Ayla
Passos firmes, postura ereta, olhar fixo, rosto sério. Se eu me distrair, nem que seja um pouquinho e olhar para os lados, sei que vou me irritar e eu simplesmente não posso me irritar com os meus funcionários. Sempre é assim, todos os dias quando passo pelos corredores recebo os olhares de todos. Alguns até tentam ser discretos, mas a maioria nem se importa e fica me encarando até eu entrar na minha sala e fechar a porta.
Finalmente, meu refúgio e salvação, meu cubo impenetrável de segurança e paz, longe dos curiosos, mas não longe do Lohan, meu sócio, que está confortavelmente sentado na minha cadeira com as mãos atrás da cabeça e sorrindo relaxado.
— Minha cadeira. — Aponto para Lohan e faço sinal para que ele levante. Na mesma hora ele ergue as mãos e sai, me dando espaço para passar e sentar. — Agora, a que devo essa visita tão cedo?
Lohan senta na cadeira do outro lado da minha mesa e fica o mais confortável possível, ergue o indicador e sorri de lado, mostrando uma leve covinha. Meu humor piora só de imaginar o que ele vai dizer. Aperto entre meus olhos e espero sem muita animação o comentário diário do meu sócio e querido amigo.
— Em primeiro lugar, você está linda e radiante como sempre. — Arqueio a sobrancelha. — Sabe que eu não vou parar de dizer isso até você parar com essa carranca no escritório.
— E você sabe o quanto levo essa empresa a sério para não ficar mostrando os dentes a cada cinco segundos só porque alguém me deu bom dia.
— Tão bonita e tão teimosa.
— Tão bonito e tão pé no saco. — Lohan ri alto e não consigo evitar um sorriso. — Agora sim, é disso o que eu estou falando.
— Você não tem trabalho para fazer não?
— É por isso que estou aqui. — Lohan adota sua postura de sócio, as longas pernas cruzadas e mãos sobre os joelhos. — Precisamos pensar nas equipes responsáveis pelo marketing dos produtos o quanto antes, você já enrolou tempo de mais para fazer isso, então estou tomando a frente. — suspiro cansada.
— Eu sei, mas é tanta coisa acontecendo que simplesmente não tenho tempo de fazer uma penca de entrevistas todos os dias para contratar meia dúzia de estagiários que ainda vou precisar perder tempo treinando. Você sabe como esse lançamento é importante para a empresa e para mim, não posso deixar que nada dê errado. — Lohan me olha com atenção e sorri, sem deboche, apenas seu sorriso de entendimento.
— Eu sei Ayla, você literalmente deu tudo de si para a Verum Natura, só preciso que você entenda que eu estou aqui para te ajudar e tirar um pouco desse peso que você insiste em carregar sozinha. Desde que começamos a empresa até hoje, foram quinze anos de luta sem pausa para consolidar seu nome no mercado de cosméticos nacional, você precisa delegar algumas funções ou vai ficar doente, e na boa, eu não estou afim de te levar sopa em casa.
Não tem como não gargalhar com o comentário. Lohan está certo, há quinze anos me dedico inteiramente a Verum Natura, meu sonho de independência financeira e liberdade. Na verdade, minha vida não foi nada difícil, nasci em uma família com bastante dinheiro e cheia de empresários super bem sucedidos no mundo dos negócios, é meio que um dom de família. Se eu realmente quisesse, nunca precisaria trabalhar, mas eu não queria isso. Meu pai sempre foi meu exemplo e herói, trabalhando dia e noite para sustentar meu irmão e eu, saiu de casa jovem para se casar com o amor de sua vida, começaram do zero e antes que eu nascesse já tinha um patrimônio milionário nas mãos. A perda da minha mãe por complicações no pós parto do meu irmão foi devastadora para todo mundo, mas meu pai tinha dois motivos para não cair no precipício da depressão. Vê-lo se dedicando tanto me inspirou a seguir seus passos, exatamente como ele fez. Infelizmente eu me juntei com um cretino, filho da puta, desgraçado de merda, só conseguindo voltar ao meu juízo perfeito depois de me separar dele. Separar… o cuzão faz da minha vida um inferno até hoje. Afasto qualquer pensamento ligado ao pedaço de merda, vulgo “meu ex”, e foco no que realmente é importante, trabalho.
— Beleza, então vou deixar toda a parte do marketing e da publicidade nas suas mãos, até porque você é muito mais qualificado do que eu nesse assunto e nunca deu uma fora. — Lohan estufa o peito e sorri orgulhoso. — Agora, com relação às modelos…
— Não mete essa Ayla, você acabou de colocar tudo nas minhas mãos e já vai me tirar alguma coisa?
— Não é tirar, eu só quero saber em detalhes o que você vai fazer e talvez dar minha opinião sincera e única. — Lohan arqueia a sobrancelha e suspiro derrotada. — Ta. Não vou me meter. — Levanto pegando alguns papéis e colocando na minha pasta.
— Já vai sair?
— Lembra que andei falando com um pessoal, uns empresários que estão buscando novos nichos para investir? — Lohan acena concordando. — Consegui uma reunião com alguns deles essa manhã, vou apresentar a empresa e o produto para eles.
— Não me surpreende, você é muito capaz. — Lohan se levanta e acaricia minha cabeça.
Eu nunca realmente olhei para o Lohan como homem, até porque quando nos conhecemos eu estava namorando o Eduardo, vulgo “encosto de merda”, e nos conectamos de uma forma especial, quase como irmãos, mas eu não sou idiota de não ver como ele é bonito, com seus cabelos castanhos claros cacheados e rebeldes caindo sobre a testa, grandes olhos cor de mel com longos cílios, pele bronzeada de quem tem tempo livre para ir a praia, algo que eu não sei como ele faz, pois é tão ocupado quanto eu. Eu, nos meus um metro e setenta e cinco, me sinto pequena ao lado do Lohan, que deve bater fácil os um metro e noventa, mas nunca perguntei para ele, primeiro por ser uma pergunta bem estranha e segundo que não me interessa de verdade saber a altura dele.
— Se cuida e me liga assim que a reunião acabar, beleza?
— Beleza. Vamos torcer para tudo dar certo e eu não surtar como da última vez. — Lohan cobre o rosto com as mãos e bufa.
— Puta merda, nem me lembre.
Antes de ir para o carro, passo no banheiro e confiro minhas roupas e maquiagem, afinal eu sou o rosto de uma empresa, não posso aparecer em uma reunião importante como essa desgrenhada, mas também não posso ficar igual um pavão, toda enfeitada. Por isso escolhi meu conjunto de blazer e calça marrom claro, uma camisa preta com botões de pérolas brancas, uma fina corrente de prata e brincos combinando, uma maquiagem bem simples e natural, mas perfeitamente aplicada, todos produtos da Verum Natura. Meu cabelo preto está preso em um rabo de cavalo bem esticado, decidi passar prancha no meu ondulado natural para passar esse ar de mulher rica, coisa que ainda não sou, mas estou trabalhando nisso.
Entro no carro, mal dou a partida e meu celular toca. Para minha total falta de surpresa e desprazer, Eduardo está me ligando, muito provavelmente para encher o saco com as merdas de sempre sobre tentar recuperar nosso casamento fracassado a mais de dez anos. Às vezes eu me sinto uma velha, e olha que tenho trinta e cinco, imagina quando eu chegar aos quarenta.
Antes eu imaginava que aos quarenta já teríamos dois filhos, uma casa bacana e vida confortável, nada muito luxuoso, mas que Eduardo seria finalmente reconhecido e promovido no trabalho. É bizarro como tudo saiu completamente diferente.
Conheci o Eduardo na escola, o garoto bonitão e popular que todas sonhavam namorar, eu era uma dessas meninas bestas e inocentes, mas só começamos mesmo a namorar depois da formatura, quando entrei para a faculdade e decidi sair de casa, seguir meu próprio caminho. Eduardo me chamou para morar com ele e assim começamos uma vidinha pacata e fofinha de jovens apaixonadinhos, uma nojeira doce e melosa. Com o tempo Eduardo me convenceu a largar o trabalho, passei então a só me dedicar aos estudos e mesmo assim ele insistia que eu deveria largar, que ele seria o provedor da nossa família e me daria o mundo inteiro. Quão idiota eu era para acreditar nesse monte de merda? Muito idiota, mas ainda tinha algum bom senso guardado, pois não abri mão dos meus estudos, dizendo que poderia ajudá-lo se preciso.
Como eu estava desempregada e Eduardo era o único trabalhando, as coisas começaram a ficar apertadas, as contas acumulando e as dificuldades que jovens casais passam foram surgindo. A lua de mel tinha oficialmente terminado. Um belo dia recebi uma mensagem do meu pai e Eduardo viu, na hora reconheceu a foto como um dos maiores empresários do país e perguntou o motivo de estarmos passando por tudo aquilo, sendo que meu pai era rico. Eu disse que ele estava certo, meu pai era rico, não eu. Daí foi tudo ladeira abaixo, as brigas só ficavam piores e os abusos verbais e psicológicos do Eduardo pioraram dia após dia. Um belo e ensolarado dia ele partiu levando literalmente tudo, esperou que eu fosse para a faculdade e fez a limpa na casa, nem a merda de um recado o arrombado deixou para trás, na verdade até roupas minhas ele levou, não sei para que. Caí em depressão, ao ponto das pessoas próximas ficarem com medo de me deixarem sozinha tempo suficiente para fazer uma merda maior. Lohan foi uma das pessoas que nunca saiu do meu lado, e sou grata até hoje por todo o carinho que ele me deu na época.
A Verum Natura nasceu da minha tentativa de superar um casamento fracassado e um coração dilacerado, até agora deu mais do que certo e com a ajuda e apoio da minha família e amigos a Verum Natura vem crescendo de uma forma inimaginável para uma empresa tão jovem e é por conta desse crescimento que Eduardo resolveu infernizar a minha vida mais uma vez, dizendo que eu o enganei e que tenho que pagar pensão para ele. Ainda bem que a natureza não nos permitiu ter filhos, um vínculo eterno com esse homem seria o meu fim.
Finalmente chego a empresa de um dos possíveis investidores, sou muito bem recebida e levada até a sala para me preparar antes que todos cheguem. Não é minha primeira apresentação, mas cada uma é diferente e especial e em todas eu fico super nervosa. Faço um breve exercício de respiração, fecho meus olhos e mentalizo o melhor resultado. Não, eu não acredito no poder do pensamento positivo, mas nessas horas vale tudo. Todos entram e se acomodam na longa mesa com papéis e canetas em mãos.
A apresentação acontece sem problemas, falo da história da empresa, o crescimento dela, perdas e lucros e finalmente do nosso novo projeto, uma linha de maquiagens de alta qualidade que cuidam da pele, com um visual elegante e elementos únicos como pigmentos exclusivos criados por diretamente por mim. Então começa o mesmo papinho de sempre. “Mas uma mulher tão jovem à frente de uma empresa”, “Tão linda, deveria ser a modelo, não a CEO”, “Por que o seu sócio não veio?”. Nada que eu já não esperasse ouvir de um bando de homens velhos e conservadores. Certeza que nenhum deles vai investir e apenas porque eu vim no lugar do Lohan, mais uma vez.
— Com licença. — Um dos investidores, o único que focou em silêncio enquanto eu era massacrada, se aproxima. — Estou impressionado com tudo o que você disse, especialmente com os números apresentados. Gostaria de marcar uma reunião com você e claro seu sócio, para conhecê-lo.
— Claro! Claro, entraremos em contato. — Ele me entrega seu cartão e sai da sala. Eu preciso me conter muito para não pular de alegria.
Finalmente, todas as noites em claro, trabalho duro e dedicação estão começando a mostrar frutos. Eu sei que o Lohan pediu para ligar, mas esse é o tipo de coisa que eu tenho que ver a cara dele quando contar.
Correndo o risco de tomar várias multas, volto correndo para a empresa, mas toda a minha animação desaba ao ver Eduardo andando de um lado para o outro na frente do prédio. Eu não mereço essa merda. Não tem o que ser feito, eu preciso ir para a minha empresa, nem que eu tenha de pisotear esse saco de bosta no caminho. Ele me vê, abre um largo sorriso distorcido e corre na minha direção com um buquê de margaridas, as flores que eu mais odeio no planeta. Sério, tem coisa mais sem graça, em todo lugar tem essa planta, branca com pétalas pequenas que só fazem sujeira.
— Ei pequena, eu te liguei mais cedo.
— Eu vi. — Passo por ele andando rápido, mas o chiclete velho grudou no meu sapato e não solta.
— Achei que estava ocupada, então vim te ver. Trouxe suas flores favoritas. — Ele coloca o buquê bem na minha frente e empurro para longe.
— Eu odeio essa planta, Eduardo. — Ele afasta o buquê e gruda no meu braço, minha vontade é vomitar com o cheiro forte do seu perfume barato.
— Então vamos almoçar, conversar um pouco. Eu sei que você está chateada. — Dou uma risada irônica.
— Chateada não descreve nem de longe o que eu sinto quando olho sua cara.
— Mas nós podemos fazer dar certo, pequena. Vai ser diferente, eu sei que perdi um pouquinho a linha, mas eu nunca deixei de pensar em você. — Eduardo tenta segurar meu pulso e me impedir de entrar no prédio, então puxo com força o braço e ele segura meu cotovelo com muito mais força, me prendendo. — Qual a porra do seu problema, eu estou falando com você, me humilhando. Você vem comigo, agora Ayla.
— Não, ela não vai. — Lohan surge atrás de Eduardo, que fica branco e me solta na mesma hora. — Já tivemos essa conversa antes Eduardo, se eu te pegar rondando o prédio vou acionar a polícia e meus advogados. — Eduardo me solta e vai embora bufando de ódio. Lohan me olha de quina, então continuo meu caminho para dentro do prédio seguida de perto por ele. — Me explica só mais uma vez o motivo de você ainda não ter pedido uma medida protetiva contra esse babaca.
— Ta aí uma boa pergunta, acho que em algum lugar eu vejo o rapaz gentil por quem já fui apaixonada, mas então ele abre a boca e a magia acaba.
— É sério Ayla, me preocupa ele aparecendo assim do nada, se eu não aparecesse é certo que ia te arrastar pra algum lugar.
Sinceramente, eu não acredito que o Eduardo tenha culhões para tanto, mas o Lohan está certo em uma coisa, Eduardo tem aparecido mais vezes de surpresa, me cercando no trabalho ou na portaria do meu prédio.
— Falando de coisas boas, tivemos uma pequena vitória na reunião. — Os olhos de Lohan brilham. — Um dos investidores se interessou pelo produto e pela empresa, quer agendar uma reunião com você e comigo.
— Caralho, isso é incrível. Eu sabia que você ia conseguir. E os outros? — Fecho a cara e Lohan da um passo para o lado. — Devo presumir que tivemos aqueles comentários?
— Tivemos aqueles comentários, mas dessa vez, como pode ver, ninguém saiu ferido.
— Já é uma grande coisa vindo de você, sem ofensas.
— Não ofendeu. Então, como está indo com as entrevistas para o marketing?
— Um saco, mas encontrei algumas pessoas bem interessantes e com ideias bem legais. Quando tudo estiver encaminhado vou passar eles pra você aprovar ou não.
— Eu confio em você, contando que esses estagiários façam o trabalho do jeito que eu gosto, não teremos problemas. — Lohan ri alto ao meu lado, chamando a atenção de várias pessoas.
— Quem no planeta, além de você mesma, trabalha do jeito que você gosta? — Dou de ombros e entramos no escritório, cada um indo para a sua sala trabalhar feito loucos. Mais um dia de trabalho.
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