Apareceu-lhe no topo da cabeça o que ele chamou de "bolinha". Mostrou-a para o exame da família inteira, mais o da namorada. Todos concordaram que era, sim, uma bolotinha. Tudo, bem.
Como começou a crescer, foi ao médico: "É, aparentemente, uma espécie de cisto." Receitou uma pomada (duas vezes ao dia) e recomendou observação. Se aumentasse de tamanho, deveria ser retirada e mandada para biópsia... Mas a pomadinha talvez fosse suficiente para o desaparecimento espontâneo do provável cisto.
Cresceu mais um tiquinho. Foi quando a mãe deu início a preces fervorosas. E o cunhado gozador determinou que aquilo era um pré-chifre e que ele, futuro unicórnio, ao invés de ficar afagando a estranha protuberância, deveria chamar a namorada nas chinchas.
Apesar da pomada, a excrescência se avolumou, deixou de ser considerada "bolinha" e passou a ser chamada de "bolota".
Teria, portanto, que voltar ao médico para os procedimentos necessários. A consulta foi marcada. Antes, porém, numa tarde preguiçosa de domingo, a irmã resolveu investigar atentamente o formato e a consistência do esquisito apêndice craniano. Apertou, puxou, empurrou para um lado e para o outro, futucou e, inadvertidamente, arrancou o que já ganhara a denominação de "bagulho". Ele soltou um berro de dor.
Diante do pasmo e do horror da família (o cachorro fugiu da sala), todos ouviram um chiado semelhante ao de um pneu furado, testemunharam o monumental escapamento de uma espécie de gás pelo orifício no crânio e viram (com os olhos que um dia a terra haveria de comer) o rapaz se esvaziar como se fosse um boneco de borracha.
Sobre o sofá restaram um amontoado de roupas amarfanhadas e um corpo esquálido.
"Morreu!", gritou a mãe, antes de se debulhar num pranto convulso. O cunhado foi checar de perto e declarou: "Morreu foi nada! Tá vivinho!" O pai (sempre pragmático) ordenou: "Então, amarrem a mandíbula pra não ficar esse queixo caído na cara dele!" A sobrinha pequena contribuiu com uma fita de cetim fúcsia. A namorada (trêmula) amarrou-a ao redor da cabeça e, num ato de amor, tampou o buraco no cocoruto do ex-namorado, caprichando no laço.
Todos (inclusive o cachorro que voltara da cozinha) pararam para observar "aquilo".
Debateram se devia ser conveniente lhe tirar a roupa. "Tira". "Não tira". Tiraram, com todo o cuidado, deixando apenas a cueca para velar um desgostoso trapinho.
O fato era que não sobrara um músculo sequer, senão o coração que não parava de bater. Devagarinho, mas batia. Ele virara um saco de vísceras.
Por certo, não conseguia falar nada. Somente os olhos, no fundo das órbitas, mergulhados na pele das pálpebras, miravam o que estava diante deles. Como não poderia deixar de ser, atônitos.
E surgiu outro debate: o lugar onde depositá-lo, que a sala não era adequada para um homem murcho.
"Pode pendurar no varal da área de serviço.", propôs a irmã.
"Melhor, num cabide dentro do armário", sugeriu o cunhado.
"Nunca! Meu filho macho não vai entrar em nenhum armário!", protestou o pai.
"Esticadinho, na caminha dele", pediu a mãe aos soluços.
O traslado foi bem complicado, mas conseguiram, enfim, ajeitá-lo sobre a cama. "Cobre." "Não cobre." Cobriram, deixando a cabeça, com laçarote, à mostra.
As visitações eram diárias, respeitando uma escala com hora estipulada. Àqueles olhos perplexos se apresentava a parentela que, aos poucos, foi entendendo que ele era somente visão e audição. Orações, frases de estímulo e histórias banais foram substituídas por confissões, reclamações, frustrações, traumas, ressentimentos, segredos cabeludos... Nem Freud, no consultório dele, deparara-se com tantas almas conturbadas.
Como resultado, a família foi contornando e superando problemas psicológicos, azeitando o convívio, fazendo-se feliz. Até a ex-namorada assumiu, com alegria, a delicada limpeza do que havia restado do corpo e a troca das fitas, escolhendo cores diversas, esmerando-se na criação e feitura dos laços.
Esse sucesso psicoterapêutico não passou despercebido. A vizinhança começou a marcar hora para estar com o Homem Semimorto, segundo uns, ou Semivivo, segundo outros. Em pouco tempo, houve fila diante da casa. De repente, estava vindo gente de outras cidades, de outros estados... Começou a chegar gente até do estrangeiro... Todo mundo queria desabafar, contar pecados, confessar transgressões e -- claro! -- não ser confrontado nem julgado.
A família achou por bem cobrar entrada, o que se tornou em bela fonte de renda.
Enquanto se amealhavam os caraminguás, processos insuspeitados ocorriam sob a pele do rapaz desmilinguido. A ex-namorada (então, cuidadora) notou certo embaçamento e retração nos olhos dele. Ninguém quis saber. Depois, avisou que ouvia ruídos de líquido, quando realizava a higiene. Ninguém ligou. Por fim, aos gritos, anunciou que pelas narinas e orelhas escorria o que havia sido um cérebro. Por todos os esfíncteres vazava um fluido viscoso e fétido.
"Viscoso? Tudo, bem. Fétido? Nunca! Vai espantar a clientela!", apavorou-se o cunhado.
As sessões confessionais foram suspensas.
Em pânico, observaram que tudo o que, supostamente, restara dentro dele se liquifazera e se perdera. Nem os ossos escaparam da diluição. Em pouco tempo, ele era apenas pele ressecada.
A família se reuniu na sala:
"Virou papiro, meu Deus!", lamentou a mãe.
"Que faremos?", perguntou a irmã aflita.
"Que serão dos laçarotes?!", inquiriu a ex-namorada.
"Queimem!", sentenciou o pai.
"Nunca! O meu filhinho, não!", suplicou a mãe.
A pequena sobrinha, abraçada ao cachorro, não parava de chorar sem saber bem por quê.
O cunhado sinalizou que tinha algo a dizer. Todos se calaram. E falou:
"Calma, pessoal. Já está tudo resolvido. Enrolei direitinho e -- desculpe, sogrão -- guardei no armário."
Obrigado pela leitura!
Podemos manter o Inkspired gratuitamente exibindo anúncios para nossos visitantes. Por favor, apoie-nos colocando na lista de permissões ou desativando o AdBlocker (bloqueador de publicidade).
Depois de fazer isso, recarregue o site para continuar usando o Inkspired normalmente.