AS RUAS DO ÉDEN ESTAVAM mais tumultuadas do que se esperaria de uma manhã de sábado. A capital da América Alta nunca parava; era uma das maiores cidades do planeta, localizada no limite da Muralha Goldberg, construída sobre as ruínas de um lugar que chamavam de Washington, D.C., a capital do antigo Estados Unidos da América. Por mais que Éden carregasse lembranças de um passado que parecia tão utópico e distante, seu magnetismo não poderia ser mais moderno: trazia a esperança de um futuro melhor. Não era um jardim, mas sim um gigante de metal e madeira que impulsionava a civilização humana em uma reconstrução que soava eterna. Quem espera um futuro melhor do maldito apocalipse?
William Gideon Mortimer tirou o charuto da boca e baforou a fumaça pesada contra a rua movimentada. Mesmo após tantas décadas construindo sua fama ao redor do mundo devastado, o melhor caçador de recompensas da América ainda fazia o canto da boca sorrir e sentia o coração acelerar durante cada caçada. Levou o charuto aos lábios e usou a outra mão para espiar seu relógio de bolso: 8h da manhã do dia 15 de junho de 2010. Se o dia anterior não marcasse seu aniversário de 54 anos, provavelmente se lembraria da data especial. Não se importava com a velhice, era verdade, mas depois de se aproximar do fim da meia-idade, parara de comemorar. Já que estava sempre em lugares diferentes a cada ano, seu aniversário poderia ser na data que bem desejasse.
— Ele ainda demorará muito a aparecer, pai? — perguntou Nathan ao seu lado.
Seu filho de dezessete anos, Nathaniel Cyrus Mortimer, era um rapaz bem-afeiçoado e de físico atlético; por outro lado, evitava interações sociais e limitava sua próspera curiosidade às indagações direcionadas a William. Ele vestia uma camisa abotoada branca por baixo de um longo sobretudo preto, calças sociais levemente desgastadas e botas de cavalaria escuras. O despertar prematuro ainda amassava sua pele clara e o cabelo preto caía sobre as laterais do rosto de traços definidos; os olhos azuis encaravam os de William enquanto aguardava sua resposta.
— Três minutos. Tenha paciência, rapaz — respondeu ele em tom baixo. — Agora que você vai me acompanhar, precisa entender que ânsia e nosso trabalho não se conectam. É uma caça, mantenha a compostura.
— Sim, senhor — sussurrou Nathaniel ao abaixar a cabeça. — Sabemos exatamente o que o homem fez?
— Eu sei, mas não importa. — William liberou a fumaça do charuto antes de continuar. — Caçamos por dinheiro. Os motivos de quem nos contrata não entram em discussão.
— Mas o senhor nunca aceitou um contrato que não o agradou?
Ele torceu o nariz ao ouvir a pergunta audaciosa do filho.
— Ora, sua curiosidade consegue ser muito inconveniente. — William ajeitou a gravata apertada e firmou o chapéu na cabeça. — Contarei a história em outro momento. Agora estamos trabalhando.
Ignorando o sorriso satisfeito do filho, William puxou um binóculo do bolso interno do paletó e observou o edifício no lado oposto do cruzamento. O hiberniano, um novo modelo de automóvel, se tornava cada vez mais popular e era difícil resistir à tentação de os admirar enquanto tumultuavam a esquina. William era um ávido colecionador de automóveis — comprava os modelos mais modernos assim que eram lançados — e estava ansioso pelo pagamento daquele contrato. Só preciso achar o bastardo. Viu duas mulheres saírem do hotel sozinhas, três homens abandonando o edifício juntos e, finalmente, seu alvo.
Eugene Bashford, 32 anos, solteiro, um dos trabalhadores das docas do Éden; era um bêbado inútil que espancara a mulher de um homem influente. William precisava saber o básico para localizar e perseguir o alvo, mas se recusava a se entregar ao ímpeto de se aprofundar em sua pesquisa. Nem todos os alvos que capturava ou matava eram trastes como aquele; entretanto, não se sentia culpado pelos momentos obscuros de sua carreira. Só mais um sobrevivente em um mundo tomado por demônios. Não, homens como ele resistiam e desbravavam Abaddon e todos os seus terrores, enquanto vermes como Eugene Bashford se refugiavam na falsa segurança de cidades muradas que tentavam simular uma realidade há tanto tempo morta: o planeta Terra.
— Consegue se lembrar da estratégia? — perguntou William enquanto vigiava o alvo pelo binóculo.
— Não, senhor — Nathan murmurou o mais baixo possível. — Eu avanço por esse lado da avenida e chego pela frente?
— Não. — Ele guardou a ferramenta no paletó e suspirou. — Você roubará a mala e ele o perseguirá até aqui.
— Mas e se ele me pegar antes disso? O senhor não pensa que seria melhor conversarmos com ele? — O leve tremor nos lábios finos de Nathan denunciava seu nervosismo ao pai. — Talvez o homem decida cooperar.
— É uma corrida curta, Nathaniel. — William jogou o resto do charuto no chão sujo e se encaminhou às profundezas do beco em que estavam. — Vou aguardar no fim do beco. Na próxima vez em que estiver tão amedrontado, não deixe que ninguém perceba.
— Pai...
William pausou a marcha e encarou o filho, arregalando os olhos ao notar a elevação incomum na parte traseira do sobretudo do rapaz.
— Acalme-se imediatamente! — Seus sussurros exasperados eram tão libertadores quanto seus gritos seriam. — Respire fundo e ela também se tranquilizará.
— Por que ela pensa sozinha? Eu não consigo controlá-la — disse Nathan.
— Conseguirá com o tempo. Confie em mim. — William se reaproximou do jovem e beijou sua testa. — É só uma cauda. Não torna você menos humano.
Enquanto se afastava da entrada do beco, assistiu ao filho obedecendo suas ordens e controlando o nervosismo. Nathaniel se retirou e atravessou a avenida em uma corrida desajeitada; o alvo estava bebendo álcool de uma garrafa envolta em um saco, vestia trajes comuns dos trabalhadores das docas: macacão acinzentado, botas sujas e uma boina surrada. Havia deteriorado consideravelmente apesar da pouca idade, era dono de uma pança avantajada e a pele bronzeada do rosto exibia rugas profundas. O ritual matinal do bêbado causava um momento de descuido; o homem largava sua mala de trabalho na escadaria da entrada do hotel para beber enquanto observava os arredores. Era o suficiente.
Assim que ouviu os gritos raivosos de Eugene, William apalpou o coldre preso na lateral da camisa social, por baixo do paletó, e deixou Destino ver a luz do dia. Seu revólver possuía uma luxuosa empunhadura de marfim, cano longo com decorações de metal e uma luneta comprida que permitia disparos mais precisos. Era uma alternativa ideal entre as derringers preferidas pela população geral e os potentes revólveres de cano duplo de soldados e agentes da lei. Com Destino seguro na mão esquerda, William se esgueirou pelo beco quando Nathaniel o adentrou apressado com a mala e mirou o revólver em um Eugene enraivecido logo que o viu.
— Garoto maldito! — O alvo cuspiu no chão ao ver a arma e levantou as palmas. — Que merda vocês querem?
— Você. — William saiu das sombras e sorriu de canto ao notar a faísca da familiaridade no olhar do bêbado. — Prefere fazer isto do jeito difícil ou seremos civilizados?
— Mortimer? — Eugene abaixou as mãos e recuou imediatamente. — Eu? Você veio me buscar?
— Sem autógrafos. — Ele avançou contra o homem e o puxou pelo macacão violentamente. — Jeito fácil, eu espero.
Bashford cambaleou pela viela escura; a embriaguez provavelmente estava desestabilizando seu equilíbrio quando ele caiu apoiado nas mãos.
— Eu não fiz nada! Nada!
— Algemas, senhor? — Nathan perguntou ao revirar uma bolsa de couro que carregava.
— Por favor. — William aceitou as algemas: dois grossos braceletes de cobre ligados por uma corrente firme. — Mãos para frente, verme.
— Senhor Mortimer, está me ouvindo? Eu não fiz absolutamente nada! — Eugene se contorcia em desespero, recuava as mãos e observava a dupla enquanto estava caído de joelhos no chão sujo do beco.
— Cale a maldita boca!
Com uma das mãos ainda mirando Destino no homem, William acertou um chute direto em seu nariz.
— Merda! — Eugene se afastou ainda mais ao ser acertado, as mãos seguraram o nariz quebrado e lágrimas se formaram em seus olhos desesperados. Covarde com homens e valente com mulheres. — Chega, por favor!
— Você atendeu às súplicas por clemência da jovem que espancou, seu canalha? — Mortimer se aproximou novamente antes de continuar. — Mãos para frente.
Cansado do choro do alvo e de sua recusa em esticar as mãos, William atingiu sua testa com o cabo de marfim de Destino com muita força, desacordando-o imediatamente. Nathaniel libertou uma exclamação assustada, mas ele o ignorou; o rapaz precisava testemunhar como o mundo real funcionava. Sem piedade para a escória de Abaddon. Por fim, contornou o corpo desmaiado de Eugene Bashford e imobilizou suas mãos com um clique seco das engrenagens das algemas. Com a ajuda do filho ainda chocado, arrastou o homem pelo macacão até a saída do beco.
William Mortimer sorria largo enquanto ele e Nathaniel arrastavam Eugene pela Avenida dos Anjos, a principal via do Éden. Cavalheiros e damas os encaravam tão atônitos quanto encantados; muitos clamavam por seu nome ou o aplaudiam ao passarem. Ele não era tão famoso quanto as estrelas de rádio locais. Ainda assim, quase todos o reconheciam das fotos nos jornais ou das campanhas organizadas pela América Alta contra o crime organizado da nação. Não fazia parte oficialmente da força policial; pelo contrário, seu trabalho envolvia atividades que nem sempre eram legais, mas o temor que sua figura gerava em malfeitores era o mais importante.
Andaram pela fachada dos prédios luxuosos da avenida: hotéis, teatros, cinemas e tudo que o mundo preservado e trancado sob muralhas oferecia. Carros trafegavam lentamente pela avenida. Policiais cumprimentavam William entre acenos de suas máscaras de metal e galopadas de seus cavalos mecânicos; ele se sentia plenamente capaz de considerar o Éden e todo seu glamour como sua casa. Entretanto, esse não era o caso. Seu verdadeiro lar era a devastação além das muralhas; era os acampamentos improvisados em ruínas do século passado e, principalmente, era a satisfação ao retornar com cada criminoso ou ao caçar demônios.
O sorriso aumentou ainda mais ao atravessarem a entrada do prédio Mortimer, uma construção modesta que expandia para transformá-la em um escritório completo. Ele acabara de estabelecer sua base de negócios no novo edifício; cumprimentou Molly Griswold, sua recém-contratada secretária de vinte anos, filha de um velho amigo. Molly era uma garota de olhos verdes gentis, cabelo castanho-claro cacheado e postura impecável; ela parecia muito mais experiente e assertiva com seu semblante sempre impassível e sereno. Naturalmente, os receberia com um mínimo sorriso de cordialidade, mas naquela vez apenas os encarou com uma careta de desconforto.
— Estamos com Eugene Bashford. Entre em contato com o cliente — decretou William assim que a cumprimentou. Ao notar a persistência de sua expressão estarrecida, continuou. — Alguma surpresa?
— Archibald Lucius Fleming está na sua sala. — Molly observou Nathaniel repousando o alvo no sofá da recepção. — Eu deveria ter exigido horário marcado?
Ele sentiu as mãos gelarem e arqueou a sobrancelha.
— Obviamente não, minha querida — disse Mortimer antes de pigarrear e olhar seu filho. — Você deseja participar?
— Da reunião com Fleming? — Nathan arregalou os olhos e pareceu perder o ar. — Tem certeza, senhor?
— Apresse-se, garoto.
Respirando fundo, William girou a maçaneta de sua sala para o encontro inesperado com o presidente da América Alta.
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