Acordei com o despertador tocando incansavelmente, enquanto eu rolava na cama.
— Só mais cinco minutos — sussurrei, tateando em busca de trazer de volta o silêncio.
Eu precisava de mais cinco minutos. Ou talvez um pouco mais do que isso, alguns dias, quem sabe. O cansaço me definia desde que adiaram minhas férias devido ao final de ano. Com as festas e o aumento das vendas na livraria, meu supervisor não me daria o luxo de descansar nem por uma semana. Todos os meus planos foram desfeitos na reunião de ontem, quando fui informada de que estava escalada para trabalhar nos próximos meses como se já não tivesse feito exatamente isso até agora.
Quem inventou que trabalhar enobrece, na certa não precisava pegar transporte público ou madrugar para chegar no horário. Não é possível que alguém se submeta a algo assim de livre e espontânea vontade, sem precisar desesperadamente de dinheiro. Estou entediado, vou trabalhar doze horas por dia para recobrar o sentido da minha existência! Precisava haver uma necessidade intrínseca, a minha era meu irmão e o aluguel da casa. Essas eram minhas motivações para sacolejar no trem todos os dias, antes que o sol estivesse presente no horizonte. Não que eu pudesse reclamar, a outra opção era o desemprego.
Contra a minha vontade, levantei e fiquei sentada na cama. Aguardando até que a alma voltasse para o meu corpo, levava em média uns dez segundos para isso acontecer. Pelo menos quando eu não estava atrasada, se estivesse ela tinha que voltar enquanto eu jogava água fria no rosto para trazê-la na força do ódio. Geralmente funcionava, porque não havia outra opção. Para piorar, lembrei que o dono da livraria ficaria no meu setor durante todo mês. O que implicava em estar apresentável e aparentemente descansada. Obviamente o zumbi ambulante que todos os dias atendia aos clientes não cumpria esse requisito.
Como se fosse possível estar com uma boa aparência, tendo que atravessar a cidade em dois ônibus e um trem. Eu tinha que madrugar para chegar no horário e conseguir o fretado até a livraria. Então não era bem possível transparecer plenitude às sete da manhã, para atender clientes que muitas das vezes mexia em tudo e não levava nada.
Com determinação foquei em me trocar, depois acordar meu irmão para a escola.
— Luan. — Chamei.
Ele se remexeu e voltou a dormir.
— Acorda, estou saindo, você precisa ir para a escola.
— Não quero — resmungou sonolento.
— Você que sabe, estou atrasada. Preciso ir — informei sem paciência.
Na maioria das vezes eu insistia em vê-lo levantar, só que hoje não daria. Precisava correr se quisesse pegar o fretado e chegar mais ou menos disposta para o possível encontro com o dono da livraria. Assim começou meu dia, ainda tentei ligar para o Luan quando entrei no fretado. Contudo, o telefone dele caia direto na caixa postal.
— Droga! — Joguei o celular na bolsa, o ônibus sacolejava e eu acabei sutilmente despencando no meu companheiro de poltrona.
Ele estava sentado ao meu lado e eu não me acomodei totalmente antes de tentar ligar para o meu irmão. Erro meu, deveria ter sentado direito antes de me preocupar se aquele cabeçudo foi ou não para a escola.
— Desculpe — murmurei envergonhada.
— Não tem problema. — Ele sorriu e eu pude analisar melhor seus traços. — Você é?
— Ah — compreendi que gostaria que eu me apresentasse. Nunca o tinha visto no ônibus, podia ser funcionário novo. Estávamos mesmo precisando de pessoal. — Eu me chamo Mariane e você?
— Sou o Vinícius, prazer. — Estendeu a mão e tornou a sorrir.
Seus olhos quase se fecharam completamente e percebi que ele era um homem bem bonito. Os cabelos escuros, realçavam os olhos incrivelmente verdes. Certo, ele era mais do que apenas bonito. Tinha um ar de sofisticação, apesar da simplicidade de suas roupas e isso era algo a ser considerado.
— O prazer é meu — respondi sorrindo também.
Dei uma leve checada no conteúdo todo, coisa de dois ou três segundos. Talvez um pouco mais. Antes de desviar os olhos para a frente e pescar meu celular. Mandei um áudio perguntando se o Luan foi para a escola, fingindo que ter um cara tão bonito sentado ao meu lado não me afetava em nada. Resolvi pegar os fones de ouvido para tentar conter a minha paqueradora interior e comecei a batucar os dedos ao som de The Killers, minha banda favorita.
Fechei os olhos, procurando descansar enquanto ainda tinha a possibilidade, afinal, no trem e no ônibus eu vim esmagada e em pé. No fretado da livraria era onde eu podia descansar um pouco antes de começar o expediente. Era rápido, mas toda oportunidade para cochilar eu aproveitava. Vinícius se manteve em silêncio ao meu lado, como se não quisesse atrapalhar meu momento de paz.
Eu também não tinha nenhum assunto em mente àquela hora da manhã e preferi manter a boca fechada ao invés de correr o risco de me comprometer. Os quinze minutos passaram voando, enquanto todos se preparavam para descer, eu ouvi sua voz:
— Te encontro na livraria?
— Claro! — afirmei no automático, sem nem saber se de fato o veria. — Até mais.
Vinícius sorriu de olhos apertadinhos, fazendo meu rosto esquentar. Notei, inclusive, que ele era consideravelmente alto agora que estávamos ambos em pé.
Meus 1.70m, que geralmente intimidava os homens mais baixos, para Vinícius não deveria ser grande coisa. Acenei antes de pular do ônibus e esperar pelo senhor: eu pago o seu salário. Só que ele não apareceu, o dia estava passando e ninguém de diferente surgiu na loja além do Vinícius.
Ele começou um treinamento com a Paloma para vender, como imaginei. Comemorei internamente pelo colírio que teríamos na loja, porque Vinícius não era de se jogar fora. Todas as garotas já estavam com ele no radar, eu não era a única. Entretanto, da minha parte faria questão de admirar bem de longe, como aquelas sobremesas de padaria.
Eu não tinha sorte com sobremesa de padaria, o gosto geralmente não era tão bom quanto a aparência. Servia para homens no geral também, principalmente se o homem em questão fosse trabalhar comigo.
— Menina, você viu o gato que começou a trabalhar aqui! — Sabrina exclamou, olhando para Vinícius conversando com a supervisora.
— Vi sim, não sou cega — desdenhei, sem querer falar demais.
Sabrina tinha fama de fazer fofocas e eu não queria que Vinícius ouvisse o quanto eu o achei lindo.
— Será que ele namora? Não vi nenhuma aliança no dedo — Fiz que não no automático.
— Também não vi nada no ônibus — respondi, me arrependendo de ter mordido a isca tão facilmente.
— Vocês vieram juntos? — perguntou com os olhos grandes brilhando em expectativa.
Sabrina morava perto da loja e vinha andando, sortuda.
— Pegamos o fretado — contei, tentando não parecer muito animada ou interessada. — Agora me deixe terminar de ajeitar esses livros, o dono pode chegar a qualquer momento.
— Soube que ele não virá mais, relaxa. — Ela saiu rebolando, com certeza planejava passar em frente ao Vinícius do outro lado da livraria.
Acabei olhando naquela direção para confirmar, nesse ponto nossos olhares se encontraram e ele acenou de longe com um sorriso no rosto. Retribui mesmo sem querer, não deu para não sorrir de volta.
Que ridícula eu era, exatamente como todas as garotas da livraria. Não dava nem para disfarçar.
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