Os arruaceiros eram os garotos mais odiados de Jaboatuba, a pequena vizinhança da cidade pacata de Lumirim. Estavam sempre invadindo as casas mais vulneráveis em busca de comida, roubando rádios de carros que adormeciam nas ruas, vandalizando construções públicas e causando desordem geral. As reclamações se tornaram tão frequentes que provocaram uma medida drástica dos moradores: formaram uma patrulha voluntária para prevenir as ações do bando. A vigilância dos cidadãos de bem de Jaboatuba pouco prestava; eram lentos e ingênuos demais para os malandros do grupo.
O Halloween de 2020 fora meticulosamente planejado pela Prefeitura de Lumirim: desejavam revitalizar o turismo da cidade através das várias lendas aterrorizantes que ornamentavam o folclore local. A cidade sofrera com diversos acontecimentos inexplicáveis durante sua história; tornara-se famosa por abrigar o que havia de mais bizarro no Brasil. Se aquele era o martírio mais significante da cidade, que tentassem converter a infâmia em lucro.
A lógica dos arruaceiros não era tão divergente: eles também tentavam transformar seu aviltamento em privilégio. Quatro rapazes sem respeito ou pudor usufruíam da liberdade audaz que a margem da sociedade proporcionava. Seus planos para o Dia das Bruxas também se assemelhavam com os do governo em sua exorbitância; arquitetaram uma invasão à Mansão Chagas, a residência mais célebre de Lumirim. Estavam confiantes sobre a existência de tesouros ocultos na mansão amaldiçoada.
Hugo Boaventura curvou o corpo ao lado de seu Fusca vermelho-vivo e ajeitou o cabelo liso no retrovisor do carro. O fim de tarde quente em Lumirim fazia o pôr do sol atrasar o máximo possível. Sempre vaidoso, ele não hesitou em admirar sua aparência bem-cuidada: sua pele caramelo era livre de imperfeições; os olhos castanho-escuros estavam encobertos pelos óculos de sol Ray-Ban Aviador e o cabelo preto crescia até formar um topete antiquado. Seu visual retrô não era puramente estético; ele se orgulhava por ser um grande admirador dos greasers dos anos 50. Mesmo enquanto ainda vivia no orfanato de Jaboatuba — onde conhecera seus companheiros de aventura —, Hugo não deixava que olhares e cochichos reprimissem o estilo de vida que possuía. Nunca rechaçaria sua extravagância.
— O que esses merdas tão fazendo? — perguntou seu amigo do interior do carro. — Já esperamos muito.
— Você tem algum compromisso além do nosso? — Hugo virou o rosto e encarou seu companheiro.
Aos vinte e quatro anos, Igor Machado era o segundo mais velho do bando, quatro meses mais novo do que Hugo. Era um rapaz de pele negra, traços faciais firmes, cabelo raspado e músculos proeminentes. Ele vestia uma camisa preta e vermelha de mangas longas, calça jeans escura e sapatos surrados; a maquiagem irrisória assegurava a vulgaridade de sua fantasia de Freddy Krueger. O chapéu sujo repousava em seu colo e ele batia as garras de ferro no porta-luvas do Fusca; não era conhecido por sua paciência.
— Sabe quanto dava pra gente faturar com a cidade lotada e a patrulha ocupada? — Igor elevou as sobrancelhas enquanto reclamava. — Não? Nem eu. Mas tenho certeza de que seria muita grana.
— Conseguiremos muito mais na Mansão Chagas — decretou Hugo. Não estava disposto a lidar com as objeções de Igor. — Aquele lugar é uma mina de ouro.
— É, boa sorte tentando convencer o Bruno a entrar lá sem cagar nas calças. — O rapaz riu da própria piada e Hugo o entreteve com um sorriso discreto. — Dá uma olhada no beco.
Hugo se afastou do carro e caminhou vagarosamente até o beco mais próximo, bisbilhotando o progresso de seus outros dois amigos pela entrada da passagem. Com vinte e um anos, Bruno Duarte era o mais novo da gangue: um rapaz arredio que apanhava dos valentões do orfanato e fora acolhido pelo grupo de excluídos. Ele compensava a aparência medíocre — pele pálida defeituosa, corpo raquítico e óculos gigantes — com um cérebro formidável; era um garoto inteligente e amadurecido. Vestia um macacão azul corriqueiro e um capacete de porco que transformava seu visual no de um assaltante de banco. Não estamos tão longe disso, pensou Hugo.
Ao lado de Bruno estava Vicente de Ávila, de vinte e três anos, o arruaceiro mais inusitado. Branco, loiro e dono da aparência mais socialmente aceitável entre eles, Vicente vestia-se como um playboy e denunciava suas origens burguesas cada vez que abria a boca. Hugo e Vicente discordavam e brigavam diariamente; entretanto, Hugo não o considerava um pária menos digno do que eles: aos dez anos, Vicente testemunhou o suicídio de seu pai após um escândalo de corrupção em sua carreira política. Sua mãe desaparecera e o orfanato se tornara um novo e problemático lar. O garoto encontrara resistência no orfanato; seus colegas não se agradavam com sua origem. Além do passado conturbado, Hugo também apreciava as conexões de Vicente; elas eram indispensáveis para os esquemas do bando. Ele vestia uma longa túnica roxa, usava uma dentadura de vampiro e manchara seu queixo e pescoço com sangue falso.
Terminaram a conversa com um homem de terno e seguiram para a saída do beco, acenaram a cabeça para Hugo quando o notaram. Bruno parecia nervoso em resolver assuntos do bando, mas Vicente mantinha o queixo erguido e os ombros relaxados.
— Então? — Hugo apertou o ombro de Bruno levemente para acalmá-lo.
— As visitas terminam às nove. Podemos nos esgueirar para dentro da mansão assim que todo mundo sair. — Vicente foi até o carro para se acomodar no banco de trás enquanto explicava. — Moleza.
— Ele não disse só isso — disse Bruno. Ele também se espremeu no banco traseiro do Fusca. — Ele contou alguns relatos de aparições na mansão. A equipe da prefeitura tá precisando lidar com isso pra organizar as visitações.
Hugo guardou os óculos no bolso da jaqueta de couro e sentou-se no banco do motorista.
— Nem ligamos a porra do carro e você já tá se tremendo. — Igor reprovou com um aceno da cabeça.
— Pega leve com ele. Você sabe como é difícil na infância. — Vicente e Igor riram de Bruno, que se encolhia cada vez mais no banco.
— Chega. — O líder do grupo ligou o carro e respirou fundo. — Temos uma mansão mal-assombrada para roubar.
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