erickqalves Erick Q. Alves

As terras da morte são confusas e traiçoeiras, os que lá estão presos buscam escapar a qualquer custo. Não é um lugar que se queira visitar, porém Sif se vê obrigado a atravessa-la novamente e derrotar seu senhor.


Fantasia Fantasia negra Impróprio para crianças menores de 13 anos.

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I

Em meio à escuridão da floresta, Sif avista a única luz daquela região.

Um umbral que não estava preso a qualquer parede, nem possuía uma porta para segurar. Através dele era possível ver um brilho cinzento fraco, no entanto não se podia observar o que estava em seu interior.

Sif apertou a bolsa de couro em suas costas e verificou mais uma vez a espada na bainha, sem esperar mais o homem atravessou o umbral. Lá estava ele, na terra da morte, um lugar que preferia nunca mais ver. Seu céu eternamente cinzento parecia fazer o ar estar sempre pesado, a grama, ao lado da estrada de tijolos vermelhos, permanecia negra como a primeira vez em que a viu. Sif atira sua tocha na grama, a chama se apaga rapidamente. Ele volta a andar, sem precisar olhar para trás, já sabia que o umbral não estava mais lá.

O único som além de seus passos são as moscas sobre os cadáveres de animais e humanos na grama negra. Sif não diminuía o ritmo, sem parar para comer ou beber.

Nas lendas sobre aquela terra todos diziam que ela seria escura como a noite em uma caverna, porém a verdade está longe disso, embora não haja sol ali, os dias são claros demais, principalmente após sair da floresta perturbadoramente escura antes dela. Algo que pode ser enlouquecedor na terra dos mortos é o silêncio, pelo menos até se tornar infernalmente barulhento. Para a sorte de Sif, as moscas eram uma boa companhia durante aquele começo, sem buscar incomodá-lo, elas preenchiam a vastidão cinzenta como o canto de pássaros em um belo dia ensolarado.

— Bom dia, aventureiro! — saudou um homem caminhando sobre a grama.

E assim a paz terminava de vez. Moscas rondavam o homem, que não se perturbava com elas, sua aparência estava longe de ser saudável, os cabelos secos caiam aos montes, a pele repleta de feridas deixava de ser pálida para se tornar amarelada, como o pus que saia de seus olhos quase cobertos por uma camada branca. Sem responder Sif continuou sua caminhada.

— Um segundo, aventureiro! — gritou o homem correndo atrás dele, sem nunca deixar a grama. — Acredito que esteja tentando chegar ao trono de ossos.

Mesmo sem resposta da parte de Sif o homem insistia em persegui-lo.

— Tenho certeza que posso ajudá-lo. Eu conheço o caminho mais rápido até o trono!

— Eu também, — interrompeu Sif sem parar — não me incomode caminhante, conheço os truques dos seus.

O estranho parou com uma expressão surpresa. Ele tinha certeza que aquele homem havia atravessado o umbral há poucas horas. Mesmo que as lendas dissessem muito sobre aquele lugar, somente os que já estiveram ali sabiam de seus habitantes. Ele volta a perseguir Sif, com curiosidade dessa vez.

— Quem é você, aventureiro? — questionou o estranho.

Sif permaneceu em silêncio, aqueles que caminhavam na grama negra não mereciam atenção ou respostas sem necessidade, ainda mais se isso gastasse seu fôlego.

A falta de resposta pareceu irritar o homem, ordenando a Sif que se aproximasse dele na grama. Silêncio tornou a ser sua resposta. Ele estendeu seus braços, tentando inutilmente agarrar o homem na estrada, larga o bastante para mantê-lo em segurança mesmo que o tentassem puxar por ambos os lados.

Sem parar, Sif puxou parte de sua espada para fora da bainha, apenas o suficiente para que seu brilho chamasse a atenção do homem sobre a grama. O caminhante pareceu entender o recado, se afastando da estrada para a planície coberta apenas pela grama escura.

Mais uma vez a paz voltava, porém Sif sabia que não duraria muito, por enquanto ele aproveitava o zumbir das moscas, que se tornava cada vez menos frequentes. Nada mais o incomodou naquele primeiro dia.

O homem parou sua caminhada quando a noite caiu, tão repentina quanto um raio, escura como nenhuma outra. Sif retira pequenos galhos da bolsa, apenas o suficiente para aquecer alguns pedaços de carne que carregava. Antes que o brilho do fogo atraísse curiosos ele apaga até a última brasa. Seu jantar não é o suficiente para saciar toda sua fome, assim como os dois goles não bastam para acabar com a sede que tem, porém racionar é uma regra essencial à sobrevivência, em especial numa terra onde nada cresce ou vive.

Sem frio ou calor ele dormiu na estrada de tijolos sem se preocupar com ataques, de animais ou pessoas, a única ameaça por ali não pode deixar a grama.

O dia surge tão repentino quanto à noite, despertando Sif de imediato. Sem tempo a perder ele se ergue e segue seu caminho pela estrada de tijolos vermelhos. Ao seu lado uma dupla de homens com aparência doentia como o do dia anterior o segue, insistindo conhecerem um caminho muito mais rápido para o trono de ossos, basta que ele os siga pela grama para chegar lá em questão de algumas horas.

Sif persiste em seu caminho sem dar atenção para os dois. Não vale a pena debater com eles, nem mesmo matá-los, pois logo se tornariam tantos que ele passaria mais tempo os cortando do que andando e Sif sabia que haviam problemas maiores adiante, como a escassez de comida e água.

Em algum momento a dupla acabou por desistir de tentar atraí-lo para perto e apenas se foram, deixando-o apenas com o silêncio. Sif lembrava dos dias de calmaria no campo, o som do vento na grama, normalmente sinal de chuva, porém naquela terra não havia vento e ele desconfiava que a grama dali não faria um barulho agradável caso se movesse. Mesmo sendo uma atmosfera terrível, ele sabia que poderia piorar, mesmo que pareça difícil.

Para sua surpresa ele encontrou a carcaça de um carneiro em meio à estrada, ele não estava morto a mais que algumas horas e, para sua sorte, a carne demora a apodrecer naquele lugar, nessa noite sua fome seria saciada. Seu único problema, é que a luz do fogo necessário para assar a carne que pegou do animal atrairia muitos caminhantes. Embora Sif não se sentisse tão mal de perder um pouco de seu sono por uma boa refeição.

Vários pedaços do carneiro já haviam sido removidos por outra lâmina, alguém que caminhava a sua frente estava próximo, isso poderia ser um problema, nenhum inocente costumava durar naquela terra, talvez ele estivesse se aproximando de uma batalha. Covardes nunca andariam por aquela estrada, porém coragem em excesso também pode ser sua ruína, mesmo sem diminuir o ritmo Sif se manteve mais cauteloso.

A paisagem parecia nunca mudar só podendo ser diferenciada por uma carcaça ou ossada que surgia de forma aleatória sobre a grama.

Outro caminhante apareceu, tentando convencer Sif a se aproximar, dessa vez em troca de um punhado de ouro, ele sabia que conforme seguisse eles se tornariam cada vez mais frequentes, porém já haviam se tornado incômodos.

— Não tem por que se preocupar, meu amigo. — disse o caminhante quando Sif ameaçou sacar sua espada. — Apenas quero trocar um pouco de ouro por algumas informações. Sou um velho doente, não posso ameaçar um homem forte como você.

A aparência do caminhante realmente era de um doente com poucos dias para continuar vivendo, mas longe de um velho, o surpreenderia caso passasse dos trinta anos, embora ele soubesse que os como ele já não envelheciam mais.

— Velho e doente ou não, sei dos perigos de estar perto de um caminhante. — respondeu Sif. — Não me perturbe, criatura amaldiçoada, não quero ouro ou qualquer coisa que possa me oferecer, desejo apenas seguir meu caminho em paz.

Entendendo que não poderia atrair o homem na estrada com seus truques o caminhante ergueu suas poucas peças de ouro enfurecido, mas logo repensou no que estava prestes a fazer, gastar seu único atrativo daquela forma seria inútil. Sua raiva se transformou em uma enorme angústia.

— Não foi uma escolha minha estar nessa situação! — gritou o caminhante para o homem que se afastava cada vez mais.

Minutos antes da escuridão da noite cair Sif pode ver alguém caminhando ao longe na estrada, aquele deveria ser quem matou o carneiro que encontrou mais cedo. Não houve muito tempo para que se preocupasse com o encontro que viria, a escuridão que surgiu tão repentina quanto sempre não permitiria que qualquer um continuasse sua jornada ou voltasse para ver quem vinha.

Naquela noite o fogo de Sif foi mais forte, para que pudesse comer o que encontrou. Como esperado isso atraiu muitos caminhantes. A noite foi agitada, mas seu estômago estava cheio o bastante para que acabasse dormindo mesmo com os incessantes gritos e ordens de que se aproximasse.

Quando o dia surgiu a maioria dos caminhantes já havia ido embora. Um pequeno grupo persistente se mantinha em seu encalço enquanto andava. Três a sua direita e dois a esquerda, com os braços sempre estendidos, buscando agarrá-lo, mesmo estando longe demais para isso.

A silhueta ao longe se aproximava rápido, mesmo que a distância parecesse muito maior do que a percorrida por Sif. Quando alcançou o homem que caminhava a sua frente, Sif percebeu que ele realmente poderia ser uma ameaça. Os retalhos que ainda cobriam seu corpo estavam manchados de sangue, sua pele era repleta de cicatrizes profundas, tanto por arranhões, quanto por lâminas.

— Salve, andarilho! — saudou Sif enquanto se aproximava.

— Salve, senhor! — respondeu o jovem virando-se para olhá-lo. — Como é bom ver alguém que ainda esta vivo nesse lugar... Ainda esta vivo, não?

Sif concordou com a cabeça.

— Imagino que esteja buscando o trono de ossos. — disse Sif sem rodeios. — Somos ameaças ou podemos seguir nossos caminhos?

— Não tem porquê se preocupar, meu senhor. — respondeu o jovem sorrindo. — Enquanto não me atacar, não irei atacá-lo. Me chamo Vidar, e o senhor?

— Sou Sif. — respondeu ele. — Creio que então deveríamos continuar nosso caminho.

Sem esperar resposta Sif voltou a andar, o jovem logo se pôs ao seu lado, acompanhando seu ritmo com facilidade. Seu estado físico mostrava que deveria estar ali há muito tempo, seus pés estavam descalços e possuíam uma grossa camada de sujeira. A solidão parecia já estar afetando sua mente, o jovem não conseguia se calar.

Por horas eles andaram e durante todo esse tempo o jovem falou, contando sobre como era a vida na sua vila, como enfrentou dezenas de guerreiros tanto soldados do rei quanto da resistência, sem se importar com quem eram ou por que lutavam, apenas se eram fortes o bastante para aumentar seu renome. Sif se manteve calado a maior parte do tempo, mesmo sendo melhor do que ter os caminhantes como companhia, o falatório do jovem podia ser incômodo em alguns momentos.

— Vim derrotar o senhor dos ossos, — contou ele — mas acho que todos vêm aqui por isso. Eu disse para eles que seria um grande guerreiro e para provar vim derrotar aquele que dizem ser o mais forte do mundo. Acho que a parte mais difícil disso tudo é passar por esta terra, o caminho é longo demais, não sei como o senhor chegou aqui tão bem, minhas roupas foram rasgadas e lutei com muitos dos estranhos que andam na grama, embora isso ajude a me manter em forma. Mas se tudo isso me levar a realizar meu desejo nada mais importa.

Uma bifurcação surgiu no caminho, Sif sabia que isso era raro e um sinal importante naquele lugar, mesmo que levem para a mesma direção.

— Melhor seguirmos caminhos diferentes, — disse ele para o jovem — pelo menos um de nós chegara onde deseja.

O jovem pareceu pensar um pouco, ele claramente não queria abandonar sua única companhia em um longo tempo.

— O senhor chegou bem até aqui, acredito que tenha uma boa intuição, — respondeu ele — vou seguir por onde achar melhor.

— Se é o que deseja, vamos pela direita.

Até o anoitecer cair o jovem falou mais e mais. Sobre como se tornou um grande espadachim e dos grandes guerreiros que derrotou, sua força parecia ser seu maior orgulho.

A noite continuava escura como sempre, porém não tão silenciosa. Vidar comeu os pedaços de carneiro que carregava ainda crus, mais um sinal de que estava ali há muito tempo, um jovem durão, Sif sabia que ele era problema.

— Há quanto tempo esta aqui? — perguntou ele de repente.

— Perdi a conta depois do segundo ano, — ele riu com desgosto, — não deve ter sido muito diferente para o senhor. Roubei comida dos que caminham na grama, tentando me convencer a segui-los, quando tenho sorte algum animal aparece e consigo matá-lo e nos tempos difíceis como os amaldiçoados que tentam roubar meu sangue.

O golpe de Sif foi rápido, porém o jovem foi capaz de defender-se, erguendo-se com a espada pronta para lutar.

— Calma! — pediu Vidar. — Não como pessoas, pelo menos não as que andam pela estrada.

— Não é esse o problema, — respondeu Sif ainda calmo, — você nunca irá chegar ao trono de ossos e se continuar ao meu lado eu também não. Já está aqui a mais de dois anos e eu o alcancei em dois dias, entende a situação?

— Isso nem faz sentido! — gritou o jovem tentando golpear Sif, que desviou o ataque. — Tenho certeza que só quer chegar antes de mim, igual o outro! Se é assim, só continue andando e pronto!

— Andar durante a noite é muito arriscado, posso acabar pisando na grama. Vou te dar duas opções, pode voltar e desistir dessa busca em que já falhou ou pode esperar aqui por dois dias, se acabar me alcançando vou ter que matá-lo.

— Não vou desistir, nem esperar. — Respondeu o jovem se animando. — Faz tempo que não enfrento alguém vivo, vamos ver quem é o mais forte então!

Sif sabia que não poderia se arriscar se movendo muito naquele lugar. Vidar poderia ser tão forte quanto falava, porém Sif era um guerreiro experiente.

Vidar avançou, saltando contra o homem muito mais velho que ele, que deslizou para a esquerda, ganhando espaço para golpear com mais facilidade. Usando as duas mãos, para aumentar seu equilíbrio, ele cortou a mão de Vidar, fazendo-o derrubar sua arma. Antes que o jovem pudesse gritar de dor sua garganta foi cortada, mais um movimento e o coração do jovem foi perfurado. Antes que seu corpo caísse Sif o segurou, deitando Vidar com cuidado. Ele não gostaria que o sangue do jovem fosse bebido pela grama, talvez fosse uma forma de se desculpar pelo que precisou fazer.

O dia chegou e diversos caminhantes foram atraídos pelo cheiro de sangue durante a noite. Todos eles imploravam para Sif que arrastasse o corpo do jovem até a grama. Ele os ignorou, seguindo seu caminho, a maioria permaneceu tentando agarrar o corpo ensanguentado de Vidar, enquanto alguns seguiram Sif, buscando o sangue ainda fresco em seu corpo.

Ao longe Sif pôde avistar construções sobre a grama, ele parou, os caminhantes em seu encalço começaram a rir. Ele estava se aproximando de uma vila, aquele seria o lugar mais perigoso até ali.

— É a hora da verdade! — gritou um dos caminhantes. — Vai provar que tem coragem e morrer ou será um covarde?

Sif olhou para os caminhantes, à esquerda estavam dois, na direita quatro, ele precisaria ser rápido, algo que a idade já não ajudava muito. Com um saque rápido ele cortou o pescoço de dois deles, seguido do peito de um terceiro. O último tentou se virar para correr, mas Sif pode cortar uma de suas pernas o impedindo de fugir. Os dois do outro lado observaram assustados, sem se mover, Sif não confiava na sorte, mas teve que agradecê-la dessa vez. Ele correu antes que os dois pudessem reagir, atacando sem piedade, decapitando um e rasgando o pescoço do segundo, mais um golpe e este caiu, com uma enorme ferida em seu peito. Voltando para o lado direito Sif perfurou as costas do que havia arrancado à perna.

Buscando um pouco de fôlego ele se sentou na estrada. Sif sabia que precisaria ser rápido para passar por aquela vila. A maioria dos caminhantes costuma tentar te convencer a se aproximar para que possa te agarrar e entregar seu sangue a grama, em busca da liberdade. No entanto os que vivem em vilas como aquela, tem acesso a armas e cordas, sabe-se lá como, para que possam te ferir e puxar, estando vivo ou morto.

Após comer alguns pedaços de carne Sif se ergueu, esticou-se estralando diversas partes do corpo e pensando que já estava velho demais para esse tipo de situação.

Começando com uma corrida leve ele se aproximou da vila, quando o primeiro caminhante o avistou ele aumentou intensamente o ritmo, correndo com todas as suas forças.

O som de um berrante avisou que alguém se aproximava pela estrada, levando todos os que estavam em suas cabanas improvisadas a saírem com cordas, pedras e até mesmo lanças de madeira em mãos. Para a sorte de Sif eles não possuíam qualquer organização para encurralar os viajantes, porém seus números eram muito grandes para apenas um.

Algumas poucas pedras começaram a voar em sua direção, algumas eram desviadas por sua espada, outras ele conseguia escapar pela corrida que mantinha bem, mas ele mesmo sabia que isso não continuaria para sempre.

Uma das pedras atingiu acima de seu supercílio, o sangue não esperou para começar a escorrer, atiçando ainda mais seus agressores. Com suas lanças, que não passavam de galhos pontudos, eles tentavam bater no andarilho por ambos os lados, enquanto outros buscavam espetá-lo. Um deles conseguiu perfurar seu braço, o levando a se afastar para a direção oposta, dando a oportunidade a uma caminhante que o laçasse pelo pescoço.

— O peguei! — gritou ela eufórica. — Puxem logo!

Sif fincou sua espada na garganta da caminhante que o puxava, ela tentou agarrar a lâmina para removê-la, porém apenas conseguiu ferir-se ainda mais, outro caminhante tentou pegar a corda que caiu sobre a grama, porém Sif cortou seu pescoço com um golpe, aproveitando o movimento para cortar o peito da que laçou seu pescoço.

Ele se libertou do laço, tendo o cuidado de atirá-lo na estrada, para que não pudesse ser recuperada.

Assim que retomou sua corrida pedras e lanças voltaram a serem arremessadas contra Sif, que se protegia como podia, desviando sempre que possível. Ferimentos rasos e contusões surgiam aos montes, tornando seus movimentos cada vez mais difíceis.

Passar pela última cabana não significava escapar dos caminhantes, eles permaneceram em seu encalço por mais alguns minutos, um deles quase o derrubou ao atingir sua nuca com uma pedra, manter o equilíbrio foi difícil, mas Sif sabia que os corpos apodrecidos dos caminhantes não permitiriam que eles o seguissem por muito tempo.

Logo que o último a desistir desapareceu as suas costas ele se permitiu cair no chão, exausto, mas ainda vivo.

A maioria de seus ferimentos era superficial e não precisaria de curativos, exceto pelo corte sobre seu supercílio e o furo em seu braço, que levaram toda sua água para serem limpos. Suas mãos e pescoço estavam queimados, seja lá do que fosse feita aquela corda ele agradeceu por tê-la retirado logo ou poderia ter sofrido grandes estragos.

Sif deitou-se, observando o céu cinzento, não tinha forças para continuar naquele dia, ele esperou a noite antes de comer novamente. Restava torcer para conseguir continuar o caminho que faltava.

A noite veio e se foi sem que ele percebesse, no entanto seu corpo melhorou o bastante para que pudesse continuar sua jornada. Mas sem ter conseguido permanecer acordado para comer naquela noite, Sif decidiu continuar com o estômago vazio, não valia a pena perder tempo, já havia desperdiçado muito após ter fugido dos caminhantes no dia anterior.

O ritmo de sua caminhada parecia ter diminuído um pouco, porém ele sabia que não valia a pena se esforçar além do limite que seus ferimentos permitiam, isso só o atrasaria mais a frente.

Para a surpresa de Sif alguém estava caído na estrada. Ele se aproximou com cuidado, sabendo que poderia muito bem ser uma armadilha. O corpo era de um homem muito velho, mais do que qualquer outro já visto por Sif. Ele parecia tão doente quanto os caminhantes na grama. Era difícil dizer se ele ainda estava vivo ou se já havia morrido há tanto tempo que começava a apodrecer.

Sif empurrou o corpo com seu pé, nenhuma reação. Enquanto se virava para ir embora o velho começou a tossir, podia não estar morto, mas logo estaria. Ele sentou-se, ainda tossindo e acenou para que Sif aguardasse. O velho se ergueu e cuspiu um pouco de sangue na estrada.

— Bom dia, aventureiro! — saudou ele tremendo. —Está na estrada há muito tempo? Viu uma criança por esses campos? Ele parece ter menos de dez anos, cabelos escuros e os dentes tortos.

— Não, — respondeu Sif — nunca vi uma criança por esses campos, me lembraria caso acontecesse.

O velho suspirou decepcionado, o garoto provavelmente era de sua família.

— Se incomodaria de ser acompanhado, meu jovem? — perguntou o velho. — Não busco a glória no final dessa estrada, apenas meu filho perdido.

— Não estou com tanta pressa hoje, mas não pretendo esperá-lo caso me atrase.

Para sua surpresa o velho era ágil, tanto que conseguiria acompanhá-lo mesmo se não estivesse ferido. Ele não falava muito, mantinha seu foco nos campos ao redor, buscando a tal criança. Não seria tão estranho se ele fosse apenas louco e não houvesse criança alguma, a idade poderia já ter mexido com sua mente.

Ambos andaram sem paradas até o anoitecer, o velho carregava alguns galhos escuros, como os usados nas lanças dos caminhantes no vilarejo em que Sif passou. Com a pequena fogueira ele esquentou seu último pedaço de carneiro, o velho assou uma carne escura que já parecia podre há muito tempo, mas cheirava muito bem.

— Qual o seu nome, senhor? — perguntou Sif.

— Não me lembro mais! — o velho riu como se aquela fosse uma boa piada. — Também não é importante, não vamos permanecer juntos muito tempo, nem nos encontraremos novamente...

Sif balançou a cabeça, era um motivo justo, mas ainda assim estranho, aquele homem deveria estar a tempo demais ali para esquecer até mesmo o próprio nome.

— Como sabe se seu filho já não se tornou um dos caminhantes na grama? — ele realmente estava interessado na história daquele senhor, Sif entendia bem como ele se sentia.

— Eu sei que já, — respondeu ele afastando a carne do fogo — Não sou bobo, meu rapaz, sei o que acontece com os que pisam nessa grama. Minha esperança é o libertar dessa maldição, se sangue é a moeda dessa terra eu não me importo em dar o meu pela vida dele.

Sif balançou a cabeça dando um sorriso.

— Sei bem como é, — respondeu ele — tenho seis filhos e alguns deles me dão muito trabalho. Estou nesse lugar por eles.

— Foram amaldiçoados? — questionou o velho.

— Um deles foi, quero chegar ao trono de ossos para libertá-lo.

— Vai derrotar o maior guerreiro do mundo e entregar sua alma para desejar a liberdade do seu filho? — Sif balançou sua mão como quem diz mais ou menos, o velho gargalhou com força, um riso pesado e tenso, eles claramente se entendiam. — É um homem corajoso, espero que seu plano de certo, mesmo que você provavelmente vá se perder no processo.

Eles sorriram com pesar um para o outro, Sif ergueu sua carne, como em um estranho brinde, o velho aceitou respondendo com sua carne preocupantemente escura.

Assim que terminou de comer Sif deitou-se, ficando de costas para a fogueira entre os dois. O velho logo começou a cantar, era uma velha canção que as famílias banidas para a floresta escura ensinavam as crianças, para o caso perdessem. A canção falava da solidão daquele lugar e do sonho de um dia voltar a ver a luz do sol. Não era uma música feliz, quase nada era feliz naquela terra amaldiçoada ou na floresta que cercava sua entrada, mas servia bem para assustar os aventureiros que se achavam por ali, acreditando serem os espíritos de crianças mortas caminhando pela floresta.

A nostalgia apertou o peito de Sif, fazia muito tempo que ele havia deixado à floresta, porém os anos que passou lá o marcaram muito bem, assim como a primeira vez em que pisou naqueles tijolos vermelhos.

Ele não devia ter mais que doze anos, estava caçando um coelho e se deparou com o umbral iluminado, foi a primeira vez que viu a luz desde seus três anos, mesmo assim ele sabia que não era do sol, uma luz cinza e fraca. Vozes pareciam sussurrar, o convidando a entrar e ele realmente queria segui-las, mesmo que parecessem muito mais ameaçadoras que convidativas. Sua curiosidade infantil o levou até perto do umbral, sua ideia era passar sua mão para saber se era seguro, mas assim que seus dedos tocaram a entrada ele se viu em outro lugar. Uma terra sem árvores e coberta por uma grama negra. O céu cinzento brilhava de forma estranhamente errada, mesmo para quem não se lembrava do céu comum, a estrada de tijolos vermelhos era agonizante e parecia cada vez mais difícil respirar.

Sua visão começou a escurecer e o jovem sentiu que estava prestes a cair, porém ele não queria tocar os tijolos do chão com sua aparência grudenta, em sua imaginação fértil, ele acreditava que ficaria preso naquela estrada.

Em sua inocência Sif tentou cair sobre a grama...

Por um momento ele se sentiu arrependido daquela ideia, mesmo sem saber o porquê, uma onda de memórias invadiu sua mente, quase todos as vezes em que ele sentiu raiva de alguém ou da situação miserável de sua vida.

Alguém o segurou, não de uma forma carinhosa ou acolhedora, mas desesperada e estranhamente conhecida. Ele ergueu o olhar, seu pai segurava um coelho em uma das mãos e sua camisa na outra. Com um puxão forte e desajeitado ele trouxe o garoto para perto, abraçando seu corpo magro com força.

— Sif, — disse seu pai o apertando ainda mais — acho que encontrou uma saída dessa floresta...

— Não quero viver aqui...

— Ninguém pode viver aqui, meu filho. O que você encontrou foi uma forma de sairmos da floresta para a verdadeira luz.

Seu pai segurou o coelho pelas orelhas diante de seus olhos e o atirou na grama escura. Da forma como caiu ele ficou, algumas gramas atravessaram seu pequeno corpo, o sangue escorreu rápido demais, como se o solo tivesse anseio em prová-lo. Os pelos do coelho caíram em várias partes e seus ossos podiam ser vistos sob a pele.

— Nunca mais entre aqui, filho. E caso precise entrar, jamais pise nessa grama. Acho que preciso contar a você algumas histórias.

Como a maioria das lembranças de sua infância, aquela não era boa, mas havia o ajudado mais de uma vez. Seu pai o ensinou muito, como conseguir comida na floresta, mesmo que não pudesse ver, a lutar e muitas outras coisas, como não confiar em estranhos...

Os passos do velho eram silenciosos e mascarados pela canção, porém quando se depende da audição para comer você escuta realmente bem e não é uma habilidade que se perde facilmente. A respiração do velho se alterou um pouco, mudando o tom de sua voz, Sif rolou para o lado desviando da faca que lascou um pedaço do chão. Ele chutou o rosto do velho, afastando-o.

Ele se levantou rápido, mas antes que pudesse sacar sua espada o velho atacou novamente, para alguém tão acabado ele era perigosamente ágil. Sif conseguiu agarrar seu braço e arremessá-lo ao chão com um golpe que seu pai o havia ensinado. A faca caiu da mão do velho e, antes mesmo que pudesse entender o que ocorreu, Sif perfurou seu peito três vezes com a própria faca.

— Não! — implorou uma voz fina atrás dele. — Traga ele para cá, rápido.

Na beira da estrada estava um garoto, tão jovem quanto Sif quando pisou naquele lugar pela primeira vez, a maior parte de seus cabelos havia caído restando apenas a cabeça cinzenta demais. Sua pele parecia tão velha quanto à do homem sangrando no chão, quanto tempo ele estaria tentando libertar seu filho com o sangue dos que passavam por ali?

— Por favor... Me leve... — implorou o velho.

Sif não acreditava que os caminhantes poderiam ser libertados pelo sangue, independente de quem fosse, mas entendia o martírio de um pai diante da dor do filho. Ele arrastou o velho até seu filho e estava pronto para jogá-lo na grama.

— Não! — gritou o jovem. — Não o coloque na grama, não quero vê-lo sofrer ainda mais.

Ele deixou o velho próximo ao garoto e voltou a se deitar, caso eles tivessem algo a dizer não seria para ele.

Quando o dia chegou Sif se levantou, o corpo do velho estava intocado, com o garoto em pé ao seu lado. Eles se encararam, mesmo com o corpo jovem ele claramente já não era mais criança. Sif continuou seu caminho, na beira do gramado o garoto acompanhou sua caminhada em silêncio.

Quando o corpo do velho já havia sumido o jovem parou, aguardando que Sif se afastasse um pouco antes de perguntar:

— Por que estou preso aqui?

Ele parou. Aquela podia não ser mais uma criança, mas também não teve a oportunidade para realmente crescer, há quanto tempo aquela terra estaria roubando sua inocência?

— Essa terra se alimenta de sangue e ódio. — Respondeu ele sem se virar. — Quem não pode oferecer ódio para ela tem seu sangue tomado. Mesmo que seu ódio não seja por alguém, apenas pela vida que leva ou até mesmo por esse lugar, se for o bastante para ela, ela te prende... Não sei por quanto tempo.

Ele retomou seu caminho, deixando o pequeno caminhante para trás.

Os dias seguintes passaram sem grandes perturbações, não haviam mais moscas para preencher o silêncio dos campos, mas isso não perturbava muito o viajante, significava que já havia se afastado de qualquer entrada daquele lugar. Em alguns momentos caminhantes da grama vinham incomodá-lo, oferecendo comida ou ouro, alguns até mesmo tentavam atacá-lo com alguma arma, porém logo eram derrotados ou fugiam.

Já na metade do nono dia um caminhante se aproximou, de certa forma ele parecia diferente da maioria, mais velho, porém não tão doente.

— Boa tarde, aventureiro. — saudou ele, se aproximando — Buscando o trono de ossos?

Sif passou por ele em silêncio, o caminhante o segue, porém sem dizer mais nada. A postura do caminhante é estranhamente pacífica, embora seu olhar esteja repleto de dor, seu ódio não parece sanguinário como o dos que Sif encontrou antes, de certa forma ele lembra a criança amaldiçoada que havia encontrado fazia alguns dias.

Sif não sentiu necessidade de espantá-lo e acreditava que isso não faria diferença de qualquer maneira.

Ao cair da noite a fogueira de Sif brilhava fraca como sempre, apenas o suficiente para aquecer sua comida.

O caminhante sentou-se a sua frente sobre uma canga de couro. O silêncio entre os dois começou a incomodá-lo, era estranho estar com alguém tanto tempo sem dizer nada, mesmo não sendo uma pessoa de verdade.

— Você não parece um caminhante. — disse Sif mordendo um pedaço de carne.

— Acho que os que andam por essa estrada não estão acostumados conosco! — disse o velho rindo alto. — Quando os amaldiçoados finalmente percebem que alimentar essa terra com mais sangue não vai comprar sua liberdade acabam se afastando daqui. Além do horizonte existem cidades inteiras de caminhantes pacíficos. Lá temos árvores que parecem mortas, mas ainda crescem e até animais que podemos criar. O couro deles é difícil de ser cortado, mas resiste bem a essa grama, ao ponto de podermos nos sentar nela. Até mesmo na terra da morte a vida encontra uma forma de prosperar.

Era algo difícil de acreditar, que qualquer coisa pudesse viver ou crescer naquele lugar amaldiçoado, mesmo muito longe.

— Então é um lugar de paz para vocês?

— Não, não... — o caminhante olhou para cima pensando. — Não existe paz nessa terra, no entanto estamos melhores do que quem permanece buscando uma liberdade que nunca chegará, é melhor sofrer em um lugar onde todos te entendem do que abandonado na beira da estrada.

Sif entendia a situação, não existe paz de verdade para espíritos de ódio.

— Era um guerreiro? — perguntou ele, aquela era uma oportunidade rara de conversar com alguém parecido com ele. — Seus olhos dizem que matou muitos.

— Sim! Deve ser como eu para notar isso. Minha família foi banida para a floresta, vivemos lá até que só restasse um de nós. Eu era o mais novo, então quando todos morreram eu pude sair. Vi a luz pela primeira vez quando tinha mais de vinte anos. Acabei me juntando a revolta contra o rei, lutamos muito, perdemos tantos companheiros que nem posso contar, matamos ainda mais. Eu era um dos maiores guerreiros da época, mas acabei sendo derrotado e jogado na floresta novamente. Acabei encontrando a entrada para aqui... Estava seguindo um carneiro e subi na grama. Matei muitos outros em busca de seu sangue, mas de nada adiantou, desisti após alguns anos e me afastei da estrada, acabei em uma cidade, a maior surpresa de toda minha vida... Ou morte!

O velho riu, ele realmente já não se importava com seu estado, podia não estar em paz, mas também já não era mais um atormentado.

— Você sabe quem foi o último que passou pelo guardião a frente? — perguntou Sif.

— Hum... Lembro-me que não faz muito tempo. Foi um jovem de cabelos longos e olhos escuros.

— Que arma ele levava? — a ansiedade de Sif era clara até para ele.

— Uma espada longa, com um fio vermelho no cabo. Veio tomar seu lugar?

— Na verdade vim derrotá-lo, preciso apenas do poder do trono.

Eles conversaram por um bom tempo, mas Sif sabia que precisava descansar, se estivesse próximo do rio precisava estar em boas condições.

Quando o dia nasceu Sif olhou para a grama, procurando pelo velho, mas estava sozinho novamente, será que realmente havia alguém com ele na noite anterior ou a loucura o tivera alcançado? Já não importava, ele precisava terminar o que veio fazer ali.

O portão surgiu ao longe de forma repentina, Sif já havia visto acontecer na última vez em que percorreu aquele caminho, porém ainda era surpreendente. Perante o portão estava uma criatura horrenda demais para viver sob a luz do sol, com três faces deformadas em sua cabeça, musculoso como um touro, tão grande quanto uma casa, sem roupa alguma, carregando um enorme martelo de pedra, o guardião do segundo portão.

O caminhante se aproximou sem que Sif percebesse, sua alma de guerreiro apreciaria uma boa luta.

— O último a passar por aqui foi quem deixou aquela cicatriz no peito do guardião. — contou ele.

Uma marca percorria o peito da criatura de uma ponta a outra.

— Ela é rasa... —respondeu Sif. — Ele não é tão forte quanto parece.

Sif avançou com a mão sobre o cabo de sua espada, o guardião respirou com mais força, parecendo rosnar. O homem ignorou sua ameaça e se aproximou do portão, assim que tocou suas grades, tentando abri-lo a fera atacou. Sif desviou do martelo, sacando sua espada ele cortou o cabo da arma. A fera gritou com suas três bocas, preenchendo os silenciosos campos da morte. Com seus braços gigantescos a criatura tentou esmagá-lo, mesmo com a idade avançada e os ferimentos parcialmente abertos Sif não teve dificuldades para escapar, com um giro rápido ele arrancou um dos braços da fera, que cambaleou para trás urrando de dor. A fera abriu sua guarda, uma brecha perfeita para que ele atingisse seu abdômen, o cortando de ponta a ponta, dividindo a besta em dois.

Como em uma fútil tentativa de continuar lutando o torso da fera caiu na direção oposta a de suas pernas. Sem esperar, Sif se voltou para o portão, pronto para seguir. Assim que sua mão tocou a grade a criatura urrou em agonia e, antes que ele pudesse perceber, se arrastou até o portão, usando seu braço restante para liberar a passagem de Sif.

— Só posso vir até aqui! — gritou o caminhante. — O próximo portão será bem mais difícil, desejo sorte para você!

O portão foi batido com força às costas de Sif. Diante dele havia um pequeno pedaço de terra molhada, todo o restante estava coberto por um enorme rio vermelho e viscoso que corria lentamente. Coberto até o joelho pelo rio de sangue estava um caminhante, em sua mão ele carregava um longo remo de madeira escura.

— Há quanto tempo está nessa terra? — perguntou o caminhante.

— Levei dez dias da entrada ao guardião. — respondeu Sif.

O caminhante apontou para um bote longo ao lado do portão, Sif o puxou até onde o caminhante estava. O bote era pesado, mais do que ele se lembrava, provavelmente por culpa da idade.

Os dois subiram, o caminhante começou a remar, cortando a leve correnteza, mantendo o bote sempre reto. Não demorou para que outros caminhantes começassem a aparecer, nadando sempre por perto, mas nunca surgindo na superfície.

Como sempre a noite caiu de repente. Sif não fez sua refeição, nem relaxou sua postura para descansar ou cochilar um pouco.

Tal qual um peixe salta da água, uma caminhante deixou o rio vermelho e caiu sobre o bote, pronta para agarrar Sif e afogá-lo no sangue que os cercava. Assim que Sif repousou a mão sobre sua espada, o barqueiro acertou a cabeça da clandestina com seu remo, jogando-a de volta ao rio.

— Este homem tem o direito de ser guiado! — gritou o barqueiro. — Não podem tocá-lo enquanto estiver sobre este bote!

As pequenas ondulações ao redor do bote se afastaram, mesmo na terra da morte havia regras e Sif conhecia a maioria delas.

Mais um dia veio e se foi. O sono e a fome incomodavam Sif, mas não o distraiam. Quando anoiteceu não demorou para que a ponta do barco se inclinasse um pouco na direção da correnteza. Sif removeu parte da espada de sua bainha e, sem se virar, disse ao barqueiro:

— Mantenha o curso correto... Ou vai juntar-se ao último que tentou me enganar.

Sem debater, o barqueiro retomou ao curso certo. Ninguém poderia atacar Sif enquanto estivesse no bote, mas caso se perdesse ele acabaria morrendo de qualquer forma.

Na metade do terceiro dia eles avistaram a margem. Não levariam mais que alguns minutos para chegar.

Há pouco mais de três metros o barqueiro parou, Sif levantou-se, estralando várias partes do corpo, não precisava perguntar, sabia o que aconteceria ali. Ele saltou, mergulhando no sangue viscoso e fétido que compunha o rio.

Ele nadou tão rápido quanto pode, chegando a margem já sacando sua espada. Meia dúzia de caminhantes o seguia, vazando sangue de todos os orifícios do corpo.

Sif esfregou os olhos, buscando limpar minimamente o sangue que ofuscava sua visão. Os caminhantes não aguardaram, eles desejavam sua morte como se fosse a salvação da prisão em que estavam, talvez pudesse ser, mas não dá forma que gostariam.

Sif arrancou um braço do mais próximo, no entanto ele não se afastou, apenas persistiu em sua busca insensata.

Não foi uma bela luta. O chão escorregadio os derrubava constantemente, o grupo lutava de forma desesperada, sempre tentando puxá-lo de volta a área mais profunda. Os golpes de Sif não tinham precisão, nem eram tão fortes como de costume. Ele seguia balançando sua lâmina como podia, se esforçando para que o sangue não a fizesse escapar de sua mão e se perder no fundo do rio.

Quando finalmente perfurou o peito do último caminhante ele não permitiu que caísse. Decapitou o caminhante e arremessou sua cabeça sobre o bote. Visivelmente desapontado o barqueiro se virou e começou seu caminho de volta a outra margem.

Na pequena porção de terra em que Sif estava se encontrava o terceiro e último portão que ele precisaria passar, ao seu lado uma fina corrente de água escorria para o rio de sangue. Sif aproveitou para lavar suas mãos e o rosto.

O guerreiro pôs dois dedos dentro da própria garganta e vomitou todo sangue que por acidente havia engolido. Fez uma pequena última refeição e lavou sua boca na fina fonte de água. A vontade de engolir a água era forte, porém ele preferia não se arriscar a beber qualquer coisa que corresse naquela terra.

A única coisa que se podia ver através das grades do portão era a mais profunda escuridão. Não era necessário um guardião por ali, o barqueiro já era responsável por desviar os viajantes de sua rota. Sif abriu o portão e atravessou suas sombras, levando apenas sua espada.

A luz na terra dos ossos parecia mais falsa do que nos campos da morte.

Não havia estrada para guiar seu caminho por ali, porém não era preciso, quem já esteve naquele lugar não costuma esquecê-lo. Sif seguia esmagando ossos a cada passo. Ao longe podia-se ouvir um forte vento que enganaria os desavisados, levando-os a crer que a mais leve brisa poderia correr por ali.

Seguindo o som Sif escalou um grande monte de ossos, avistando o gigantesco furacão em meio a enorme planície branca. Caminhar por ali o lembrava levemente da neve, embora ele estivesse com os pés afundados em ossos moídos até se tornarem pó.

Quanto mais se aproximava do furacão mais pedaços de ossos voavam em sua direção. Não era difícil se manter a salvo dos maiores, no entanto os pequenos, que eram maioria, constantemente o perfuravam, se prendendo fundo em sua carne. Seria tolice parar para removê-los e ele já sabia que se tornaria ainda pior mais a frente.

Diante do furacão era possível perceber que não havia vento algum ali, os ossos giravam como que por vontade própria, protegendo seu senhor no trono.

Sif não parou para observar a beleza da aberração diante dele, entrando no caótico e violento turbilhão, apenas seguiu, protegendo seus olhos.

Não era possível ver um palmo a frente, mas Sif sentiu sua perna ser ferida, um grande pedaço de osso perfurou sua coxa, sangue aquecia sua pele, escorrendo até seu pé. Cada parte exposta de seu corpo agonizava com a dor dos pequenos cacos que a dilaceravam, sem chances de defesa. Ele rangia seus dentes, evitando ao máximo gritar, para que os ossos não tivessem a chance de destruí-lo por dentro.

Antes que percebesse ele deixou o turbilhão, a agonia parou tão de repente que ele sentiu suas pernas fraquejarem. Sif baixou suas mãos e lá estava ele, o senhor dos ossos em seu trono esbranquiçado, feito dos senhores anteriores a ele.

O senhor dos ossos ergueu seu olhar para ver quem invadia suas terras. Não havia alegria ou ódio em sua face, apenas a calmaria de quem já partiu.

Seu peito estava protegido por uma armadura feita com ossos. Sif observou seus olhos, tão escuros e belos quanto os da mãe. Seus longos cabelos, que ele tanto insistia para que cortasse, estavam soltos. A pele jovem já perdia todo seu brilho, mas Sif sabia que ele ainda vivia sob ela.

Sif arrancou o osso preso em sua coxa, o atirando de volta ao seu lugar no turbilhão. Ele puxou sua espada, a segurando com ambas as mãos, precisaria compensar seu ferimento de alguma forma.

O senhor dos ossos deixou seu trono, puxando sua longa lâmina. Sua juventude e os dons da morte aumentavam suas vantagens sobre o velho a sua frente. Nada disso o fazia se sentir confiante, afinal ele já não sentia nada.

Foi como ver um pássaro mergulhando no ar, o senhor dos ossos avançou contra Sif rápido demais para que pudesse se desviar. Tudo o que pode fazer foi bloquear seu ataque, um golpe pesado demais para alguém do seu tamanho. Sif soltou sua espada e agarrou o braço do senhor, girando em seus calcanhares e usando o peso do próprio jovem para arremessá-lo ao chão.

A armadura de ossos rachou com a pancada, mas o senhor sequer expressou dor. Sif pegou sua espada de volta.

O jovem levantou em um pulo, correndo na direção do invasor. Sif desviou-se por pouco, conseguindo cortar um pedaço do braço de seu inimigo.

Mesmo sem sentir a dor do ferimento o senhor dos ossos ainda possuía um corpo com limitações e o corte impedia que pudesse segurar sua arma com a mesma destreza. O jovem era forte e muito mais ágil que Sif, também não sentia dor nem hesitava, mas ainda assim possuía duas grandes desvantagens, suas experiências eram poucas comparadas as de Sif e tudo que sabia havia aprendido com ele.

Os golpes do jovem pesavam contra a defesa de Sif, mas cada um era uma abertura para que fosse ferido.

Cortes cuspiam sangue por todo o corpo do senhor dos ossos, ele não parecia cansado, no entanto seus movimentos estavam lentos e desajeitados. O jovem atacou sem técnica alguma e, mesmo com a perna ferida, Sif não teve dificuldade para desviar, atingindo a nuca do senhor com a lateral de sua espada, o derrubando de uma vez.

O viajante se aproximou do trono de ossos, sem se importar em dar as costas para seu inimigo.

No centro do trono estava uma caveira, tão escura quanto à noite, destacando-se em meio aquele mar branco, Sif fincou a ponta de sua espada na testa da caveira, a atravessando como se fosse líquida. Tentáculos sombrios e viscosos envolveram sua espada até alcançarem seu braço.

Centenas de vozes preencheram os campos mortos cobertos por montanhas de ossos:

— Qual seu desejo, mortal?

— Liberdade para os meus descendentes! — ordenou Sif.

O homem sabia que era minúsculo perante os donos das vozes, porém eles eram insignificantes para ele, assim como qualquer um que habitasse aquela terra amaldiçoada.

As sombras ao redor de seu braço o apertaram com força, ele rangeu seus dentes tentando não gritar, um esforço em vão. Quando seu braço foi arrancado e o chão sob seus pés manchado de vermelho, Sif gritou em agonia. Aquela era a maior dor de sua vida até o momento e, pela quantidade de sangue que perdia, imaginava que seria a última.

Ele caiu ao chão sem forças, seu olhar se desviou na direção do senhor dos ossos. O jovem se erguia lentamente, seu corpo parecia pesar muito mais, ele se voltou para Sif. A cada passo em sua direção um pedaço dos restos de seu peitoral se desfazia em pó e o ritmo de seu andar aumentava. Ele se ajoelhou ao lado de Sif, lágrimas escorriam por todo seu rosto, porém um enorme sorriso o dominava.

— Pai! Eu... — começou o jovem, mas engasgou com o próprio choro.

—Sim... — disse Sif com dificuldade. — Você conseguiu minha criança. Toda a realeza está morta... A resistência venceu graças ao seu sacrifício.

As lágrimas do jovem caiam sobre o rosto de Sif, era bom sentir algo quente naquele lugar. O sorriso do jovem era um misto de alegria e sofrimento, mas ele ficaria feliz se a última coisa que visse fosse o sorriso de seu filho.

— Foi tudo como me contou, pai... Os caminhantes, a grama bebedora de sangue, o rio, o barqueiro tentando me enganar, a terra coberta por ossos. Sempre achei que fossem lendas, como sabia de tudo isso?

— Seu avô... — Sif respirou fundo — ele se tornou o senhor dos ossos para matar o rei e isso libertou os que viviam na floresta, mas não foi suficiente... Como te disse, toda a realeza era corrompida... Eu não podia viver sabendo que meu pai entregou sua alma pela minha liberdade, então vim tomar seu lugar. Depois de derrotá-lo não me tornei o senhor dos ossos, mas o trono me chamava, consegui resistir e voltar, assim descobri que você precisa estar no trono para ser o senhor deste lugar...

A visão de Sif começou a escurecer, sua boca estava seca demais para continuar a falar.

— Tudo bem, pai. — disse o jovem, levantando-o em seus braços. — Vamos voltar, pode me contar tudo em casa.

Ele queria dizer que já não adiantava mais, porém tudo se apagou, ainda sim seu coração estava feliz por seu filho estar livre.

15 de Março de 2021 às 15:37 6 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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Erick Q. Alves Palavras são como brasas, quando juntas podem gerar chamas brilhantes que aquecem ou destroem.

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Nath Bazan Nath Bazan
Olá! Faço parte da Embaixada brasileira do Inkspired e estou aqui para lhe parabenizar pela Verificação da sua história. A sua história é espetacular do início ao fim! Ela é extremamente criativa e cativante; foi construído toda uma atmosfera macabra que é demasiadamente fascinante. O Trono de Ossos é uma narrativa completamente original e autêntica, sendo que a sua escrita é excelente, pois consegue expressar com exatidão o quão sombrio é esse mundo e também os sentimentos presentes nos personagens, como seus tormentos e ambições. O como a narração é feita é, sem dúvida, impecável. Ela consegue prender a atenção do leitor e levá-lo para dentro do seu universo à medida que a história vai se desenvolvendo. A criação do ambiente, cujo é completamente macabro e sombrio, foi feito de forma sem defeitos. Tanto os caminhantes quanto o desespero deles é abordado de um modo que causa uma tensão incrível, algo excelente para um conto de terror. Enquanto lia a obra, me veio a mente algumas referências do texto ‘’Odisseia’’, de Homero, o que é algo magnifico. Sif, sendo um personagem muito interessante, principalmente quanto a esse lado experiente e sombrio, me lembra Odisseu. O mundo dos mortos onde se passa a história remete ao Tártaro – tem até um trecho que envolve um lago e um barqueiro, remetendo a mitologia grega do rio Estige e do Caronte – e os desafios pelos quais Sif passa é como os de Odisseu, que desesperadamente tenta voltar para Ítaca, todavia, os objetivos são diferentes, por mais que ambição seja a mesma. A sua escrita é envolvente e você tem muita criatividade, ler O Trono de Ossos foi um enorme prazer! Eu espero ver mais textos seus aqui pelo Inkspired! Felizes festas de fim de ano, abraços!
December 21, 2021, 05:50

  • Erick Q. Alves Erick Q. Alves
    Não consigo expressar minha surpresa e alegria ao ler seu comentário, principalmente porquê só vi a verificação agora. Muito obrigado pelo carinho com que tratou minha história e espero ainda postar muitas por aqui. January 07, 2022, 20:21
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