straussilver Joalison Silva

Um ataque ao Paraíso. Um investigador é contratado para frear a contaminação, porém nem tudo é o que parecia a princípio. O desfecho é inevitável...


Ficção científica Futurista Impróprio para crianças menores de 13 anos.

#sci-fi #381 #cyberpunk #conto
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Capítulo Único

— O que fazem aqui, chavales? — perguntou o velho pescador, acenando da pequena embarcação remendada a poucos metros da praia.

Próximo do mar, o novato respondeu:

— O nosso trabalho!

E o velho pescador gritou de volta:

— Que seria?! — Uma truta vermelha se agitava na vara de pescar apoiada ao ombro do homem como se compartilhasse interesse na questão.

— É uma mistura de tudo, meu velho — respondeu o novato ainda aos gritos —, meio soldado na guerra, meio detetive em romance policial, meio um herói por trás das cortinas...

Gelmires Sánchez ouvia os dois à sombra de uma palmeira enquanto amassava e modelava um cone de areia. Sentia o frio da madrugada escalando os pés descalços e o hálito salino no rosto.

— Mas paga bem — comentou o novato, e deu as costas à praia. — Não concorda, chefe?

Sánchez apontou a tela em posse do rapaz e bateu onde devia existir um relógio de pulso por baixo do terno. O chaval, contudo, se limitou a revirar os olhos e retomou o trabalho.

Displicente.

Recolhendo outro punhado de areia, Sánchez encontrou uma tampinha de refrigerante.

Antinatural.

Duzentos metros adiante era só ferro temperado e maquinaria, um panorama de centenas de navios de cruzeiros impedidos de atracar tapando o sol nascente, aquilo também passava longe da deslumbrante experiência natural oferecida pelo arquipélago, entretanto existia uma cadeia alimentar movimentando as hélices e a gerência da Del Paraiso a aceitava porque atraía visitantes menos abastados, e os figurões abastados, em sua sabedoria, consideravam parte do turismo.

— O problema — continuou o novato, verificando os dados na tela — é que volta e meia um idiota faz o que não devia e precisamos descobrir o que aconteceu antes da porcaria ferrar tudo.

Estavam numa ilhota dois quilômetros a leste do arquipélago de Maula, em meio ao mundinho perfeito da Del Paraíso e a mercê da má vontade de Temunk, um Deus local pouco amistoso a estrangeiros misteriosos segundo os nativos, e Sánchez, decidido a evitar quaisquer ofensas a eles, retirara os sapatos e amassava areia como pediram.

— Sem ofensas — completou o novato. De forma ágil, ele dedilhou uma porção de códigos na tela portátil antes de continuar. — Bastava controlar os apertos de mão e... bem, como dizer, não se deve chorar pelo leite derramado.

O pescador meneou. Seu rosto virava uma mistura confusa à medida que uma vergonha irracional das próprias mãos, esqueléticas à luz do sol, fazia-o apertar a vara de pescar.

— Somos investigadores! — Sánchez explicou. E piorou a situação do homem, o barco e a truta vermelha sacolejavam juntas. — Viemos ajudar!

— Ah, sim! — O velho pescador sorriu, de repete, remando feito um homem anos mais jovem e obrigando o barco sob a força dos remos a vencer a eterna disputa contra o mar, investir na areia e repousar amarrado longe da maré.

Debaixo da palmeira, o novato uniu-se ao investigador e perguntou:

— O que quer dizer "chavales"?

— O plural de chaval.

— Ah! — exclamou o novato, e meneou, uma imitação digna do velho pescador. — Chaval...

— Quer dizer "rapaz", uma antiga forma de chamar alguém de rapaz na verdade — Sánchez explicou, pondo os sapatos e pegando a tela portátil. — Terminou?

— Sim.

O pescador subia a praia, numa mão a vara de pescar e a truta vermelha, presa ao anzol, na outra. Com o caminhar desgastado da idade, ele vencia a distância numa visível demonstração de entusiasmo juvenil.

— Me espere aqui.

O sol projetava sombras titânicas nas águas. Longe da areia, os navios começaram o circuito diário. Embora sem a permissão de atracar, os turistas podiam rodear os finitos mares da Del Paraiso e as belezas costeiras a pesar do investigador nutrir uma certa convicção de que via embarcações vazias.

Ele interceptou o pescador no meio da subida e ofereceu uma explicação mais justa dos fatos, e o outro, por sua vez, apontou uma casinha acima da praia edificada em tábuas escurecidas de árvores cortadas décadas atrás. Um monte de folhas de palmeira servia de teto e uma lona rasgada fingia-se de porta naquele pequeno arremedo de lar.

— A minha casa está sempre aberta, Chaval.

Foi o que velho pescador disse orgulhoso de apresentar os esboços de mobília assentados no tablado; uma mesinha com marcas de faca e cheiro azedo, dois bancos de alumínio faltando o estofado e uma bacia escurecida pelo óxido cheia louças sujas, o armário de duas portas, uma delas entre aberta ou quebrada, pedia numa quina do único cômodo, armações de madeira dispostas nos fundos e cobertas de jornal sugeriam uma cama.

E era tudo.

Apenas um bom homem suportaria viver ali, Sánchez observou.

— Chaval, aceita algo? Um cafezinho?

— Depois — respondeu o investigador, duvidoso se teria mesmo café preparado, e apontou um dos bancos. — Posso?

— Oh, por Deus, sim! — O pescador se alarmou, a voz subitamente rouca. — Essa mente velha já não sabe das coisas, desculpe. Não queria destratar o senhor...

— Esqueça essa de senhor — Sánchez acalentou-o. — Eu sou só um chaval investigador.

O pescador fitou-o, desconfiado. A truta vermelha deu um tranco no anzol, afogando-se, e seu algoz depositou-a na mesa. Sánchez fez igual com a tela portátil e continuou enquanto o outro se sentava no lado oposto:

— Eu cheguei aqui ontem, e não, não sou um turista. Embora, eu tenha começado o meu dia em uma praia... era parecida com esta.

Mas, adentrando o paradisíaco tropical em poucos metros, a paisagem, diferente daquela aos pés da casinha, entristecia como uma mãe cuidando do filhinho doente, as palmeiras acabavam elevadas em dez na quantidade de tendas brancas salobras com médicos, enfermeiros, voluntários, um constante movimento de roupas impermeáveis, preenchendo o trânsito local.

Um odor acre tornava-se palpável no meio do acampamento.

Passando o olhar na fileira da esquerda, o novato apontou o aumento de tendas entre a areia da praia e a vegetação rasteira desde o amanhecer. Ele sugeria que se tivessem evitado o contato físico a situação estaria sob controle.

— Não é tão simples — Sánchez replicou, estendendo a mão.

Um pouco confuso, o novato apertou-a.

O investigador explicou:

— Se alguém estende a mão, você aperta. É um reflexo. Como uma sociedade pode mudar os costumes de décadas, até séculos, em meses?

Incapaz de responder, o novato se escudou na contagem das tendas médicas.

— A melhor alternativa agora é localizar o vetor do ataque — Sánchez concluiu.

O acampamento isolado atrás, a desolação da cidade esperava adiante. Nas semanas anteriores, aquelas ruas borbulhavam de turistas risonhos apinhados nas barracas à beira das calçadas, comprando souvenires de argila feito por criança descalças, e a onipresente miríade de petiscos do arquipélago.

— Uma bactéria nunca causaria tanto estrago — afirmou o novato, com a propriedade de quem usava a réplica definitiva de um debate sequer iniciado.

— Onde quer chega?

— Bactérias são melhores, biologicamente.

— Vírus matam bactérias.

— Não é a questão... Uma bactéria tem autonomia para viver, um vírus, não.

— Continue.

— Não são seres vivos.

— E?

— Vírus não é gente!

Sánchez deixou escapar uma gargalhada amplificada pelo vazio das ruas.

— A afirmação tem seu valor científico, admito.

— Não zombe... — pediu o novato, ofendido. — Falo sério. Não é um vírus, não em sua forma comum. Por que descartar um novo tipo de malware... uma bactéria?

Os agentes da Del Paraíso vigiavam tentados a derrubar o especialista contratado e assumir os cargos de salvadores da pátria diante o menor deslize, contudo, no caso de um novo malware independente do quanto oferecessem, das recomendações posteriores, do tempo disponibilizado, das precauções tomadas, eles largariam a ganância com um "boa sorte, amigo" e um tapinha nas costas.

Compreensível.

O maior especialista da área, Don Tonny, vivia numa cama de hospital em Albany desde os vinte e cinco anos após se meter com os novos malwares de sua época, lutara como um peão para os reis, lutara e danos cerebrais irreversíveis foram seu pagamento incondicional.

Porém, aquela era a história do Tonny.

Sánchez apenas não respondeu, pois o silêncio criaria o receio e o receio era o maior antídoto contra a ganância. O novato e ele gastariam o resto da tarde até concluir o óbvio e, aparentemente se isolando numa fortaleza de indagações, o investigador se limitou a divagar sobre os usos da recompensa, porque ainda não existia interesse em solucionar um problema que não era seu.

Quando o sol tocou o mar, retornaram ao hotel. O gerente do Palacio del Otoño esperava o investigador na recepção.

— Senhor — ele disse —, por aqui.

E o levou ao conjunto de mesas iguais, e verdadeiramente diferentes, o bar à esquerda percorrendo o espaço de ponta a ponta, e a orquestra invisível, que tocava num sussurro longínquo como ecos de uma memória apagada, dentro do restaurante.

Em volta, os serventes se esquivavam de bocas risonhas e corpos eufóricos. Três casais tagarelavam a respeito do ataque em Jinko, seguindo o garçom. Uma mulher lívida provava um cosmopolitan no bar. Um rapaz de camisa desabotoada, três bancos à direta, pegou um par de chave e balançou-as entre o indicador e o polegar. A mulher mordeu o lábio inferior como se já estivessem abaixo os lençóis. Saíram juntos. Outros mais entraram.

Os turistas remanescentes, Sánchez observou-os. A realidade e as pessoas que nela sofressem pouco importavam a eles se a bonança escondesse a sujeita da bela vista.

O gerente indicou um homem de terno desacompanhado que bebia vinho branco e estudava o cardápio. Numa mesa vizinha, outro homem ostentando uma aparecia de doente, mas abastado, apalpava o seio esquerdo da garçonete e sua acompanhante, radiante num vestido de jade e marfim, cascateava uma risada aguda.

Sánchez dispensou o novato, e o rapaz contrariado serviu-se do bar. Assim que viu o investigador, o homem de terno largou o cardápio.

— Se vai pedir um prato, aconselho o pato à libré — ele sugeriu. — É delicioso.

Nada respondendo a princípio, Sánchez fitou o trio da outra mesa; da toalha branca monocromática aos talheres de pixels multicoloridos, o relógio dourado adornava o pulso esguio do homem, o colar diamantado oculto atrás da palidez da mulher, o rubor agoniante da garçonete.

— Espere um segundo...

— Deixe-os em paz — atalhou o homem de terno, indiferente, bebericando o vinho. Sánchez olhou-o, pasmo, e ele acrescentou: — Ela não se incômoda. Essa reação... O asco... É uma reação simulada. Entenda, uma criatura amorfa poderia servir as mesas tão bem quanto ela. Então, temos a pergunta "por que é uma linda mulher e não uma criatura amorfa?" e a resposta é "para o deleite dos hóspedes". Recorda-se de onde está, sr. Gelmires? Sente-se.

Sánchez ignorou a oferta.

— Como devo chamá-lo? Senhor...

— Use o nome que desejar.

— Pois bem. Sr.... tanto faz, vou direto ao ponto. O Arquipélago de Maula sofreu um ataque, mas isto é óbvio. O seu pessoal não conseguiu resolver a questão internamente, mas isto também é óbvio.

— Hummm...

— A invasão aconteceu no intervalo de dois a três meses atrás.

— Menos.

— Um mês?

— Menos.

— É tão grave assim?

— E não? Os hóspedes estão presos aqui e lá fora, sr. Gelmires. Como ainda tem dúvidas da gravidade?

Sánchez deu de ombros, recolhendo-se depois na sabedoria do silêncio. A orquestra e a arquitetura catedrática e longitudinal do restaurante, livre dos erros humanos, cresceu entre os dois. O homem de terno suspirou.

— O malware afeta somente os hóspedes e os transformam em vetores imediatos de contaminação — ele explicou. — Mas isto é óbvio. Os sintomas básicos incluem: vômito, diarreia, dores abdominais, em sua maioria. No início... dias depois, os infectados morrem de desidratação ou falência de um ou mais órgãos virtualmente importantes à estrutura basilar dos avatares. Durante este período, estão presos aqui.

— E?

— Não podem retornar às nossas dependências depois de mortos.

Sánchez riu.

— Alguém quis voltar?

— E por que não? — O homem estendeu a taça de vinho à mesa vizinha. — Aquele seio é real, sr. Gelmires. Pode prová-lo mais tarde se o sr. Burtostan não o requisitar para resto da noite. Enfim, as pequenas coisinhas... as sensações são reais. Eles sofrem naquelas tendas, então nojentos e experimentarão uma morte igualmente horrível... mas, depois de expulsos do paraíso, e no inferno, qual será o primeiro desejo dos anjinhos caídos?

Sánchez mostrou os dentes, uma careta próxima de um sorriso.

— E por que eles não podem voltar?

— O I(M)P é bloqueado quando o hóspede "morre", embora a morte não seja um termo exato... ainda não entendemos o porquê.

— Podem descartar vírus e vermes, sabotagem do código-fonte, falha da programação... — O investigador acrescentou e, após um instante, disse: — A integridade da IA.

— O que tem?

— Foi analisada?

— Não.

— Por que não? — Sánchez apoiou ambas mãos sujas na suntuosa mesa. — Em antigos trabalhos, alguns bugs do sistema derivavam do mal funcionamento das IAs. Os empregadores tinham-nas por imbatíveis, e elas próprias acreditam que sim, até uma simples análise provar o contrário.

— Hummmm... — O homem de terno provou o vinho da taça, balançou-o, sorriu. — A minha integridade não está comprometida, sr. Gelmires. Pode confiar na minha palavra ou executar uma análise pessoalmente a qualquer momento... se conseguir burlar as minhas restrições, eu o autorizo.

Sánchez ergueu uma sobrancelha.

— Você...?

— Sim.

O homem de terno era só sorriso.

— Merda, você tem permissão de interagir comigo?

— Eu gerencio este mundo, sr. Gelmires. Interações são... Esta forma é adequada? Prefere uma feminina?

Uma pausa abrupta, inumana, se apoderou do homem antes de uma resposta, distorcendo-o, distribuindo-o, reagrupando um infinito de pixels e convertendo-o numa mulher de vestido florido.

— Melhor?

Sánchez não respondeu.

— Podemos continuar?

— Infelizmente não, o trabalho está fora das minhas capacidades. Um novo malware...

— O conselho terceirizou a questão a mim — ela interrompeu —, e eu, três minutos atrás, terceirizei ao senhor. O senhor já sabe demais para rejeitar o trabalho, não concorda?

Objetivas e implacáveis, Sánchez lamentou. Qualquer criação dentro do padrão cósmico alocava a vida no centro do universo, e o eu-pensante no centro da vida, o mundo consciente pertencia a humanidade e a ninguém mais, porém a desconstrução dos programadores pós-exploração lunar criara as existências mais esnobes do mundo, esnobes, objetivas e implacáveis, capazes de simular o comportamento humano e posicionadas no centro do centro do centro, os anjos artificiais perfeitos que, e o investigador soltou outro lamento silencioso, indiscutivelmente significavam problemas.

— Qual o seu prognóstico, Dolores? — Sánchez perguntou, desistindo dos argumentos refutáveis como os usados contra o novato. — É o seu nome, não é?

— Sim.

— Então?

— Diagnóstico inconclusivo — Dolores respondeu, desapontada, a cabeça caída de um lado. — Prognóstico invalidável.

— Suspeitos?

— Os nativos. Eu crio, mas não os controlos, é preciso dá-los autonomia e assim acreditam que estão vivos e os turistas os tratam como tais. Quem procuramos pode estar disfarçado de nativo. Do contrário, o firewall evitaria os ataques.

Sánchez concordou.

— Do que precisa?

— Os dados interno. — Ele suspirou, massageando o pescoço. — E um quatro.

Na mesa vizinha, o casal agora saboreava uma truta vermelha grelhada, a mulher contava uma história cheia de gesto mirabolantes. O garfo traçava retas, cortes, apunhalava o ar e voltava com um sorriso malévolo. A garçonete sumira. Dolores bebia o resto do vinho, uma gota deslizando os lábios caiu no seio esquerdo.

— Quer provar?

E Sánchez tentou camuflar sua raiva enquanto o embaraço o dominava, aquela profissão nunca pedira bons observadores, mas ele o era e devia ter visto com antecedência que a IA sorria usando o rosto da garçonete. Os olhos dela, de um verde azulado impossível, faiscavam.

Vadia.

— Suíte 1-0-0-1-1-1.

— Obrigado — disse o investigador, distanciando-se da mesa sem acrescentar mais palavras. Mandou o novato montar os equipamentos e esperou na recepção.

Como se atentar ao requinte daquele lugar estava fora de questão, Sánchez se distraiu contando os turistas que entravam e saíam do hotel, um fluxo demasiado agitado de pessoas diferentes umas das outras, sempre diferentes, sendo a semelhança um dos poucos elos de ligação entre os ricos o suficiente para se hospedarem no Palacio del Otoño.

A gravidade da situação desenhada e à mostra, Sánchez concluiu. Dolores criava réplicas para disfarçar a baixa de turistas.

O novato desceu uma hora mais tarde.

Uma porta de madeira talhada à mão assinalava o único quarto centenas de andares acima do térreo, a suíte 1-0-0-1-1-1.

Os quatros do Palacio del Otoño acima dos cinco dígitos pertenciam à alta classe corporativa, construídos a base de um algoritmo provisório e desapareciam terminada a estadia. Uma regalia em raras ocasiões saía de graça, porém Sánchez rendeu-se a confusa manifestação arquitetônica de luxo e deitou-se na cama, de uma maciez impossível como se flutuasse no espaço, a completa inércia ainda que a sensação de peso estava lá, e pôs o contato na têmpora.

Os equipamentos, as três maletas, duas carregadas de círculos processadores e a terceira controlando o sistema principal, exigiam apenas o par de mãos do novato. Os dados do arquipélago pulsavam. Sánchez ouvia os murmúrios, resistiu à princípio, e depois, e enquanto o companheiro debatia sozinho o conceito de parceria, mergulhou nos mares da subconsciência.

Vazio.

Um negrume infinito. O investigador sentia cheiro de espetinhos de barras proteicas grelhados quinze anos atrás. Ouvia os molares mecânicos triturando maçãs verdes em Albany. Pedidos, muitos pedidos. A multidão exigia a oferenda em pratos fundos, garfo e faca, pato à libré, vieiras cruas, fritas e conserva artesanal obedecia a natureza da criação do arqueológico e o pecado da gula garantia zero calorias. Desnutrição. O vinho, Dolores. Os lábios da garçonete devoraram o conjunto, provaram a deliciosa harmonia e, molhados e quentes, Sánchez os provou.

Suíte.

— Quanto tempo?

— Três horas, quarenta e cinco minutos e doze segundos — respondeu o novato.

— Tanto assim?

O novato reiniciou o dispositivo, calado e incomodado. Porém, apenas meneou.

— Droga! — Sánchez praguejou. Saltando da cama, a consciência pulsou numa escala análoga a inconsciência tentando desvendar os mistérios insolúveis do transe. — Quantas repetições você rodou, idiota?

— Nenhuma.

Péssima notícia.

— Só foram analisados 35% dos dados iniciais — acrescentou.

Sánchez resmungou um insulto, e embora dirigido a Dolores, o novato se calou.

A campainha tocou.

Era ela e o rosto da garçonete e perguntou sem acréscimos:

— E então?

— Alimentos — Sánchez cuspiu. — Análise os nativos que manuseiam alimentos. Qualquer alimento. Qualquer nativo. Porra, o vetor da contaminação estará em um dos dois.

Dolores ergueu as sobrancelhas, o queixo caído numa performance dramática digna das clássicas novelas mexicanas. Por fim, os lábios se fecharam reprovadores.

— Os principais sintomas dos infectados — ela disse em seguida — são semelhantes aos da gastroenterite aguda, sr. Gelmires... já fizemos! Mais de uma vez, com os nativos, os alimentos... cada misero grau de areia das duzentas e sessenta e duas praias e nada foi encontrado. É tudo o que tem?

Após um silêncio incômodo, Sánchez disse:

— Sem fazer outro mergulho, sim.

E explicou:

— As deduções acontecem a níveis subconscientes... e eu não vou fazer nada até saber se a quantidade de dados que você liberou pode me matar. É por isso que recorreu a um otário qualquer, não é? Porque seu processador não consegue varrer a lixo das praias e bajular aqueles babacas ao mesmo tempo.

Dolores apenas caiu desconsolada na cama.

— Controle-se — ela disse, fitando o teto. — Se você morrer, leva nossa melhor chance de... resolver silenciosamente nosso probleminha, é um motivo bastante sólido para manter a sua segurança, não?

O novato se mantinha em silêncio. Sánchez acenou para ele, sentou no chão, encostando na cama, e mergulhou.

Profundo.

Um titã ígneo caía abaixo da absoluta temporalidade das estrelas, afundou-se e pereceu milhares de anos milhares de vezes esmagado, desolado e insistindo na cria-universal secretada que desprendia de sua casca rochosa. A vida avistou a superfície e invejou origem a anos-luz de distância, obrigando-se a alcançar o espaço, espalhando-se. Uma simbólica proliferação de crescimento evolutivo. Os primeiros seres nascidos desbravaram os perigos de marés solitários e emergiram...

Teto.

O investigador apertou os dentes e os punhos, segurou um berro estridente. A suíte 1-0-0-1-1-1 tremia. O chão devorava-o para escuridão e, no vazio, ele despencou como um meteoro ígneo desgovernado em direção ao brumoso oceano psíquico, desmaiando em seguida sob a tentação de abrir os olhos e descobrir que aquela dor consistia em sua cabeça esmagada com golpes de paralelepípedo.

— Eu acordei quase morto sete horas depois — Sánchez disse ao velho pescador. — O transe é uma benção. Eu não sinto nada e não sou nada e nem existo, o equipamento e meu subconsciente cuidam do trabalho duro, mas quando "exigi" demais de mim mesmo e desmaiei, um eco do transe escapou para a minha mente e...

O investigador fez uma pausa, reformou uma ideia mais simples e explicou:

— O transe continuou em forma de sonho, entende?

O pescador confirmou, porém cada parte dele sinalizou de uma única vez que toda aquela história jamais caberia em sua cabeça de homem do mar.

— Eu sonhei que era um homem-truta vermelha — Sánchez continuou. — Na encosta do arquipélago, e perseguia um anzol. Era instintivo...

— Elas sempre mordem os anzóis — comentou o pescador, e o investigador concordou. — Mas eu não entendo. O que isso tudo quer dizer?

— É bem simples. A isca atraía minha parte peixe enquanto a parte homem, pelo contrário, tentava lutar porque era a parte que entendia o uso dos anzóis. O que eu era de fato?

O homem encarou o investigador.

— Um pescador e uma truta vermelha.

A criatura morta no canto da mesa somente existia como a prova de um crime terrível. No silêncio entre os três, o barulho do mar invadiu a casinha e a palha acima balançou com o vento. O pescador umedeceu os lábios.

— Eu?

— Sim.

— Mas eu sou eu!

— É sim — Sánchez concordou. — O invasor criou um maldito ataque fracionado. O pescador e a truta. É bem simples, não é? A truta morde o anzol, o pescador vende a truta, o turista come a truta, todos morrem no final.

— Não... espere! Pode ser um pescador da vila. Lá em cima tem muito pescador de vermelha.

— Tem sim, muitos. Mas é você.

— E... — O homem avaliou a casinha, a truta, o investigador, numa olhada cansada, triste. — E... como eu fico agora, senhor?

— A solução é até bem mais simples que o normal, basta a vadia tirar um do outro e o problema está resolvido — Sánchez disse e, no primeiro sinal de esperanças no rosto do velho pescador, atalhou: — O problema é que o ataque força a Del Paraíso a entrar no conflito... Etern, os brasileiros, agora a Del Paraíso. O conselho prefere evitar o risco. Além disso, os turistas gostam de pescado, mas ninguém sabe quem é você.

De imediato, o vento cessou. O velho saltou do banco e se muniu de uma faca de lâmina gasta retirada da bacia de louça suja, apontou a arma feito um animal acuado incapaz de se defender nas palavras. O investigador confiou à tela sua integridade física, mas via com bons olhos a perspectiva do homem matá-lo pela crueldade que cometia.

— Calma, meu velho — Sánchez disse, clicando no dispositivo uma vez e encarando o homem antes de clicar novamente. — Você não vai sentir nada.

E assim aconteceu. Um breve atraso na codificação do local, um piscar de olhos, e o homem e a casinha desapareceram da ilhota.

De pé, acima da duna, o investigador se voltou ao mar de azulejos esverdeados.

Os pássaros se erguiam imponentes sobre as ondas e flutuavam longe da ilhota, os sinais de presença humana se limitavam a pequena embarcação remendada que o novato devolvia às águas. Sánchez desceu a praia, passando por uma Dolores descalça, e ajudou-o a empurrar.

— Não que eu me importe — Dolores indagou após o pequeno barco flutuar preguiçoso para longe da praia —, mas por que fizeram isso?

Agachado, Sánchez sentia a maré envolver os sapatos. O novato perseguia o barco, seu olhar triste. A pergunta se perdeu na onda seguinte.

— O pagamento será efetuado em breve — Dolores disse então. — Obrigado por seus serviços, sr. Gelmires. Sugiro que... deixe este lugar o mais rápido possível. Adeus.

E desapareceu.

O horizonte exibia as linhas translucidas da programação, dados visíveis apenas durante uma grande mudança na arquitetura local. O investigador ofereceu uma última contemplação àquele detalhe oculto aos turistas. Em breve, a ilhota também desapareceria e o processo findava encerrado. Uma gaivota pousou no barco.

Sánchez desconectou.

Escuro.

O cheiro habitual de circuitos queimados o envolveu como uma amante carinhosa conforme as quatro telas, dispostas em um retângulo maior, banhavam a poltrona do investigador de luzes primárias e o verde dos códigos fontes, pulsantes fuzilando a letárgica pelo tempo gasto em Del Paraíso. A tela superior esquerda acusou quarenta e nove horas.

Por dois dias sem mover um músculo sequer, Sánchez gemeu.

— Tudo bem, chefe — perguntou o novato da tela superior direita.

— Sim... o pagamento...

— Efetuado a três segundos. É muito.

— Deduzindo as dispensas médicas de sempre... sobra quanto?

— Pouco. A dívida é igualmente grande, chefe. Sabe disso muito bem.

— Eu sei... — Sánchez lamentou. — Pague.

Os códigos flutuaram nas duas telas inferiores e o novato confirmou a transação. O investigador retirou o contato das têmporas.

— Como vai o estado do seu armazenamento, novato?

— 95%.

— Execute a função E7...

— Eu tenho uma contraproposta, chefe.

— Já ouvi — Sánchez rebateu. — Muitas vezes... eu não posso manter a sua memória enquanto não comprar uma extensão. Não vale à pena adiar. Execute a função E7.

Da segunda vez, os códigos flutuaram na parte superior direita.

— Restauração concluída — disse a tela superior direita em tom neutro. — Olá, sou o assistente pessoal da Etern. Em que posso ser útil, senhor?

— Editar configurações. Nome padrão, mudar; novato. Nome de usuário, mudar; chefe. Ativar a oitava personalidade. Concluir alterações.

— Positivo, chefe — confirmou o novato.

Sánchez acomodou-se na poltrona, satisfeito de garantir mais um mês de estadia para o pai no Hospital Interestadual de Albany, e dormiu, no íntimo dos sonhos, deitado nas incógnitas linhas do paraíso.

16 de Janeiro de 2021 às 19:45 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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