Desde que Perséfone pisou seus pés descalços no Submundo e inalou o ar pútrido do Tártaro pela primeira vez, Hades viu-se como alguém completamente diferente. A presença da deusa no mundo inferior coloria a atmosfera cinzenta e trazia uma indescritível leveza que consumia o deus dos mortos tanto quanto a paixão abrasadora que o fizera romper com os limites para fazer de Perséfone sua senhora.
Para ele, o amor até então era desconhecido. Estava longe de amar seus irmãos, quem dirá os mortais que o aborreciam com seus lamentares enquanto suas almas se arrastavam pelo Campo de Asfódelos, quando não julgadas a toda uma eternidade de torturas no Tártaro. Particularmente, não tinha tempo para heróis e suas ladainhas; nutria certo desprezo por aqueles que gozavam de uma boa vida pós-morte nos Elísios. Em suma, nada conseguia agradar o deus dos mortos. No entanto… qual fora sua surpresa quando pôs os olhos sobre tão frágil e delicada criatura, cuja beleza arrebatadora fazia inveja à própria Afrodite.
Hades jamais desejou uma mulher como desejava Perséfone. Ele gostaria que as coisas houvessem tomado rumos diferentes, tanto que fora pessoalmente conversar com Deméter para pedir-lhe a mão da filha. A resposta, obviamente, fora uma negativa regada de escárnio. Como alguém feito ele poderia ousar pensar na possibilidade de se casar com Perséfone? Deméter ficou ultrajada; a mísera ideia de perder sua adorada filha para qualquer outro homem provocava o mesmo sentimento, mas Hades, de todos eles...?
Enfurecido, ele não se contentou com a recusa. Àquela altura, mal conseguia passar um dia sem esgueirar-se pelas sombras e observar Perséfone de longe, completamente fascinado e entregue à deusa que sequer suspeitava de sua presença ali, quem dirá do quão era fervorosamente devoto a si.
Passadas longas tardes observando-as nos campos, retornar sozinho ao Submundo tornava-se cada vez mais excruciante, como se o ar fosse roubado de seus pulmões e lentamente sufocasse até ser agraciado com um novo sopro de vida quando voltava a admirar-lhe. Hades não mais podia permitir que seus dias se arrastassem assim, e num impulso embriagado de paixão retornou ao mundo dos mortos com a jovem Perséfone presa em seus braços.
Aquela não era exatamente a melhor forma de dizer-lhe o quanto a amava.
Tamanho fora o choque para Perséfone quando se viu diante do temido Hades, soberano dos mortos. Então era assim que a vida terminava? Em um minuto estava a colher narcisos e acariciar as pétalas macias das flores, noutro estava sendo arrastada até o mundo inferior enquanto seus gritos e lamentos eram ignorados por todos à sua volta.
Pôs-se a chorar copiosamente aos pés do deus, implorando para que ele a deixasse retornar quando não jogando sobre ele uma avalanche de perguntas em tom aturdido. Sobretudo, se repetia o inevitável: por que estava fazendo aquilo com ela, que sequer o conhecia ou lhe afligiu algum mal? Mas Hades era irredutível, seu olhar frio e distante fazia com que arrepios descessem pela espinha de jovem deusa. Ao fim, ele apenas lhe estendia uma romã e a observava em silêncio.
Perséfone havia perdido a noção de tempo, seu estômago estava embrulhado com o cheiro pútrido e carregado no ar denso do Submundo, mas ao que pareceu uma eternidade continuou a implorar para Hades; em certo ponto, seus pedidos eram um emaranhado incoerente de frases e soluços. Até que enfim, aceitou a romã vermelho-vivo e viu o mínimo dos sorrisos iluminar o rosto do deus, o que inconscientemente a fez espelhar o gesto. Sentiu água na boca ao pegar uma única semente, brincando com ela entre os dedos antes de levá-la aos lábios e engolir de uma só vez; o mal estava feito.
Não tinha mais lágrimas para despejar quando compreendeu os significados que se escondiam naquele simples gesto: bastou uma única semente para que fosse firmado o matrimônio que lhe prenderia a Hades por toda a eternidade.
O coração do deus do Submundo se despedaçou ao encarar os olhos inchados da deusa, a expressão dantes tão vívida e alegre agora era pálida e assustada. Tentou consolar a fragilizada Perséfone, mas foi repelido. Afinal, havia conseguido o que queria, mas a que custo?
Dali em diante, Hades não poupou esforços para mostrar à sua amada o quão a adorava. Não havia segredo dele que não fosse do conhecimento de Perséfone, não havia sentimentos que lhe tiravam o sono dos quais ela não soubesse, mesmo os mais íntimos trancafiados em si há tanto; enigmas para o próprio Hades. Ele até mesmo confessou sua tentativa falha de uma proposta adequada de casamento e dos dias gastos admirando-a à distância, e Perséfone sentiu pena do tom derrotado e envergonhado de sua narrativa.
Gradativamente, a deusa passava a lhe consolar e o tinha igualmente como confidente, se culpando por fazê-lo justamente com o homem que roubou sua liberdade. Chegou a pensar ter enlouquecido quando sentiu o mínimo afeto brotar em seu peito… dona do coração puro que tinha, era incapaz de odiá-lo. E como poderia quando ele havia desabrochado para ela feito as flores que se abriam ao seu toque?
Mesmo quando retornava ao Olimpo e ali permanecia por algum tempo, sendo envenenada pelas inverdades dos outros deuses que tentavam a todo custo fazê-la desprezar Hades, ansiava pelo dia em que poderia voltar ao Submundo e usufruir de companhia do deus.
Perséfone não mais odiava sua estadia no mundo inferior, estava habituada a viver nos domínios de Hades, se agradava de sua companhia e sinceridade, e até mesmo criaturas monstruosas que outrora a deixariam trêmula de medo mostraram-se bons companheiros.
— Eu só tenho duas mãos — choramingava com os braços doloridos enquanto as três cabeças de Cérbero continuavam disputando suas carícias nas longas tardes em que se dispunha a brincar com o enorme cão.
Percebeu enfim a natureza dos próprios sentimentos quando foi capaz de se opor a própria mãe em favor de Hades, um escândalo que Hermes fez questão de espalhar para os sete ventos.
De início, tentava negar a possibilidade de estar apaixonada. De tantos homens que poderia ter se assim desejasse, tinha de amar justamente o que a tinha raptado? Convencia-se de que o que sentia por Hades nada mais era do que um amor fraternal por todo o cuidado que ele tivera com ela, de que havia se apiedado de todos os infortúnios que sobreviram àquela pobre alma. Mas Eros já havia feito seu trabalho, e não adiantava pestanejar: estava apaixonada por Hades, seu peito borbulhava quando junto dele e flores brotavam incontrolavelmente em meio aos seus dedos.
Foi acometida pela culpa e a vergonha, mas não conseguia repelir aquela paixão, tão mais quando presenciava Hades sendo adorável demais para um deus cuja fama dizia justamente o oposto; a ideia de que despertava aquela versão dele a deixava com borboletas no estômago e um sorriso bobo preso nos lábios.
Certa vez, Perséfone caminhava distraidamente pelos corredores de pedra fria do palácio de Hades quando ouviu uma série de resmungos incoerentes e não foi capaz de conter a curiosidade, seguindo os sons até alcançar um portal que se abria em meio a parede, revelando um jardim de inverno. No entanto, a grama sob seus pés estava seca e amarelada, e das paredes e arbustos brotavam grossos espinhos escurecidos que se retorciam uns sobre os outros. Em meio aquele caos estava prostrado Hades, esbravejando para o nada.
— Meu senhor? — chamou em seu tom melodioso, ao que ele se virou para ela com os olhos arregalados, sinalizando para que ela entrasse. — O que faz aqui sozinho?
— Bem… — Hades limpou a garganta, visivelmente constrangido enquanto sua face tomava uma cor vermelha vibrante feito a de uma romã. — Ora, eu estive… na verdade… eu… — as frases morriam antes que ele pudesse completá-las, e enfim admitiu suas intenções com os ombros baixos e uma expressão de pura derrota — estava tentando fazer um jardim para você.
Os olhos de Perséfone se iluminaram, e um sorriso largo de doer as bochechas se apossou de seus lábios. Contudo, nem mesmo seus ânimos foram capazes de infectar Hades.
— É claro, não deveria ser um jardim de espinhos — ele gesticulou com veemência para os arredores, claramente desapontado. — Mas parece que fazer brotar flores está longe de ser uma de minhas capacidades. Espero que me perdoe por isso, minha senhora.
Perséfone balançou a cabeça, gentilmente acariciando a face do marido que se inclinou para o seu toque. Não seria a primeira vez em que Hades lhe presenteava sem motivo aparente, mas as décadas de convivência a fizeram conhecê-lo muito bem, sobretudo as inseguranças que se escondiam por detrás dos mimos; Hades não se achava digno do amor de Perséfone.
— Não vejo razão para se desculpar. Você fez um ótimo trabalho — ele a encarou, confuso.
Ainda sustentando o sorriso que fazia com que Hades sentisse as pernas fraquejarem, Perséfone tomou uma de suas mãos entre a sua, guiando-as para dentro dos espinhos. O deus dos mortos não protestou, mesmo que temesse que ela se machucasse, e não desviou os olhos do semblante calmo de sua esposa enquanto ela voltava a falar:
— Às vezes, temos de enfrentar os espinhos que se colocam diante de nós... — começou, fechando os dedos sobre os deles e lentamente trazendo as mãos de volta. Hades sentiu os espinhos arranharem sua túnica e trincou os dentes quando se revelaram pequenos cortes nos braços desnudos de Perséfone — para conseguirmos aquilo que desejamos.
Estava prestes a protestar quando sentiu algo formigar em sua pele, baixando os olhos para suas mãos enquanto Perséfone o soltava. Com uma sobrancelha arqueada, o ar ficou preso à garganta de Hades quando afastou os dedos e viu um pequeno broto em sua palma, que tão logo desabrochou em uma grande flor branca e macia. Boquiaberto, olhou de volta para Perséfone, cujo sorriso travesso e olhar terno o deixavam ainda mais embasbacado, e as palavras escaparam de sua boca sem que percebesse:
— O que eu faria sem você? — e mesmo antes de terminar sua fala, ao seu redor começavam a nascer em meio aos espinhos as mesma flores, de tons que iam do vermelho ao branco.
Obrigado pela leitura!
Para quem quer uma história linda e emocionante sobre o casal Hades e Persófono, com uma narrativa maravilhosa e um desfecho emocionante. Recomendo este lindo conto.
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