaes nem p'r'o logar. Assim. Eh! Eh!

E afastou-se para o lado, aguardando.

Uma anciedade dominava n'aquelle momento os do grupo; o Thomé pôz-se a roer as unhas, nervoso...

―Então você porque espera? perguntou.

Ouviu-se logo a voz do outro, dizendo:

―Á uma!...

[36]O Thomé sentiu um calafrio; sapateava nervoso, cheio de medo, o olhar de esguelha, e entre os dentes ferrados o pollegar da mão direita...

―...ás duas!

―Ih! c'um raio!... dizia baixo o Thomé.

E sem querer, os olhos cerraram-se-lhe com força.

―...ás tres!

Foi então um barulho de palmas, um berreiro atroador de vivas e gargalhadas! O Thomé vencera: corriam todos a abraçal-o, affirmando que o caso era para foguetes.

―Viva o sr. Thomé! Viva o «Sultão»! Aquillo é que é burro!

―Aquillo é que é amigo, hão-de vocês dizer!―emendava o Thomé a rir. Tenho-os com dois pés, que não valem metade...

―Oh! sr. Thomé! protestavam alguns.

―Isto não é com vocês, mas é como quem se confessa... Está visto que não é com vocês.

E ria, ria como um perdido, emquanto, estrada fóra, o «Sultão» corria que voava, cauda no ar, corda de rastos, perdendo-se por fim lá ao fundo, na poeirada immensa da estrada, como que nimbado n'um resplendor de apotheose. E na peugada do burro, esbaforido e como doido, seguia agora o lavrador, após o fraternal abraço, pregado no dos Casaes...

[37]Quando o Thomé chegou a casa, offegante, a suar, cheio de gestos e de palavras entrecortadas de riso, já o «Sultão», relinchando, pateava á porta do antigo cortelho, n'uma grande impaciencia, um «rap-rap» continuo na soleira.

―Venham vêr! Venham cá vêr! berrava o Thomé para a vizinhança. Ó Antonio! Ó compadre! Ó Maria Engracia!

Ás janellas assomava gente, perguntando se era fogo.

―Qual fogo, nem qual carapuça! É o «Sultão», mas é! Este inimigo! Ó Josepha! Josepha! cá temos o burro, este demonio. Assoma.

Ora imaginem agora os senhores, se podem, a effusão do lavrador. Abraços? E até beijos. Aquillo era um thesoiro perdido que reapparecia alfim. A mulher, do alto da escada, benzia-se, perguntando se o seu homem teria endoidecido...

―Palavra de rei, «Sultão», palavra de rei! Anda d'ahi pelos saccos. São só dois. Ó Josepha! Ouves? p'ra cá esse garrafão que está ao pé da arca, avia-te. A caneca tambem, ouviste? Essa das riscas vermelhas, a maior.

E atirando as mãos ambas para a albarda, montou muito regalado, de um pulo.

―Ah!

A senhora Josepha assomava, ajoujada com o enorme garrafão.

―Anda, mulher, põe aqui deante de mim. Avia-te.

[38]Ia a boa da senhora Josepha arriscar uma observação, um conselho, qualquer coisa de tomo...

―Adeus, minhas encommendas! Não me fanfes, mulher, não me fanfes. Põe aqui, que mando eu, avia-te. Assim. Está bem.

―Nome do Padre...

―Então que lhe queres? Deu-me agora p'r'aqui!

―Nome do Padre, nome do Filho...

―A caneca! Venha de lá agora a caneca!

―...nome do Espirito Santo!

―Passa bem, ó mulher,―concluiu ás gargalhadas, entre as gargalhadas dos demais.―Ouves? Quando o Manoel vier dos ninhos, esse maroto, manda-m'o ás eiras. A trote, «Sultão»! Eh! valente!

E lá parte, veloz como uma setta. Já de longe volta-se do repente:

―Josepha! ó Josepha! n'esse alguidar do meio umas sopas de vinho p'r'o «Sultão», ouviste? No do meio. O grande é muito grande, e esse pequeno não presta. Ouves? mas quer-se coisa que farte, bem entendido.

E de novo despediu como uma flecha, abraçado ao garrafão. Arreata para a direita, arreata para a esquerda, pernas a dar a dar, elle lá vae n'uma corrida, sumido n'uma onda de poeira, até chegar ás primeiras «mêdas».

―Vinho, rapaziada! Ó Maria do Carmo, toma lá uma [39]pinga, mulher! Lá por andarmos de mal ha 15 annos isso acabou-se!

E o Thomé atravessou a eira sempre a cavallo no «Sultão», caneca de vinho para a direita, caneca de vinho para a esquerda.




Meia hora depois regressava, o «Sultão» pela arreata, o Manoel no meio dos saccos, e adeante do Manoel o bello garrafão―sem pinga...

Pelo caminho, a todos o Thomé contava a historia, a rir como um perdido, n'um ah! ah! de gargalhadas sonoras, muito intimas.

―Colheita rica, sim senhores, um colheitão!

E parando á porta, ainda a mulher se benzia do alto da escada, mexendo e remexendo o alguidar de barro:

―Nome do Padre, do Filho, do Espirito Santo.

...Ao mesmo tempo que o Thomé, abrindo os braços, respondia reclamando as sopas:

―Amen! 

22 de Fevereiro de 2018 às 19:22 0 Denunciar Insira Seguir história
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