"Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não haveria pobreza no mundo e ninguém morreria de fome."
Mahatma Gandhi
Vinte e cinco de maio de três mil e vinte, o prefeito Dado Guerra caminhou pelo corredor da sede distrital para apresentar a revisão do Plano Diretor. Logo atrás, seguiam seus assessores levando garrafas de água descontaminada. Ao entrar na sala de reunião, o grupo de planejamento se levantou em atitude de respeito hierárquico. Sentaram-se à mesa, iniciando questões preliminares. A sala era ampla e tecnológica, mas o seu interior contrastava com imagens decorativas do que era a localidade distrital há séculos atrás, no tempo dos antigos: quadros com imagens aéreas da baía de Guanabara, da Apoteose com desfiles do Carnaval e de praias lotadas. Numa parte da sala, a estátua de bronze de Pereira Passos encomendada pelo atual prefeito, fora posta em lugar de destaque. O futuro do Distrito 22S43O começava a se delinear.
*****
Zyan Agostini olhava suas mãos desbotadas com marcações ramificadas numa tonalidade entre o azul e o verde. Ele observava as mais complexas dessas ramificações descendo por todo o braço. As veias eram grossas e protuberantes, as da testa pareciam saltar. Era alto e careca, deveria ter por volta de quarenta anos, mas aparentava um pouco mais. Estava assentado em seu trono feito de poltrona restaurada, adaptada com um cabedal de sustentação, oriunda de um veículo terrestre, antigamente chamado de caminhão. Sua cabeça exibia uma coroa de metal refinado, cravejada de placas sistêmicas operacionais. Elas se conectavam aos neurônios para informar o índice de capacidade de coagulação do sangue. As placas apitaram num som baixo e constante indicando que as reservas em seu corpo estavam no final, precisava de mais sangue. Perdera muito há dois dias, depois de múltiplas hemorragias que vazaram por todos os orifícios de seu corpo.
Zyan olhou para o céu, através de um vão no telhado, buscando um pensamento bom que viesse de seu coração. Há anos não via o sol, apenas a claridade ofuscada de sucessivos dias cinzentos que o deprimia cada vez mais. Agora, cabisbaixo, reconsiderava seus pensamentos perniciosos, dúvidas existenciais, até que uma lembrança clarificou sua mente humana variante: sua preciosa filha. Por instantes, reviveu em suas memórias emoções que aliviavam sua dor existencial.
Ecos de gritos desesperados o trouxeram de volta à realidade torturante. O líder da principal gangue do Povo do Chão soergueu o rosto, levemente triangular, e seu sorriso metálico realçou o nariz aquilino. Viu com satisfação um membro da gangue rival sendo arrastado por seus comparsas, quase súditos. Os gritos do rapaz ecoavam pelo galpão recuperado, outrora receptor dos antigos aviões. Na parte interna, numa placa relíquia podia ser lido: “Aeroporto Santos Dumont”. O local amplo era guarnecido com pouca mobília e numa extensa mesa de madeira rústica, repousando com manchas escarlates, podiam ser vistos alguns utensílios: uma motosserra, alguns machados, vários facões e martelos, além de dois ou três tipos de alicates. Os comparsas jogaram o rapaz envolto em correntes aos pés do trono de Zyan que esboçou falsas expressões complacentes.
— Espúria, é o que você é. — O líder se levantou lento do seu trono e em poucos passos estacou uma de suas botas nas costas do prisioneiro.
— Por favor, não me mate. Eu tenho uma bebê para sustentar. — O rapaz girou seu rosto inchado e fitou seu principal algoz.
— Eu também tinha uma filha. Minha pequena Margareth, levada pela mesma doença que insiste em atormentar meu corpo e que infelizmente não me destrói de uma vez!
— Eu lamento por ela.
— Lamenta? Não sabe nada sobre o sofrimento dela e do meu. Você não tem ideia de como é precisar repor o sangue de dias em dias. Não tem ideia de sentir dor o tempo todo pelo corpo durante décadas.
— Os esculápios das classes superiores podem te ajudar. Eu ouvi dizer que...
— Cale-se, lixo! Tudo o que você sabe, eu também sei. Tudo o que falar, eu já conheci primeiro. Posso estar enfermo, mas meu corpo é muito melhor do que o seu. Minha inteligência é superior, meus sentidos muito mais aguçados. Meu corpo está se adaptando para o que virá, para o futuro, para o novo ser humano. Muito mais adequado ao novo mundo.
Zyan tirou a bota que pesava no corpo do prisioneiro. O rapaz tremia e sentia os olhares bárbaros da gangue autodenominada de Cidhartas pousando sobre ele. Uma agonia possuiu seu corpo, mas era inútil se debater, impossível escapar.
— Qual o seu nome?
— Que diferença isso faz?
— Para você, nenhuma. Para mim tem um significado. Sei o nome de todos que um dia saciaram minha sede. E, de tempos em tempos, peço ao infinito pelas almas errantes deles. Acendo velas para iluminarem o caminho de cada um. Eu me concentro em cada um deles, peço perdão e me sinto melhor.
— Você é um louco, um mutante perverso! — Nesse instante, o rapaz gritou e rolou no chão numa crise de histeria.
No momento seguinte, os dentes metálicos penetraram fundo no pescoço do rapaz. Já não havia agonia, nem sangue, nem vida.
*****
O alarme tocou estridente. Kéfera Souza trocou o uniforme militar pela roupa civil, cumprimentou os subalternos e foi até seu quarto pegar sua bolsa e conferir se o bogotóin, que armazenava imagens e estudos sobre as populações não consumeristas, estava guardado. Olhou-se no espelho e por instantes pensou no sentido de seu trabalho, nos vinte anos que servia aos Guardiões. Lembrou-se de quando ingressou para essa força militar, tinha apenas quinzes anos de idade e ideais de justiça. Sentia-se realizada por manter a ordem e a justiça no distrito por mais violento que ele ainda pudesse estar nos setores esquecidos. Acreditava que cumprir os mandamentos do Domo Beligerante traria a ordem ao distrito e o progresso de todos.
Dirigiu-se a passos firmes com seus sapatos altos e rosto altivo para o aeromóvel acoplado ao jirau. Se por um lado sentia-se realizada; por outro, os planos recentes do prefeito distrital a incomodava. O Plano Diretor de Intervenção na área empobrecida do distrito, apresentado pelo prefeito na última reunião, poderia amargurar sua brilhante carreira militar. Não queria manchar de sangue seu uniforme com pessoas inocentes e indefesas. Precisava convencê-lo a reconsiderar suas pretensões. Como comandante dos Guardiões, ela estava diante de um dilema, porém precisava ir para casa depois de duas semanas ininterruptas de trabalho, estava exausta e ansiosa por rever seu marido e filho. Entrou no carro e acionou o piloto automático que direcionou o veículo planador ao fluxo migratório do setor K, onde morava. Um drone rondal foi à frente, inspecionando e garantindo à tenente-coronel a proteção contra quaisquer atentados, pois era ameaçada constantemente pelos líderes das diversas gangues espalhadas pelo distrito. Projetou o encosto da cadeira para trás e retocou o batom. Na medida em que seu veículo de passeio se deslocava pelo duto ovalar de refugo do quartel, as luzes douradas do teto atravessavam o para-brisa e projetavam raios sobre sua pele negra realçando o contorno brilhante do batom e da purpurina das cumpridas unhas azuladas. A comandante percebeu uma luz verde piscando no painel, autorizou a conexão e a imagem holográfica do marido surgiu.
“Já está vindo, amor?”
— Sim, querido.
“Preparei seu prato predileto.”
— Delícia! Estou doida pra chegar logo. Onde está o Vicente?
“Dormindo. Ele estava um pouco amuado. Muita saudade.”
— Chego em meia hora.
“Beijos”
—Beijos.
*****
A festa no transatlântico era um andaço. O navio estava encalhado há séculos, próximo ao Pão de Açúcar, servindo de abrigo e fortaleza para a comunidade que se formou no seu interior. A baderna dos Piratas repetia-se de semana em semana ao longo do ano. O prato principal era churrasco de frutos do mar. As pessoas não se importavam se os alimentos estavam contaminados pelas chuvas ácidas provenientes do envenenamento dos vários gases prejudiciais acumulados na atmosfera, bem como da radioatividade restante do antigo conflito mundial. Os festeiros jogavam cachaça de cana d`água para supostamente anularem os efeitos maléficos dos alimentos marítimos e devoravam a comida, mas de tempos em tempos, morria um ou outro intoxicado. A escassez de alimentos assolava não só o Distrito 22S43O, mas todo o mundo.
O líder dos Piratas tinha o cabelo pintado, roupas com combinação entre tecidos, couros e metais. Um olho era azul e o outro, artificial. Em uma das orelhas pendia uma argola de metal.
— Kairus, necesito hablar contigo. — Saragoça chegou falando ao pé do ouvido do seu líder, incomodado com a música alta e as batidas rítmicas que ressonava pelo transatlântico.
— Pode falar, a hora é essa. — Kairus disse e depois deu um grito de guerra, dançou em volta do comparsa, zoando e oferecendo bebida.
— Es grave. Necesito venir conmigo a la sala de control.
— Que merda, Saragoça! No melhor da festa? — Kairus reclamou, alisou o cabelo pink, saiu beijando a boca de quem estivesse à sua frente e seguiu o amigo, depois que colocou uma pistola na cintura. No fundo, não confiava em ninguém.
Kairus entrou na cabine de comando, quatro de seus comparsas o esperavam. Eles olharam indignados para seu líder que percebeu um bogotóin de mensagens.
— Presente de seu irmão. Entregaram aos vigilantes agora mesmo. Já foi escaneado. — João falou e jogou a pequena esfera para o alto. Ela acionou um dispositivo de flutuação e de um visor circular projetou-se imagens do tamanho real exibindo Zyan abocanhando o pescoço de um dos Piratas.
— Cidhartas malditos! Zyan fez isso para me afrontar. — Kairus vociferou, virou-se para a janela de vidro quebrada e terminou de estilhaçar o que sobrara.
— O que acha que ele quer com isso? — João indagou.
— Chamar minha atenção. Fez isso para me afrontar. Foi em represália ao não apoio do plano daquele idiota.
*****
Um Cidharta se aproximou do trono de seu líder trazendo na mão mecânica um livro de papel. Fez um sinal com a mão humana que significava mais do que respeito, submissão. Estendeu ambas as mãos, solenemente, como quem trouxesse uma oferenda ao seu deus.
— Hum, um livro dos antigos.
— Sim, senhor. É um precioso e raro livro de papel de Bram Stoker que comprei no Mercado Principal para presenteá-lo. — Quaresma falou com devoção. Era um ávido colecionador e leitor dos livros de papel.
Zyan o pegou com cuidado. Estava conservado, porém parecia frágil com páginas amareladas pelo tempo. Abriu acuradamente esbugalhando os olhos, movimentou devagar os maxilares causando atrito entre os dentes metálicos e o som incomodou Quaresma que franziu a testa.
— Incomodado?
— Claro que não senhor. Parece melódico aos meus ouvidos.
— Falso, mentiroso!
Quaresma sorriu envergonhado. Procurou evitar um aumento da tensão pela implicância gratuita de Zyan acrescentando:
— O personagem deste livro é fantástico. É parecido com o senhor, precisa de sangue para viver. É poderoso.
— Saia. Vou ler este livro todo ainda hoje.
Zyan cruzou as pernas e iniciou a leitura atenta.
No dia seguinte, pela manhã, o líder dos Cidhartas estava em pé próximo ao trono sendo ovacionado pelos seus comparsas que agora o chamavam de Drácula.
Usando um sobretudo cinza-escuro e um chapéu pantaneiro preto, com o ego fortalecido pela nova personalidade que incorporava, Zyan se dirigiu solitário para a estátua do Cristo Redentor pilotando sua aeromoto recém-roubada. Pousou enfurecido diante da estátua. O veículo ficou estabilizado pairando a trinta centímetros do chão. Ele saltou e caminhou, ficando próximo à base da estátua que tinha manchas, musgos e buracos. Num primeiro momento, ergueu seu rosto e fitou a face dela. O Cristo Redentor já não era mais o cartão-postal de lugar nenhum. Seu significado religioso e turístico se esvaneceu pelos séculos e apesar disso, nenhuma autoridade mandou demoli-lo, nenhum humano tentou destruí-lo. Ficava ali como ícone histórico. Era ponto de referência para os circulantes.
Os comparsas cidhartenses assistiam à transmissão do evento de seu líder através da inteligência artificial da aeromoto cujos sensores captavam as imagens de Drácula transmitindo-as para o galpão. Olhavam com expectativa seu líder que, sob o céu cinzento com nuvens iminentes de chuva, estava inerte. Perguntavam-se o que ele fora fazer ali, mas Drácula tinha crenças arraigadas. Na época em que sua filha estava morrendo, ele a trouxe nos braços para que o Cristo Redentor a curasse. Jurou que reavivaria a religião dos antigos, que seria um profeta. A menina faleceu e ele achou que de alguma forma a culpa pudesse ser daquele ícone que resistiu ao tempo, às guerras e sobrevivia à chuva ácida. Drácula abaixou sua cabeça e num segundo momento a ergueu, agora, para falar coisas, gesticular e chorar. Não sabiam o que ele falava, se fazia alguma petição ou vociferava palavrões, a única coisa que perceberam era que ele estava com o dedo em riste e que pulava diante dela. A cena chamou a atenção dos comparsas que assistiam em pé diante de uma enorme projeção holográfica azulada, aglomeravam-se e se emocionavam. Sentiam uma energia unindo a todos, reafirmando a liderança Zyan, projetando-o como um legítimo porta-voz da dor, da indignação que sentiam. A esperança que nunca vinha, o desprezo das autoridades e o escárnio das classes superiores estavam massificadas em Drácula. Os comparsas começaram a gritar, entrar em transe e mais pessoas foram atraídas para o galpão. Muita gente do Povo do Chão, agora, assistia o enigmático ser desafiando, ameaçando. Com admiração, viram o céu desabar sobre ele, a chuva ácida com cor levemente de ferrugem, despencava sobre o Distrito 22S43O. Drácula resistia. Continuava gesticulando, gritando e andado de um lado a outro diante da estátua. O tecido encharcado do sobretudo ficou com a camada externa danificada com manchas. A pele de Drácula se avermelhava, mas ele permanecia ali vomitando tudo o que sentia. Não era a primeira vez que se expunha à chuva. Quando jovem, ele fora amarrado num poste por seus algozes que por pura crueldade o expôs à chuva ácida por horas, em consequência disso, ele perdeu os cabelos e todos os pelos do corpo, porém agora não tinha mais nada a perder.
As pessoas vibravam, o Povo do Chão assistia aturdido. Mais e mais pessoas chegavam e sentiam vontade de se unirem aos Cidhartas.
Drácula parou de se exibir, virou-se de costas e caminhou até o veículo, sentou-se na aeromoto. Reconsiderou o verdadeiro motivo de sua existência.
— Contrate o Invasor. — Drácula falou pela transmissão da aeromoto.
Quaresma anuiu.
*****
— Vem cá, Axel! Dá uma olhada nisso. — Hiovel falou olhando para a projeção holográfica com imagens acessadas da Rede Mãe.
— É uma multidão seguindo aquele cara, o Zyan. — Axel falou depois que deixou a vassoura num canto.
— Nunca vi isso no distrito! — Hiovel disse, mordendo o sanduiche de ave.
— Para onde eles estão indo?
— Indo? Ax, essa é uma transmissão retardada que consegui captar pela Deep da Rede Mãe. Eles já devem ter chegado onde queriam. A transmissão atual, que estão nos drones rondais, é a de que está tudo tranquilo... veja só.
— E como isso é possível?
— Deve ter sido o Invasor, aquele hacker poderoso que os Guardiões não conseguem localizar. De vez em quando a gente se estranha na Rede Mãe.
— Para onde acha que a multidão está indo?
— Pela minha análise, para o Mercado Principal.
— É confusão na certa.
— E você não vai pra lá, Ax.
— Vou sim.
— O quê que um moleque de dezesseis anos vai fazer numa confusão dessas?
— Vou registrar tudo com a câmera da Melody, cada detalhe. Não é Melody?
Melody assentiu, com os braços cruzados. A ginoide vivia com a família Silva Solivor desde que fora recuperada do Lixão, há alguns anos.
— Então eu vou também. — Hiovel disse.
— Nada disso, termina de comer seu sanduiche e fica atento por que posso precisar de você.
— Tudo bem. Se você dissesse que era só porque eu tenho treze anos, eu jogaria esse sanduiche na sua cara.
— Relaxa maninho, vamos sair dessa rotina hoje. Não aguento mais ficar consertando eletrônicos e limpando a casa.
Axel sentou-se na aeromoto, Melody sentou-se no carona. Partiram.
*****
Drácula fez questão de caminhar pelo chão enlameado liderando a marcha para o Mercado Principal. O local comercial era uma mega construção financiada pelas teraempresas supra conglomerais que governavam o planeta. A maioria dos produtos era para as classes superiores. As entradas do prédio colossal só eram acessadas pelos veículos planadores que se acoplavam aos jiraus. Não havia acessos terrestres. Todavia, vários homens do Povo do Chão carregavam longas escadas, suficientes para penetrarem a fortaleza comercial. Os demais levavam machados, facões e martelos. Os seguranças não conseguiam contatar os Guardiões, pois a Rede Mãe e todas as outras linhas de comunicação foram bloqueadas pelo Invasor. Embora temporária, a situação de incomunicabilidade daria tempo para que o Povo do Chão, liderado pela gangue dos Cidhartas, tomasse o terreno e não fosse atacado ainda em solo.
As pessoas subiam pelas dezenas de escadas que se apoiavam nas paredes. Entre vigas, colunas e entalhes, os excluídos conquistavam espaços dentro do Mercado Principal.
— Peguem tudo o que puderem. Fartem-se de tudo. De quem é o mundo? De quem são as riquezas? — Drácula gritava ensandecido enquanto a metralhadora Free Fire descarregava sua munição pesada contra os stands que vendiam objetos como joias, acessórios de luxo e outras mercadorias de altíssimo valor. Os vendedores se protegiam deitados no chão enquanto as vitrines e os balcões eram despedaçadas e estilhaços voavam em todas as direções.
Os seguranças formaram uma grande barreira com seus escudos transparentes feito de uma liga de vidro inquebrável e avançaram no corredor contra Drácula. Teriam a todo custo que proteger o patrimônio dos teraempresários, morreriam se preciso fosse. Eles vinham em posição de formação lado a lado, sentindo as vibrações dos disparos. As munições ricocheteavam nos escudos e os seguranças avançavam aproximando-se de Drácula. Quatro dos seguranças do Mercado Principal, com longos cassetetes de descarga elétrica, conseguiram desarmar Drácula de sua metralhadora, mas não tiveram sucesso com a motosserra que ele trazia na outra mão. Um embate corpo a corpo se iniciou, mas logo vários cidhartenses se alinharam com seu líder e rechaçaram a investida dos quatro seguranças.
Em todas as partes, stands eram violados e os de alimentos eram os mais procurados. As pessoas famintas comiam alimentos que sequer sabiam os nomes, lambuzando-se, bebendo, fartando-se como em nenhum outro momento de suas vidas. Mães com seus filhos no colo, idosos e desempregados excluídos da rede de consumo experimentavam, pela primeira vez, um mundo de novos gostos, novos sentidos. O que a princípio era visando pegar alimentos e água boa para beber tornou-se um ciclo de destruições. Acuados, os seguranças assistiam a depredação dos bens que eles foram contratados para proteger.
A energia emocional gerada pela coletividade conflituosa do Mercado Principal foi captada pelos sensores do drones beligerantes. As luzes piscaram em alerta vermelho e dezenas deles alçaram voos em direção ao local do embate. Em consequência, as informações foram repassadas para os controles do quartel que acionaram os Guardiões.
Os drones beligerantes chegaram, mas passaram a voar em círculos próximo ao teto alto do salão principal. Não reconheciam alvo especificado, pois as pessoas que ali estavam não constavam em suas bases de dados nem como criminosos, nem como consumidores do distrito. Boa parte daquelas pessoas eram mulheres com filhos pequenos, assim, sem protocolo de ação zanzavam até receber ordem específica do comando operacional.
Axel percebeu que o fluxo migratório dos veículos fora desbaratado e tanto as aeromotos como os aeromóveis gravitavam ao redor do prédio comercial, registrando imagens externas e fazendo zoom de imagens internas vistas através do vão de janelas. Os tripulantes indignavam-se e futricavam com amigos e parentes através das transmissões holográficas do interior de seus veículos. Axel desbravou o cinturão de veículos e conquistou o espaço de seu interior. Olhava pasmado o tumulto registrando os eventos: seguranças encurralados, algumas pessoas comendo e outras explorando objetos utilitários, além, claro, de registrar os atos de Zyan.
O solo trepidou a primeira vez, depois uma segunda até que permaneceu tremendo. As pessoas correram para se apoiarem na grandes paredes. Rachaduras apareceram no chão; em seguida, um som grave de sucessivas repetições batidas anunciou uma erupção. Em um ponto qualquer do salão principal, uma máquina escavadeira irrompeu o chão, projetando-se acima da superfície e caindo sobre ela. O veículo anfíbio deslocou-se através dos dutos de escoamento de água do distrito e perfurou poucos metros até dilacerar a superfície do solo. Sua arquitetura era um misto de máquina escavadeira com robô de garras mecânicas. Sua forma e performance lembravam a de uma toupeira.
Kairus abriu a escotilha e já saiu com uma metralhadora lançadora de feixe de elétrons.
— Você não tinha o direito, Zyan!
— Foi o único jeito de trazer você até mim.
— Eu gostava dele. Era um bom soldado.
— Não precisamos lutar. Nossos verdadeiros inimigos estão a caminho.
— Eu quero vingança. — Kairus falava sem convicção.
— O plano é esse, atacar o Mercado Principal com a máxima força possível.
— Eu não vou te perdoar, Zyan.
— Não precisa. É só se aliar a mim.
— Essa é a sua luta não a minha. E...
Todos perceberam que os drones beligerantes mudaram o pisca-pisca de vermelho para verde. O veículo anfíbio pertencia a Força Militar Anfíbia do Conglomerado Federativo Equatorial. O produto do roubo fora identificado, bem como seu comandante. Os drones beligerantes ejetaram suas armas e uma chuva massiva de projeteis caiu sobre o veículo. Karius fechou a escotilha e se agarrou ao seus comparsas.
— Que protocolo idiota, se eles querem recuperar o veículo para a Força Militar, por que atirar nele? — Quaresma perguntou se juntando ao seu líder.
— Eu só queria Karius do nosso lado. É hora de unirmos forças.
— Vale lembrar, senhor, que destruir drones é pena de morte no distrito. E se atirarmos neles, eles estão autorizados a revidar.
Drácula bufou e assistiu os drones massacrando o veículo anfíbio utilitário que se despedaçava.
— Eu não vou assistir meu irmão morrer.
— Devo adverti-lo, senhor, se atacarmos, eles entrarão no protocolo de autodefesa e vão atirar em todos aqui: crianças, mulheres, anciões e em nós. Acredito que essa nunca foi sua intenção, que inocentes morressem.
Drácula olhou para as pessoas, sentiu-se agoniado. Considerou que muitas situações fogem ao nosso controle e se transformam nos piores pesadelos. As peças começavam a se desprender com os impactos ininterruptos das munições, retalhando a couraça de metal. No entanto, Drácula não assistiria passivamente a morte de seu irmão como assistiu a de sua filha. Margareth definhou dia após dia, sendo massacrada por uma doença que para as condições dele não tinha cura. Pensou no irmão, mesmo com tantas desavenças, ele ainda era o caçula que ajudara a criar. Direcionou a Fire Free para o alto, sob o olhar reprovador de Quaresma. Então, os drones pararam de atirar. Do outro lado do salão, Kéfera saiu da segurança de seu veículo militar aéreo, desarmada, e andou em direção à Drácula. Na medida em que andava, o aglomerado de pessoas abria caminho para ela até que ficasse diante do principal líder daquela rebelião. As pessoas se agitaram, algumas começaram a amaldiçoá-la e a tudo o que ela representava. Ela não se importou, lançou o bogotóin que flutuou, agora com a função alto-falante.
— Parem! Eu peço, parem! — O timbre firme de sua voz tomou todo o salão principal. Continuou: — Hoje eu passei a vê-los de outra maneira. Reconsiderei tudo o que havia aprendido sobre o que chamamos de espúrias.
A agitação foi perdendo força. O silêncio foi se agigantando. Kéfera continuou:
— Tudo o que eu queria era ser militar. Garantir ordem e justiça, mas nunca haverá justiça verdadeira enquanto não houver igualdade. Precisamos reconsiderar tudo o que aprendemos, a visão que temos do outro, do seu modo de vida, de suas características, do seu jeito de ser e sentir o mundo.
Kéfera sentia o coração bater nos ouvidos, estava apreensiva pelo alto risco o qual se expusera, detinha o poder militar de destruir todos eles, possuía o controle total sobre os drones beligerantes, tinha o respaldo político e militar para cometer genocídio “justificado”, mas optou pela diplomacia.
— Peço a vocês reconsiderar tudo também. Não vou atirar em ninguém, nem prender. Peço que retornem para seus abrigos. Vou levar a situação de miséria de vocês para o Domo e a Prefeitura. Encontraremos uma solução que possa ser boa para vocês.
— Ou você é ingênua, ou mentirosa. Eles já sabem da nossa situação e não fazem nada. — Alguém na multidão desabafou.
Drácula se aproximou de Kéfera com a motosserra na mão, ficou frente a frente com ela, há poucos centímetros, rostos quase colados. Embebecido em sua vaidade e ego forte falou:
— Espero que haja honra em suas palavras. Temos nosso próprio código de honradez e um deles é não faltar com a palavra empenhada. Pela memória da minha filha que me pediu para fazer desse, um mundo melhor, vou embora. Mas saiba que se a ordem e a justiça que tanto pregam, que estão em sua bandeira verde e amarela, não alcançar o Povo do Chão, o Povo do Outeiro e a tantos outros excluídos... acredite, essa corja governante sentirá o poder de Drácula e não darei um minuto de paz a vocês enquanto eu viver.
As palavras de Zyan, replicadas pelo bogotóin foram ouvidas nos confins do Mercado Principal e retransmitidas pelo Invasor para todo o distrito pela Rede Mãe. Drácula virou-se de costas para a comandante e saiu ovacionado pela multidão. As pessoas começaram a se dispersar, descerem as escadas, uma a uma, sem pressa.
Kéfera retornou para seu veículo militar. Contrariou as ordens do prefeito que a mandou atirar em todos os espúrias, dizendo que pelo menos trinta mil pessoas deveriam morrer. Sua reforma no distrito passava pela eliminação da maior parte do Povo do Chão. Ela sabia que havia contrariado interesses não só do prefeito, mas também dos teraempresários, mas estava com a consciência limpa e sem mancha de sangue nas mãos. Seu verdadeiro confronto inicial era com os políticos e o Domo Beligerante, sua jornada mais desafiadora começou naquele instante. A suspensão imprevista de suas folgas lhe rendeu uma discussão com o marido. Seu casamento não ia nada bem, seu filho chorava por qualquer coisa. Via o sucesso na carreira se contrastar com a felicidade familiar. Ainda havia muita coisa a se resolver...
*****
Axel chegou no seu protofeudo com muitas imagens exclusivas. Não sabia bem ao certo o que faria com elas, mas tinha a intuição de que serviriam no futuro. Guardou sua aeromoto com carinho e foi procurar a cama, estava exausto.
— Axel, onde você pensa que vai?
— Dormir, mãe. Tive um dia cheio.
— É mesmo? Só que hoje você estava na escala para varrer a casa.
— Eu varro amanhã duas vezes então. — Axel falou e foi caminhando para o quarto.
— Volta aqui!
— O que foi agora?
— Vai tomar banho, você está imundo e fedido.
— Tudo bem.
— Vai logo que já vou colocar sua sopa. Vai comer antes de dormir.
— É de carne?
— Sim, têm uns pedacinhos.
— Tudo bem, então.
— Cadê a Melody?
— Ela disse que ia dar uma volta por aí. Precisava pensar em algumas coisas.
— Pensar? Dar voltinhas? Só falta dizer que ela vai namorar!
— Já te expliquei, mãe. A Melody foi reprogramada. Eu pedi o Hiovel para instalar um programa especial raro, o tal do Livre Arbítrio para ginoides e androides. Ela se parece cada vez mais com o ser humano.
— No meu tempo não tinha nada disso.
— Deixa pra lá. — Axel falou, deu um beijo na testa da mãe e foi tomar banho.
*****
Drácula estava assentado em seu trono, a dor no corpo causava insônia, dormia no máximo de duas a três horas por noite. Seu cérebro estava agitado concebendo inúmeras ideias, boas e ruins.
— Com licença, meu líder. — Quaresma se aproximou com um livro debaixo do braço.
— O que deseja? — Drácula perguntou e passou a olhar o vão no teto que exibia a escuridão da noite.
— Eu consegui um outro livro, com um amigo. Ele me vendeu e gostaria de presentear o senhor.
Drácula sorriu:
— Gosto bastante das histórias dos livros de papel. Deixe-me ver.
Quaresma entregou. Drácula não conhecia o título e leu em voz alta:
— Os Sertões, de Euclides da Cunha...
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Notas Finais
Agradeço ao Inkspired e à Embaixada pela oportunidade de participar desse desafio. É um tema que gosto bastante e aproveitei a oportunidade. Esse conto pós-apocalíptico é parte de alguns outros que pretendo criar abordando valores em temas verbais (Compartilhar, Reconsiderar) com as ideias literárias dos mundos distópicos, desenvolvendo situações tão reais como no nosso tempo. A abordagem respeita a faixa etária e ao mesmo tempo procura dar uma cadência na violência que é parte fundamental das sociedades distópicas.
Também está em progresso a construção do Universo através da ferramenta que estão oferecendo. Postarei em breve. Obrigado e boa sorte a todos os participantes.
Hydrus é um universo alternativo. Em 3019, através de uma convenção interconglomeral, o planeta Terra foi rebatizado passando a se chamar Hydrus. O novo nome se originou da nova realidade. Após a grande guerra nuclear do tempo dos antigos, o planeta Terra sofreu intensas mudanças climáticas decorrentes da contaminação radiotiva e dos gases tóxicos. A chuva passou a ser constante, a cada dois ou três dias chovia um dia inteiro. Dutos foram construídos para escoarem as águas e o volume dos oceanos se avolumou cobrindo 87% do planeta. Esse fenômeno era chamado de Hydrus pelos cientistas dos séculos passados e se popularizou. Nesse mesmo ano, reconhece-se oficialmente uma nova sociedade. Um novo mundo surgira para o novo ser humano que além de sofrer alterações genéticas agregou a alta tecnologia ao seu corpo, ao seu modo de vida, à sua cultura. Contudo, Hydrus está longe de ser o paraíso, é na verdade formada por uma sociedade global distópica que procura compreender a si mesma, ao outro e a tecnologia, buscando valores que possam mediar o convívio pacífico na nova sociedade emergente. Leia mais sobre Hydrus.
Obrigado pela leitura!
Em um cenário high-tech, Distrito 22S43O nos introduz à uma série de personagens no decorrer da trama, todos muitíssimo bem trabalhados de tal modo que possamos conhecê-los muito bem apesar dos limites impostos pelo desafio. A obra não falha em nos envolver, criar momentos de tensão e até mesmo divertir, referenciando muito bem nosso querido Brasil. Portanto, leva o segundo lugar no #DistopiaBR.
Distrito 22S430, nos apresenta um mundo completamente diferente do que conhecemos, mas, ainda assim, conseguimos identificar com facilidade a identidade cultural brasileira, o que nos aproxima da obra. Cheio de personagens carismáticos, o conto também possui diálogos naturais e muito envolventes.
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