Se você visse o que eu vi na tela do celular, também teria deixado a bandeja cair.
Mil reais de prêmio! Acho que nunca tinha visto tanto dinheiro de uma vez na minha vida ainda. Não pra mim, pelo menos. Se eu ganhasse, eu poderia...
Quando meus pensamentos estiaram, eu já tinha me distraído por tempo demais com a tela rachada do meu celular. Dei por mim e o copo já estava caindo da bandeja — eu só pude, no reflexo, colocar o pé embaixo, como se soubesse fazer embaixadinha com copos. Mas nem com bola eu sabia, então o vidro só estilhaçou, tilintando no silêncio entre um Dilsinho e um Pixote da rádio.
— Ô Lívia! — O homem atrás do balcão vociferou no reflexo, por baixo do bigode. — Presta atenção, minha filha! Você sempre foi desastrada assim? Não vou ficar esperando você pegar o jeito, não!
Não era a primeira vez que eu quebrava um copo naquele bar, então eu sabia exatamente onde ficava a vassoura. Mas era a primeira vez em que eu ia ter que pagar pelo copo, então me apressei em varrer.
— Deixa isso aí que eu varro. — ele rosnou de novo. — A mesa do Serginho tá esperando uma Brahma. Leva lá pra eles.
Era o que eu menos queria ouvir. Não era a primeira vez que eu levava uma garrafa de cerveja praquela mesa, é claro, então eu também sabia onde pegar e onde levar. Mas era a primeira vez em que eu ia receber, como empregada do bar, para fazer isso. Só por isso, levei com isso aqui de pressa (dedos fazendo uma pinça bem encostadinha). Mas aí, sem querer, meu pensamento acabou voltando pro campeonato que eu tinha acabado de ver. Logo agora, que eu tinha que sair...
— Finalmente! Obrigado, queridinha. — O mais careca falou, de costas pra mim. Ele viu que os três outros na mesa olharam pra mim e tomaram um susto, então ele se viu forçado a olhar também. E, no que olhou, também se espantou. — Mas não é possível! Quem é viva sempre aparece! Não é a Lica? Filha do Maneco?
Meu sorriso amarelo de Lica, filha do Maneco, deu a senha pro tiozinho deixar suas cartas viradas para baixo na mesa e se levantar, pronto pra me abraçar. Deixei, né. Fazer o quê.
— Menina, mas você tá enorme! Tá trabalhando aqui agora?
— É…
— Você vê, a fruta não cai longe da árvore mesmo, não! — brincou o mais de lá, já pegando a garrafa e virando sobre o copo inclinado. Os outros riram, e eu ri também. Mas de nervoso.
— Tamos num truquinho aqui! Seu pai jogou tanto isso com nós aqui. Joga uma! Vamos ver se você puxou o pai! — Mas quase que eu não escuto a última frase porque, enquanto ele falava, ele também arrastava a cadeira vermelha pra eu me sentar.
Era melhor ter arrastado mais alto.
— Tô trabalhando, tio Serginho… não posso.
Tio Serginho deu de ombros e se sentou de novo, murmurando algo parecido com “tem que trabalhar, né?”. Pegou as cartas e mandou o outro na esquerda dele, que eu não conhecia tão bem assim, jogar sua próxima carta.
Antes de voltar para dentro, eu vi assim de relance, do canto do olho, a rainha de espadas meio encoberta no baralho, e um valete de copas na mão de Serginho.
— Pronto, tio Mumu. Posso lavar esses copos agora? — Minha pergunta saiu mais como afirmação do que como pergunta, porque eu disse já indo pra pia, enfiando o cabelo dentro da bandana.
— Já falei que Mumu não, hein! — Mumu retrucou bem bravo, e eu dei foi risada. — Quando você era criança, podia ser. Mas agora vai ter que ser Seu Mario. Só Mario, vai. Pode ser só Mario.
Mas minha pergunta ele não respondeu, então comecei a lavar os copos mesmo. Antes de ligar a torneira cheia de chiadeira da pia, ainda deu pra ouvir ele murmurar alguma coisa como “nem vende mais mumu aqui” e o tio Serginho gritando “truco, marreco!” bem alto de lá de fora.
— Mu... Mario, deixa eu te mostrar isso aqui.
Ainda foi difícil destravar o celular, por mais que secasse o dedo no avental. Vai ver foi isso que me fez parecer tão patética mostrando o post que eu tinha visto antes.
— Mil reais, tio! Acredita? Quase meu salário em prêmio!
— Vai lá, então. — Mumu claramente ficou ofendido com eu falar mal do salário que ele estava me pegando, e a comparação não foi uma boa ideia. — Se te deixarem entrar. Não tem que estar estudando pra inscrever?
A única resposta que pude dar foi guardar o celular de volta no avental e me voltar de novo para a pia. Era verdade: não iam deixar uma lascada que largou a escola participar. Eu só queria poder pagar mais que um aluguel, luz e um gato de internet.
Mas tive que me contentar com lavar os pratos acompanhando com o pé do ouvido o jogo dos tiozinhos lá fora. Dava pra imaginar que mãos eles tinham pegado só de ouvir os gritos. Foi bom, que distraiu um pouco: o feat da Ludmilla com o Thiaguinho deu lugar pro feat do Safadão com o Pedro Sampaio, os copos viraram pratos e o dia virou noite quando eu dei por mim de novo. Finalmente eu ia poder ir para casa, então soltei uma pergunta com o canto do olho pro tio Mumu. Ele alisou a cabeça com a mão e me pediu o avental.
— Não quer que eu fique mais? Tem gente aí, ainda. — Eu perguntei, mas saiu como afirmação, porque tirei o avental sem estender a mão pra ele.
— Imagina. Do Serginho eu cuido a partir daqui, pode deixar. Manda lembrança pra Larissa. — ele sussurrou no reflexo, por baixo do bigode. — Leva um guaraná pra ela.
— Precisa não, seu Mario. Ela não bebe nada dessas coisas, também. Diz que atrapalha a estudar. Mas obrigada.
Aprumei minha blusinha e reparei nela pela primeira vez desde que ganhei ela: credo, nem sabia que diabo de banda era essa. Nem saberia como falar esse nome, tudo mal escrito. Nem sabia onde tinha arranjado também. Eu realmente precisava de blusinhas novas.
Só foi sair de dentro do bar e, já na calçada, ouvi a voz que eu metade já tava até esperando, metade tava morrendo de medo de ouvir.
— Não vai dar tchau, não, Lica? — Serginho gritou de sua mesa. Eu suspirei, me virei, pra acenar. Pronto, feliz? E continuei a andar... mas ele insistiu. — Já saiu? Joga com a gente, então!
Fiz que não com a cabeça, sorrindo mais amarelo, e dei mais uns passos. Mas aí, no intervalo entre um sertanejo e outro do rádio que tocava aqui fora, eu ouvi um dos outros murmurar algo parecido com “igual o pai. Vaza e não dá satisfação pra ninguém”.
Eu parei, e só percebi meu olho arregalado e minha boca aberta quando passou um vento gelado. O estalo da minha língua foi a última coisa que eu fiz antes de me virar e voltar, pisando duro, pra mesa.
Mas sorrindo, claro.
— É que eu não sei jogar. — Eu disse, com a cara mais impassível que consegui manter depois de ver os olhos do Serginho brilharem.
— O Maneco nunca te ensinou? Sacanagem, pô! — Mal pude ouvir a frase, com a cadeira arrastando de novo. Mas, dessa vez, sentei, enquanto ele ficou de pé atrás de mim. — Truco é o seguinte: tem que mostrar que tá fraco quando tá forte e que tá forte quando tá fraco, tendeu?
Serginho recolheu todas as cartas e começou a embaralhar. Distribuiu três para cada um na mesa.
— São três rodadas, aí em cada uma você joga uma carta. Ganha a dupla que tiver a carta mais forte. Quem ganhar a melhor de três leva um tento. Quem fizer doze tentos, ganha.
— Aí a ordem das cartas é quatro, cinco, seis, sete… — Minha dupla, sentada na minha frente, estendeu a mão para fazer uma contagem, cada carta um dedo. — Dama, valete, rei. Às, dois e três. Da mais fraca pra mais forte.
Assisti a tudo muito curiosa, fazendo questão de confirmar duas coisas confusas: então quatro era a mais fraca e três era a mais forte? Isso mesmo. Dama, valete, rei, e não valete, rainha, rei? Pois é, “truco é machista”, eles responderam e riram. Mas tinha um detalhe.
Serginho virou, no centro, um sete de copas.
— Mas aí toda rodada tem uma manilha, que é uma carta mais forte que o três. E que é a seguinte da que virar. Então agora, olha só. A mais forte nesse tento vai ser a dama.
Pois é, “o feminismo chegou”, completaram e riram. Peguei minhas cartas e já senti, por cima do meu ombro, o sorriso do Serginho quando viu que minha mão tinha um três, um quatro e uma rainha de paus. Pelo gesto com a cabeça, pareceu uma mão bem forte.
— Vamos ver, então. — Serginho fez um gesto para que o cara na minha direita começasse a jogar. — Começa aí, pra ela ser o pé. Que aí ela vê como funciona.
O homem da direita começou baixo: jogou um cinco. Minha dupla jogou um dois, falando que já ia começar forçando para ajudar. O homem na minha esquerda então torceu o nariz e jogou um rei.
Eu cocei a cabeça, escolhendo bem a carta. Olhei pro tio Serginho, pedindo ajuda com uma expressão agoniada e apontando pro três. Acho que ele fez que não com a cabeça, mas não vi de todo jeito e joguei mesmo assim. Isso foi suficiente para todos rirem muito.
— Você matou meu dois! — A dupla recolheu as cartas e deixou em um canto. — A gente já ia ganhar! Agora já foi. Quem fez, joga! Vai, manda uma.
Aí eu ri, né? Que idiota, eu! Mas pedi desculpas, porque além de idiota eu sou muito boazinha, e joguei meu quatro. O cara à direita jogou um valete, prontamente respondido com outro valete pela minha dupla — que jogou resmungando que “agora já não tenho mais nada. Mas vamos aí, melou! Se empatar, a gente ganha!”.
— Mas isso é que não! — O som do ás esparramando sobre a mesa veio junto da voz do tiozinho na esquerda. Ele tratou de recolher as cartas e, então, riu pros outros três homens na mesa. — Vou pegar leve, tá? Não vou nem trucar.
Então, ele jogou uma rainha de copas sobre a mesa, triunfante. Até jogou o braço para trás do assento de plástico, levantando as sobrancelhas enquanto olhou pra mim. Eu senti meu sorriso tremer, ainda mais quando Serginho se viu na necessidade de explicar.
— Então, Lica, aí essa é uma manilha, entendeu? Ele podia ter pedido truco, que é fazer a rodada valer três em vez de um. Aí a ordem das manilhas é ouros, esp--
— Truco.
As duas sobrancelhas levantadas, em desafio, se tornaram apenas uma levantada, questionando. Serginho, no entanto, deu um sorriso e balançou a cabeça.
Parecer forte quando se está fraco e parecer fraco quando se está forte. Claro que eu sei jogar.
— Truco, eu falei. Não vai pedir? Porque eu vou. — Aí eu meti o louco, mesmo: bati várias vezes na mesa, com a carta ainda virada para baixo. — TRUCOOOO!
O homem na minha direita, espantado, deu uma risada e olhou pra dupla dele, que deu de ombros.
— Ué. Vamos ver, então. Desce.
Diz a tal da regra que eu teria que dar com a carta na testa do oponente à direita, mas eu tava mesmo a fim de bater com a carta na testa do homem que eu não conhecia tão bem. Em respeito aos meus tios de coração, talvez. Em despeito, também.
Eu tenho certeza que a carta ainda dançava no ar pra cair no chão quando todos finalmente puderam ver meus olhos arregalados e meus dentes rangendo. Lica, filha do Maneco, é o caralho.
— Vocês agora só me chamam pra pedir cerveja, tá entendido?
Mesmo por cima da música do rádio e do tilintar de um copo quebrando ao cair da mão de tio Mumu, todo mundo pôde ouvir eu pisando duro pra fora do bar. E bom mesmo.
Tentei não praguejar contra o emprego que eu tinha acabado de conseguir, e tive que pensar em Larissa pra lembrar por que eu precisava tanto dele. Aí que a raiva virou culpa. Eu precisava daquilo. Não queria servir cerveja pra quem, até ontem, tava cobrando dívida de jogo do meu pai no portão de casa. Queria era jogar com meus amigos no intervalo da escola... mas não ia ter jeito. Essa vida tinha acabado.
A não ser, pelo menos por um instante, que eu entrasse no campeonato. Eu ia ter que achar um jeito.
Que inferno. Eu sabia que meus pensamentos não iam estiar tão cedo. Eu tinha só começado a entrar na tempestade.
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Dica de truco da Lívia: É meio esquisita, a ordem das cartas pra quem tá começando. Se liga: as manilhas mais fortes são: paus (zap), copas (escopeta), espadas (espadilha) e outros (pica-fumo). Nessa ordem, então guarda essas cartas para quando o oponente achar que está melhor que você! Mas não adianta guardar muito, também. Melhor ganhar uma rodada e não saber o que vai acontecer na próxima do que morrer com o zap na mão.
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