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Perfume Cadavérico

Os mortos falam mais que os vivos,

ou ao menos não mentem.

Angel Galán.


Os alto-falantes do intercomunicador eram somente um círculo achatado preso ao teto e em algum momento na Saleta de Controle de Áudio alguém sintonizara o Love Songs da Rádio Cidade, fazendo Knife, na voz melancólica de Rockwell, insinuar-se pelos recônditos do IML como um soturno convite à morte.

Knife…

Corta como uma faca

Como vou me curar

Estou profundamente ferido

Albert Pazzanese encontrava-se em sua mesa conferindo GECs, Guias de Encaminhamento de Cadáver, uma porção finalizada a um lado e outra aguardando para ser conferida. Há dois anos atuando como legista-chefe no Instituto Médico Legal do Butantã, habituara-se aos odores insalubres do local, porém o sistema de exaustão apresentara defeito pela manhã, reforçando a tétrica rivalidade entre fedentina de corpos putrefeitos e o rascante cheiro de desinfetantes — e, como se não bastasse, uma fragrância exuberante se infiltrava pelos dutos do ar-condicionado, proveniente das fileiras de dama-da-noite dispersas na calçada frontal do Instituto de Criminalística e pairando sobre as frias superfícies de aço inoxidável como um sinistro fantasma perfumado.

O doutor soltou um risinho nervoso. Sabia que aquilo não era possível, mas, àquela hora tardia da madrugada e sozinho no necrotério, preferia incutir em sua mente tal possibilidade a crer numa outra ainda mais perturbadora: o perfume vinha dali mesmo, do interior da Sala de Necropsia, inegavelmente exalado pelo cadáver da Unidade Oito, a última de um conjunto de quatro pares de mesas e o mais afastada possível de onde ele estava.

Ergueu a cabeça para o branco bem iluminado e quase doentio da sala, vagando os olhos pelos alto-falantes, que agora choramingavam Crying na versão de Roy Orbison e K.D. Lang, e pelas câmaras de resfriamento que forravam as laterais, convergindo para o saco cadavérico cinza sobre a Unidade Oito.

Lacrado.

Sentiu os pelos do braço e nuca se eriçarem lentamente, espichando-se como agulhas negras fincadas à pele, a palavra tremeluzindo diante dele como se zombasse da assertiva incerteza. Lacrado?, indagou uma vozinha irritante surgindo de alguma região desconhecida de seu cérebro. Sim, rebateu em pensamento, tais sacos possuem rígidas regras de segurança, sendo projetados para transportar e conter fluídos abióticos, agentes patogênicos e odores pútridos resultantes da decomposição — contudo, fora ineficaz em trancafiar aquele cheiro.

Albert abaixou a cabeça e continuou conferindo as guias, procurando subterfúgios para ocupar o pensamento. Conseguiu por alguns instantes, mas logo parou, esparramando-se na cadeira e esfregando os olhos sob os óculos sem aro, o rosto minando uma profusão pegajosa de suor frio.

Intimidado, era assim que se sentia.

Não queria admitir, porém, sabia não ter sido boa ideia transferir-se após sua saleta ser desativada devido a sucessivos surtos elétricos e constantes vazamentos no piso;

(avisei que seria estupidez colocar sua mesa dentro da Sala de Necropsia, ruminou a vozinha, ainda mais com os "defeitinhos" que você tem)

entretanto, o Instituto passava por uma série de problemas com a atual gestão e, no submundo da negligência e longe dos holofotes, penava com a deterioração de sua infraestrutura, precariedade no sistema de refrigeração de cadáveres, manutenção inapropriada da tubulação de esgoto, constantes baixas no quadro de funcionários e uma porção de outros "detalhes" que culminavam numa enxurrada de mais problemas.

Novamente o risinho nervoso, debochado agora — e a fragrância parecia se intensificar.

Talvez você precise de um 'tiro'; às vezes, dois são suficientes para aguentar o turno sem enlouquecer, pensou, relembrando que alguns colegas e funcionários se utilizavam deste "detalhe" para suportar as atrocidades decorrentes das doze horas de plantão.

A maioria das pessoas acredita que determinados profissionais desenvolvam insensibilidade à natureza brutal de seus ofícios; todavia, poucas reconhecem que o ser humano é capaz de se superar incessantemente no que diz respeito à maldade e devassidão.

E você conhece bem isso, não é Albert?

Conhecia, sem dúvidas.

Os chocantes Crimes da Rua do Arvoredo e da Mala, A Fera da Penha, Febrônio do Brasil, O Vampiro de Niterói entre tantos outros, nada mais seriam que versões sombrias das fábulas de Charles Perrault se comparadas às tramas atrozes que os cadáveres constantemente contavam durante os exames necroscópicos. Os mortos falam mais que os vivos, ou ao menos não mentem, asseverava o prestigiado investigador da polícia espanhola Angel Galán. E, de fato, o resultante era a verdade narrada por quem foi queimado, mutilado, espancado… enfim, sofreu infinda variedade de agressões que ocasionaram o óbito.

E.

Por mais habilidoso e experiente que o profissional seja, ele jamais conhecerá por completo o lamaçal pernicioso em que por vezes a mentalidade humana se afunda, afinal até mesmo dos mais belos sentimentos se faz combustível para alavancar desprezíveis barbáries — e muitos acabam buscando seus próprios meios para amenizar os horrores resultantes deste lamaçal.

Se mostrassem a Albert filmagens de seus colegas legistas, auxiliares de necropsia e motoristas de carro funerário traçando carreiras de cocaína na pia do banheiro, preparando-as para os insidiosos "tiros", ele alegaria total desconhecimento do fato, ainda que já os tivesse flagrado diversas vezes ou até os conduzido ao vestiário e lhes pedido para se manterem sentados, pois estavam entorpecidos demais para realizar qualquer tarefa. A profundidade que certos indivíduos chegam naquele lamaçal, às vezes, alcança proporções que vão além dos seus atos, despertando temores com os quais profissionais treinados não conseguem lidar.

O cadáver da Unidade Oito, lembrou-se.

Albert se levantou, saiu pela pesada porta e caminhou para o banheiro ao fim do longo corredor, o toc-toc ritmado de seus sapatos contra o piso ecoando sinistramente pelo ambiente solitário. Retirou os óculos e abaixou-se no lavatório, enxaguando o rosto com exagerado esforço. Terminando, puxou um punhado de toalhas de papel no suporte e se secou, se erguendo lentamente para olhar-se no espelho que ocupava toda a parte superior da parede.

Um sujeito alto e corpulento, de feições angulosas salientadas pelo queixo quadrado e perspicazes olhos negros; passava pouco dos sessenta anos, doze dedicados à tanatopraxia conjugados à agência funerária da família, trinta e cinco à carreira médica e vinte intercalados à Polícia Científica; dois casais de filhos, um para cada casamento fracassado e um terceiro que dava mostras de insucesso; barba de semanas com pontos brancos esparsos aqui e ali e suaves olheiras. Este é o doutor Albert Pazzanese, um homem de métodos e ciência, com quase toda a vida interligada às diversas facetas da morte — e que agora está com medo de um cadáver, escarneceu a vozinha com sua habitual petulância.

Albert a ignorou e por instantes se pegou pensando na profundidade daquele lamaçal, avaliando se os muitos anos de exposição não tinham mexido com as engrenagens de seu cérebro.

É uma possibilidade e você conhece histórias assim, de pessoas que desenvolveram fobias extremas ou paranoias absurdas após algum tempo lidando com a morte, não é? A indagação foi feita por uma segunda voz, que surgiu assim como a primeira; e esta era encorpada, dotada de um tom quase professoral.

O doutor Mitutoyo Yoki não pulara do quinto andar de seu apartamento em Pinheiros, completamente nu, após abrir a porta do banheiro e gritar à esposa que o ralo do chuveiro estava vomitando dedos e olhos humanos?

Sim, ele fizera isso e apurou-se que, dias antes, Mitutoyo examinara uma jovem que tivera os dedos das mãos decepados a golpes de talhadeira, os olhos arrancados e enfiados na boca, que foi então costurada pelo ex-namorado numa crise de ciúmes por ela ter trocado telefones com um amigo.

E instintivamente Albert recordou de Almerinda Alves, uma auxiliar de necropsia casca-grossa, que alugara um sítio remoto em Franco da Rocha, comprara um tonel metálico de duzentos litros, gasolina e óleo diesel, enchera-o, entrara nele e ateara fogo, queimando até os ossos. Num sucinto bilhete descoberto posteriormente, uma chocante observação: Quero ver alguém fazer piadinhas de mim ou enfiar coisas em qualquer um dos meus orifícios.

E o que aconteceu com aquele atendente de necrotério no semestre passado?, comentou a vozinha irritante, qual era o nome dele mesmo?… Brenno Marques… Ele até que era um sujeito legal, mas no fim, sei lá, tem que ser pirado para fazer uma coisa daquelas com…

Albert sacudiu a cabeça, afugentando-a. Não queria se aprofundar ainda mais no assunto, afinal cada indivíduo tem seu próprio batel de demônios para tomar conta e, quando um deles escapa, corre-se o risco de induzir outros a fazer o mesmo.

Cauteloso, dirigiu-se a um dos biombos, trancando-se e permanecendo escorado atrás da porta, à escuta. Aguardou alguns minutos, nenhum ruído; aliás, naquelas horas tumulares apenas o som monótono dos equipamentos de refrigeração se fazia ouvir, pois ninguém se atrevia a circular pelo piso do necrotério e muito menos entrar no banheiro.

Controle-se, Albert, e conseguirá superar mais essa, encorajou a voz moderada. Afinal, você já passou por tantas outras.

Mas admita: dessa vez é diferente, retrucou a vozinha, há algo naquele cadáver que me dá calafrios.

Albert esfregou Involuntariamente os lábios com o antebraço, salivando; e tentou resistir, mas sua mão direita penetrou sob o jaleco e alcançou uma pequena garrafa de Buchanan's 12 anos. Olhou-a como um amuleto, depois a guardou. Por vários segundos caminhou pelo cubículo, pensativo e temeroso — pressentia alguma coisa, porém não fazia ideia do que poderia ser.

Então.

Escutou algo e apurou os ouvidos: uma porta sendo aberta e um chapinhar de passos descalços se aproximando. Abaixou-se e sondou pelo vão do biombo. Nada. Ninguém. Deveria estar imaginando coisas, entretanto sabia que não estava. Esperou um momento. E. Uma torneira, duas, três e quatro. Eram as torneiras dos lavatórios da entrada e haviam sido ligadas em sequência, seu chiado aerado se alastrando pelo silêncio do banheiro com pressão ensurdecedora.

Albert abaixou-se novamente, dessa vez varrendo todos os cantos com o olhar. Nada — e até mesmo os chiados cessaram, de modo tão súbito que pareceram manipulados por alguma inteligência. As vozes dentro de sua cabeça também se aquietaram, abandonando-o com o que quer que estivesse ali. E o suor frio voltou, escorrendo-lhe pelas têmporas.

Duas novas batidas na porta do biombo; sobressaltado, ele apenas se afastou, constatando que não havia ninguém do outro lado.

— Mas o que é…

A pergunta morreu em seus lábios, pois notou a fechadura tremer e girar de Ocupado para Livre bem lentamente. Um clique. A porta destravou-se, começando a abrir. Albert foi se distanciando e, num gesto rápido, meteu a mão sob o jaleco e agarrou a garrafa de Buchanan's, seu amuleto, mas ela lhe escapou e só não quebrou por que caiu com a tampa de metal para baixo, quicando ao bater no chão e indo parar atrás do vaso sanitário. Estirou-se para pegá-la, ao compasso que a porta enfim se abriu com grande estrondo.

Revelando.

O nada à frente do biombo: simplesmente não havia ninguém ali. Aquilo nunca acontecera, não com tal intensidade, e Albert sabia bem o que significava — e envolvia o cadáver da Unidade Oito. Como ele é poderoso, pensou. Resoluto, destampou a garrafa de Buchanan's e sorveu um generoso gole, sentindo a essência do single malt descer-lhe pela garganta e reconfortá-lo como a um abraço de amigo.

— Que cada um cuide de seus demônios — grunhiu, levantando-se e saindo.

Inspecionou-se um pouco mais no espelho antes de deixar o banheiro, batendo as mãos no jaleco para remover vincos que não existiam; resignado, respirou fundo e encaminhou-se à Sala de Necropsia, os passos lentos e pesados de um prisioneiro que segue para o cadafalso — e nem notou as alavancas de acionamento das torneiras do lavatório se erguer e girar em sincronia, escarrando água como se estivessem engasgadas.

O cadáver era realmente poderoso.

22 de Abril de 2021 às 01:26 0 Denunciar Insira Seguir história
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