amanda-kraft1664221938 Amanda Kraft

Uma mudança sempre é bem vinda na vida das pessoas. Porém, na de Leo e seu irmão, tornou-se um pesadelo no momento em que desobedeceram a ordem de nunca entrar na floresta. Essa capa foi presente de um amigo, autor da Inkespired, Giovanni Turim. Amei demais.


Conto Para maiores de 21 anos apenas (adultos).

#terror #vampiro #horror #suspense
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A Escada

A escada surgiu do nada enquanto eu e Caio andávamos pela floresta proibida. Havíamos sido advertidos a não adentrá-la à noite, porém, durante o dia não víamos problema. Estávamos entediados. Marcamos os troncos grossos com cal molhado. Se não voltássemos à hora combinada, a mãe ficaria uma fera conosco. Enquanto perambulávamos por entre as árvores, Caio mantinha-se calado. Sei o que continha seus pensamentos. Os meus também não eram diferentes dos dele.

Acabáramos de nos mudar após o divórcio de meus pais. O velho dera no pé, incapaz de conviver conosco. Encontrara o caminho mais fácil quando a falta de grana começou a incomodar. Era mais fácil viver só do que sustentar quatro pessoas em uma mesma casa. De repente foi melhor assim. Eu e meu irmão já não aguentávamos mais tanta briga entre eles. Sempre fora meio ausente mesmo. A mãe é que se matava lavando e passando roupa para fora para, pelo menos, termos um bife no prato uma vez por semana.

Estava com quatorze anos e meu irmão mais velho com dezesseis, quando tudo aconteceu. Até hoje sonho com o maldito lugar embora, durante o dia, quando a lembrança começa a se infiltrar de mansinho em minha mente, tranco-a nas gavetas da memória a sete chaves. Entretanto, volta e meia, sem bem como eu saiba, elas se abrem e então revivo todo o terror daquele dia.

Chegamos naquele vilarejo à tardinha. A casa era velha e pequena, porém um lugar onde a mãe podia continuar a se matar no tanque enquanto eu e o Caio já tínhamos acertado trabalho no campo, na colheita de laranja na fazenda Munhoz. Não havia muito que se fazer ali. Uma igreja pequena e branca, com uma torre e um sino, enfeitava a pequena praça, onde de vez em quanto aparecia um padre para oficiar as missas dominicais, cujo fazendeiro ia buscar na cidade mais próxima.

Um bar que também servia um prato feito nos finais de semana, a mercearia do seu João, e árvores. Muitas árvores nas cercanias. O vilarejo ficava em uma espécie de clareira dentro da mata atlântica, que também circundava a fazenda Munhoz. Mas o cansaço era tanto que, ir para o centrinho miúdo só mesmo em dia santo.

E quando o Caio e eu íamos nos distrair ali, era para jogar um truco na venda do seu Giuseppe e tomar um refrigerante gelado. Entretanto, o povo não era lá muito de falar. Pareciam sofridos e tementes, pois ninguém costumava deixar o lugarejo ao cair da noite. A primeira coisa que falaram para a mãe, assim que entramos na casinha velha, era para fechar bem as portas e janelas assim que o sol deitasse no horizonte e não sair por nada.

Eu e Caio ríamos daquilo até que começamos a perceber o silêncio anormal que nos abraçava no breu da noite. Nem mesmo um latido de cachorro se ouvia. Em uma dessas jogatinas de domingo, ouvi, fingindo não ouvir, que alguém havia se perdido na floresta. Perguntei para os colegas de mesa sobre a mata densa e recebi um olhar assustado e um comentário categórico do véio Nofre, que grudou os olhos em mim, esquecendo que mostrava o valete de paus para todos:

O cê num se imenda a ir pra aqueles lado. Aquilo é muito grande i quem entra não sai. Intendeu?

Anui, olhando para o Caio, já sabendo que dificilmente ele atenderia o aviso do véio. Garoto revoltado que estava, não escutava ninguém. Ele maldisse o pai quando nos abandonou. O ódio o dominou. Conversei muito com ele, mas só pensava em juntar um dinheiro e sumir dali.

E um fim de semana encasquetou que iria entrar na floresta. E que o povo de lá era tudo xucro e que acreditava em estórias para boi dormir. Eu não queria ir, mas como irmão mais novo, sempre acabava seguindo-o. No domingo, quando não haveria missa, a mãe quis dar um jeito na casa. Ele me chamou num canto e disse para eu pegar comida e pôr em um saco. Iria caçar passarinho na floresta. Tentei de tudo para dissuadi-lo, sem êxito. Lá fomos nós. Assim que entramos, sentimos o clima pesado do lugar. Era mais frio que o normal, entretanto, um lugar lindo de se ver. Naquela manhã o sol incidia sobre as copas das árvores, mostrando-nos trilhas quase desaparecidas. Ouvimos o barulho de água e seguimos em sua direção. Um bom banho de cachoeira era tudo o que queríamos para alegrar o dia.

Andamos e, então, vimos a escada. Era a coisa mais estranha que já vi na vida. Não havia nada ali há poucos segundos atrás. Tenho certeza. Então, de repente, lá estava ela, feita de pedra, no meio de uma clareira. O Caio viu aquilo e riu, indagando quem fora o doido que construíra uma escada bem no meio do nada, sem ter notado que antes não estava ali. Olhamos ao redor dela, tentando entender o propósito daquilo e como parava em pé sem tombar, já que os degraus só subiam. Não havia nada que a sustentasse, porém seus degraus eram muito convidativos.

Assim que pus um pé no primeiro lance, senti um arrepio percorrer meu corpo. Disse ao Caio que não subiria. Que era melhor a gente voltar. Zoou comigo, dizendo que eu estava ficando mariquinhas, e foi subindo. No meio da escada, olhou para baixo e disse para eu subir com ele. Pensei que a mãe me mataria se a escada tombasse e ele caísse. Segui meu irmão, mais para puxá-lo caso a aventura desse errado. Assim que chegamos ao último degrau, olhei para baixo e senti-me tonto. Não parecia ser tão alta assim olhando lá de baixo. Foi então que tudo aconteceu. De repente estávamos no chão. Não caímos. Descemos pelo outro lado dela. Como era possível se não havia outro lado? Contornamo-la perplexos e fascinados. Aparentemente havíamos trocado de lado, já que tudo parecia invertido.

Continuamos, ressabiados, a ouvir o barulho da água que parecia estar bem próxima e quanto mais nos embrenhávamos no meio da floresta, mais densa ela ficava. As árvores pareciam nos apertar, cercando-nos. Olhei para trás e não havia mais clareira e nem escada. Estava amedrontado, desejando retornar, quando contornamos uma árvore e vimos o vilarejo. Suspirei aliviado. Quase corri ao encontro da mãe, até me tocar que algo estava diferente. As portas das casas, do bar, da mercearia, estavam cerradas com madeira em forma de cruz e o silêncio era espectral. Apenas a igreja parecia estar aberta e cheia de gente. Lembro-me de ter achado estranho, já que sabia que não teria missa naquele dia.

Aproximamo-nos devagar. Havia um homem alto no púlpito da igreja e pessoas sentadas nos bancos velhos e poeirentos. Caio me puxou para entrar, mas estaquei assustados. Eram todos estranhos. Vestiam-se de forma antiga e assim que o homem no centro da igreja nos viu, sorriu nos convidando a adentrar. Teimei e não fui. Foi o que me salvou. Caio foi ter com ele e assim que estava no meio da velha igreja, quase se sentando no lugar vago, no terceiro banco à direita, o homem sorriu novamente, porém mostrando dentes pontiagudos e enormes. Os fieis olharam para o Caio e também sorriram. A porta se fechou na minha cara, com estrondo. O que meus ouvidos ouviram naquele dia, ainda soa em meus pesadelos, devorando-me a alma.

Os gritos desesperados de meu irmão, pedindo para eu fugir dali, levaram-me até a janela ao lado da igreja. Bati no vidro, sem pensar no que estava fazendo e então minha mente quase parou. O homem do púlpito estava segurando meu irmão pelo pescoço. Havia júbilo em seus olhos vermelhos. Em seguida cravou aqueles dentes pontiagudos no Caio. Segundos depois, seus olhos encontraram os meus. O sangue rubro escorria por seus lábios. Sangue de meu irmão. Em instantes, os fiéis, extasiados, atacaram-no em uníssono, mordendo-o e sugando o pouco sangue de seu corpo esquelético. O homem sorriu para mim. Nesse momento, pus-me a correr como o vento. Embrenhei-me no meio daquelas árvores, que pareciam dificultar minha passagem, e corri desenfreado. Pareciam gritar em meus ouvidos, furiosas por eu estar escapando. As lágrimas me impediam de enxergar as marcas de cal nas árvores, porém, a luz do sol acabou me mostrando o caminho até a escada, defendendo-me da morte certa. Subi aqueles degraus sentindo uma atmosfera densa atrás de mim. Talvez a luz os incomodasse. Galguei-os de dois em dois e logo me vi no patamar. Senti um empurrão nas costas, como se um vento me jogasse longe. Desci pelo outro lado que surgira novamente e corri, corri, corri.

Nunca mais vi meu irmão. Mudamos daquele lugar levando conosco o olhar de pesar dos moradores reais dali, quando souberam do ocorrido. Proibiram a mãe de fazer uma busca. Ela não acreditou em mim. Seus olhos eram de desconfiança e mágoa, por mais que jurasse a verdade a ela.

Sei que ele, de alguma forma sobreviveu. Tornou-se um deles, pois na última noite naquela casa velha, eu o vi bater em minha janela. Pedia-me para entrar. Seus olhos deixaram o verde claro para se tornar vermelho da cor do sangue que perdera naquele dia. Ainda o ouço me chamar nos sonhos:

— Venha, Leo. Estou te esperando, irmão. Ainda ficaremos juntos.

10 de Janeiro de 2023 às 19:16 8 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

Amanda Kraft Participo com mais de cem contos em diversas antologias de várias editoras. Livros lançados: Somente eu sei a verdade; Traição; Uma Segunda Chance; A Noiva da Neblina e o Segredo de Lara pela buenovela.com e também contos e livros inéditos na Amazon kindle.

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Le Loustic Hop Le Loustic Hop
Que grande história, Amanda! Adorei a reviravolta, caramba, essa me pegou de surpresa hehehe. Parabéns, Maga. Como escrevi aí na avaliação, eu adoro a forma elegante e clássica (mas revitalizada) com que você lida com alguns dos meus temas favoritos. Parabéns mesmo, você é demais.
September 04, 2023, 12:59

  • Amanda Kraft Amanda Kraft
    Eita, amigo. Assim fico emocionada. Vc é mto gentil e um baita escritor! Já disse que adoro sua cabecinha cheia de ideias??? September 04, 2023, 13:25
  • Le Loustic Hop Le Loustic Hop
    Eu resolvi ler essa história, e ia parar. Mas, po, ela foi demais, e acabei lendo 3 em seguida. Foi a melhor coisa! Porque acabei indo parar na história "Alice". MEO, que história demais! Demais mesmo. Deixei um comentário lá e avaliação, demonstrando o quanto ela me agradou. September 04, 2023, 13:30
LF LEIDE FREITAS
Adorei a história. Você escreve maravilhosamente bem. Cada história melhor que a outra.
March 14, 2023, 19:17
Daniel Trindade Daniel Trindade
Olá! Faço parte da Embaixada Brasileira do Inkspired. Estou aqui para lhe parabenizar pela Verificação de sua história. Desejo que a sua história alcance muitos leitores aqui em nossa comunidade. Sucesso e felicidade em sua arte! ♡
January 29, 2023, 22:06

Norberto Silva Norberto Silva
Uau! Adorei essa história vampiresca. a criatividade foi, desculpe o trocadilho, às alturas, usando o lance da escada para levar as crianças para a "igreja de sangue"... E esse final, com a visita do Caio... Muito bem construída a cena... Seria um começo extraordinário de um livro. Meus parabéns!
January 11, 2023, 15:54

  • Amanda Kraft Amanda Kraft
    Adoro seus comentários. Mto obrigada pela leitura. E sim. Estou reunindo alguns contos e, se tudo der certo, vai virar um livro. January 11, 2023, 19:04
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