rafael-brazil1655922073 Rafael Brazil

Lino "Biruta" é um daqueles sujeitos peculiares, que fala pouco e ninguém leva a sério. O seu sumiço acaba levando três policiais para uma intrigante e macabra trama, colocando a pequena cidade de Tapes do Sul no mapa sobrenatural.


Horror Todo o público.

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Os Manequins

19 de Agosto de 1996

Este relato é diferente de qualquer outro que já escrevi e diferente de qualquer outro que escreverei. Durante os meus quase vinte e cinco anos na carreira de policial, nunca presenciei algo tão assustador. Já estive em casos de rituais com pessoas e animais, em casos de assassinatos bárbaros, sanguinários. Já vi algumas bizarrices, mas presenciar um evento sobrenatural?

Não, definitivamente não.

A delegacia de Tapes do Sul contava apenas com cinco policiais: Eu, Jorge, Marcos, Marlene e a Dona Lurdes (que está na recepção do lugar desde 1964 e provavelmente nunca usou uma arma). Cheguei nesta pacata cidade em 1991, cansado da rotina e da corrupção da polícia de São Paulo. Um homem na minha idade já não aguenta correr tanto assim dos lobos cada vez maiores e perigosos. Uma frase dita por um antigo amigo meu da corporação se encaixa bem aqui. Ele dizia que um policial velho é como um cão velho; admirável, mas descartável. Com a proposta de chefiar essa pequena cidade, vi a oportunidade perfeita para ter uma vida tranquila. Um bom dinheiro, uma boa aposentadoria.

Ingênuo! Maldito ingênuo!

No dia 9 de Agosto, Dona Lurdes me comunicou sobre o desaparecimento de uma figura conhecida da cidade, Lino “Biruta”. Lino recebeu este infeliz apelido porque vivia falando sozinho pelas calçadas, contando casos sem nexo. Existia dentro de seu próprio delírio, mas era dócil e frágil, andando com os ombros encolhidos e cabeça cambaleante, pendendo para todos os lados. Paciente de carteirinha do Hospital Psiquiátrico de Tapes, levava uma vida misteriosa. As pessoas da cidade viviam especulando sobre a origem de sua renda, já que morava em uma casa confortável e aparentemente não lhe faltava nada. Apenas juízo. Eu mesmo já havia levado Lino até a porta da casa dele algumas vezes, mas nunca fui convidado para entrar. E eu também não fazia assim tanta questão.

O burburinho do sumiço foi feito por Luciana, dona da loja de roupas infantis, alegando que Lino, seu maior freguês, já não aparecia por lá havia quase duas semanas. Ele ia semanalmente, desde 1995, comprar alguma peça de roupa.

Bermudas, bonés, camisetas com personagens estampados. Luciana comentou que Lino comprava sempre com muita empolgação. E pagava sempre com dinheiro. Um dos melhores clientes.

Dá para acreditar?

Estranhei no mesmo momento por qual motivo Lino comprava roupas infantis, sendo que não tinha filhos e nem mesmo uma família na cidade e resolvi questionar Luciana, que só me disse que o rapaz comprava roupas masculinas, para um sobrinho que morava em outra cidade. Uma resposta plausível, mas que não me convenceu. Resolvi chamar Marlene e Jorge para me acompanharem até a casa de Lino. Pensei que provavelmente ele poderia ter ido viajar, mas precisava ter certeza que estava tudo em ordem.

Um mínimo de adrenalina poderia me fazer bem. Lembrar os velhos tempos.

Chegamos na casa um pouco antes do horário do almoço e de cara sentimos um cheiro insuportável de alguma coisa pútrida. Toquei a campainha por quase dez minutos, mas como não obtive resposta, resolvi entrar e averiguar melhor a situação. Minha ordem foi para que Jorge entrasse pela porta dos fundos, deixando eu e Marlene com a porta da frente.

Quando entramos na casa, o cheiro se acentuou consideravelmente, ficando praticamente impossível de respirar. Cobrimos os nossos rostos com as golas e continuamos pelo corredor que ligava a porta principal até a sala. Marlene lacrimejava tamanho o desconforto com o odor. Chegamos na sala e chamei por Lino, sem respostas.

Obviamente sem respostas.

A sala, e disso nunca me esquecerei, estava fria, silenciosa e com uma sutil sensação de constante observação, com os móveis completamente bagunçados. A estante, com uma televisão e alguns livros, estava virada para a parede da janela e o sofá estava ao lado do móvel, com a frente virada para outra parede com um enorme e horripilante quadro. O quadro em questão era composto por três pessoas nuas agonizando, enquanto um descomunal demônio se alimentava de suas tripas. Uma arte de péssimo gosto.

Curiosamente, notamos por último os três manequins sentados no sofá.

Eu e Marlene começamos a investigar aquele angustiante ambiente, procurando por qualquer tipo de evidência. Enquanto averiguava o sofá com os manequins, tive a estranha sensação que um deles havia mexido a mão, apenas alguns centímetros.. Pedi para Marlene que fizesse um rascunho da sala e depois do sofá com os manequins, já que a única máquina fotográfica da delegacia havia quebrado. Enquanto isso, acendi um cigarro para colocar as ideias no lugar. Aqui preciso colocar uma nota adicional de que eles olhavam fixamente para o quadro. O apelido de Lino começava a fazer um terrível sentido.

Marlene desenhou como uma aplicada aluna de artes, fazendo questão de colocar até mesmo os mínimos detalhes. O manequim do meio era o menor e vestia roupas infantis na cor amarela. O esboço em seu rosto mostrava olhos fechados e um triste sorriso. O manequim da esquerda era o de uma mulher, com uma peruca loura e sem qualquer vestimenta, mas com os olhos arregalados e a boca pintada por um batom vermelho bastante forte. Já o manequim da direita era apenas um boneco, sem qualquer roupa ou feição, com o mesmo tamanho do manequim de peruca. Possuía apenas dois pontos pretos na região dos olhos, pequenos e toscos.

No quarto trago do cigarro, fui chamado por Jorge. Ele estava claramente assustado. Entrei pela porta da cozinha e lá estava o Lino, com a barriga aberta de ponta a ponta, atrás de uma mesa de plástico com restos de uma pizza dominada por insetos. A carne do corpo, já em um avançado estado de decomposição, era a origem do cheiro. Juro por Deus que lamentei profundamente pelo Lino, que aparentemente não teve chance alguma de defesa. E, bem, nunca havia feito mal a ninguém. Não que alguém soubesse.

As larvas se rastejavam no corpo de Lino e ao seu redor, com a pele gosmenta prendendo o falecido no chão. Uma cena grotesca. Ah, os olhos foram violentamente arrancados.

Quem poderia ter feito isso?! Não tinha como formular teorias naquele momento, precisava investigar melhor.

Provas, evidências, é assim que uma boa investigação funciona.

Um passo de cada vez. Me aproximei do corpo, enquanto Jorge olhava perplexo do outro lado da cozinha. Não consegui tirar boas evidências na cena do crime, apenas que ele foi acertado com um golpe certeiro, feito próximo ao umbigo e subindo mais ou menos até o pescoço. A faca usada para estripar Lino não estava na cena do crime.

No momento em que eu buscava alguma outra pista, Marlene deu um estridente grito. Jorge e eu fomos correndo averiguar a situação. A policial informou pálida, que o manequim de peruca loura havia levantado do sofá. Jorge esboçou um riso, que logo repreendi. De fato o manequim estava em pé, mas totalmente rígido. Marlene jurou não ter mexido em nada. Ela não teria motivos para mentir. Então me aproximei, já com a pistola em mãos, e cutuquei a cabeça do manequim com a ponta da arma. O manequim caiu no chão e partiu em dois pedaços, deixando uma poça de sangue. Alguém aqui já viu um boneco que sangra?! Tenho certeza que não. Porém, este sangrava como uma pessoa, e desprendeu um sutil gemido de dor quando partiu ao meio.

O silêncio do momento foi quebrado com outra situação, ainda mais bizarra. Quando virei para olhar para Jorge e Marlene, notei que o manequim sem feições não estava mais no sofá. Questionei-os como não viram a porcaria de um manequim de um metro e oitenta simplesmente desaparecer. Definitivamente estavam mais perdidos do que eu. Ordenei que Jorge voltasse para a cozinha e Marlene fosse investigar o único quarto da casa. Queria ficar sozinho na sala para entender melhor toda aquela esquisitice.

O sangue do manequim caído não tinha nenhuma origem orgânica, já que o corpo era totalmente de plástico. Pensei então que alguém poderia ter colocado uma bolsa de sangue dentro dele para causar esse efeito. O assassino de Lino queria brincar com nós? Era algum tipo de jogo sádico?! Ou algum experimento bizarro? Tinha alguém na casa e era nosso dever deter o sujeito, simples assim. Não vim morar em uma cidade tranquila para ser feito de bobo por ninguém!

O manequim infantil teve um desfecho intrigante, mas isso prefiro deixar para o final. Enquanto continuava a investigar a sala, sentia uma desconfortável sensação de estar sendo constantemente vigiado. Marlene me chamou com urgência e quando cheguei no quarto a situação já estava totalmente sem pé nem cabeça.

Marlene apontava o seu revólver para o manequim sem feição, deitado na cama de solteiro. Quando me aproximei de Marlene, o manequim levantou repentinamente e andou em nossa direção com uma velocidade assustadora, pegando em seguida a arma de Marlene e com um único disparo acertando o peito da policial.

Ela morreu na hora. Morreu com os olhos esbugalhados, sem compreender absolutamente nada. Enquanto isso, o manequim assassino olhava para a pistola com certa curiosidade, como se estivesse surpreso com tamanho poder que tinha em suas mãos.

Corri em direção a cozinha para avisar Jorge. Era hora de cair fora daquele lugar!

Escorreguei no chão da cozinha e caí de cara no chão, coberto de sangue velho. Limpei meus olhos sujos e vi o policial Jorge sendo impiedosamente esfaqueado pelo manequim “mulher”, que se rastejou usando os braços até a cozinha. Levantei rapidamente e o único ato que tive foi sair daquele inferno. Passei pela sala e escutei o manequim infantil, ainda sentado no sofá, pedindo para que eu o levasse junto.

“Os dois manequins adultos são malvados! Eles mataram o Lino, nosso criador! Querem se apropriar da carne humana, querem se tornar pessoas reais! Me ajuda, me tira daqui! Por favor!”.

Dei de ombros, quem garante que o pequeno também não fosse me matar?!

Não ia pagar pra ver.

O manequim criança começou a chorar alto, gritando com uma potente voz, embora a boca não se movesse. As pernas do manequim mulher se moviam no chão da sala, tentando de alguma maneira se levantar. Os berros, o barulho da faca entrando seguidamente no corpo de Jorge, e os passos duros do último manequim se aproximando criaram o verdadeiro cenário do que seria o inferno na Terra. Ao observar o quadro pela última vez, pude jurar que ele estava se movendo, com o horripilante demônio rindo e saboreando cada pedaço das vítimas indefesas.

Aquilo era o suficiente. A casa era como um sádico pesadelo, na mente de um sádico ser humano.

Entrei no carro e pisei sem cerimônias no acelerador, voltando para a delegacia. Lurdes não estava na recepção. Liguei para alguns contatos, pedindo reforço policial e médico. Eles logo chegaram e limparam toda aquela bagunça, com um detalhe: não encontraram manequim algum na casa. Nada! Nenhum vestígio! Os corpos das vítimas, porém, foram encontrados sentados no sofá. A perícia descobriu facilmente que os corpos foram colocados no sofá pelo assassino, já mortos.

Juro, por qualquer ser superior ou divindade que rege nossa existência, que eles estavam lá. Qual o motivo? Qual a verdadeira relação de Lino com isso? Um dia eu descobrirei o que aconteceu naquela maldita casa. Enquanto isso, registro também que vejo de vez em quando um dos manequins andando pelo jardim. A janela do hospital é grande e protegida por grossas barras de ferro. Se não fosse pelas barras, daria um jeito nesses seres odiosos com as minhas próprias mãos. Médicos, pacientes e enfermeiras veriam o meu ato heroico e acreditariam, finalmente, na minha história.

O que aconteceu na pequena Tapes está longe de acabar.

Não sou louco, e talvez nem mesmo Lino fosse louco.

Hospital Psiquiátrico Santa Helena, Tapes do Sul, 19 de Agosto de 1996.

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22 de Junho de 2022 às 18:35 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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