felipedrummond Felipe Drummond

O mundo acabou. Os mortos agora andam pelas ruas. E tudo que você precisa é só chegar ao outro lado da rua, encontrar alguém amado. Atravessar uma rua nunca foi tão perigoso.


Conto Todo o público.

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Rua dos Mortos

Jamais imaginei que seria tão difícil assim atravessar uma rua justamente no dia em que não havia ninguém vivo por perto. Justamente no dia em que eu mais precisei. Ela e eu, nós e os mortos. A minha menininha só fica bem escondida ali dentro do estabelecimento, olhando do outro lado da calçada, provavelmente me procurando com aquele rostinho de gato assustado.

Faço um rápido sinal na esperança de que ela me veja indicando que estou a seu caminho, mas não vou a lugar algum. Olhando de dentro do meu refúgio, vulgo loja de R$ 1,99, me deparo com a situação mais grotesca que tive o desprazer de presenciar em toda a minha vida. Dezenas daquelas carnes podres lá fora, perambulando quase sem rumo, mas nunca saindo da rua. Elas se mexem sozinhas, andando pela rua à minha frente, desde aqui até o outro lado, onde fica a menininha. Ela se esconde dentro de uma loja de doces. Ironicamente sortuda, de alguma forma.

Aquele pútrido cheiro de corpos sem almas que perambulam nas redondezas não era agradável às minhas narinas, mesmo com todo o estabelecimento fechado. Imagino o quanto poderia regurgitar os poucos restos que me foram possíveis consumir ultimamente se eles chegassem muito mais perto até adentrando à loja.

Logo irá escurecer e não terei mais chance alguma de ver a minha menininha. O coração dói muito ao imaginar aquele seu olhar de esperança acreditando que irei ao seu resgate em breve. Eu não posso decepcionar. Bate-me o desespero só de ameaçar pensar nas piores possibilidades. Preciso fazer alguma coisa logo.

Nunca tive um contato tão direto com esses seres medonhos que de algum jeito um dia foram pessoas comuns. Não sei o quanto poderiam realmente ser perigosas em ataque. Já com a menininha eu não posso viver sem o seu contato. Preciso dela. Eu vou até ela. Nem que eu morra para isso.

É como o elixir da vida, a cura para a depressão, a fórmula do poder e da felicidade, um enorme combustível de vida. Puta que pariu, eu estava enlouquecido, em pleno apocalipse zumbi. Andando de um lado para o outro sem parar. Mãos na cabeça. Forçar o couro cabeludo. Grunhir com desespero. Essa loucura... exatamente como eu não precisava estar. Uma ansiedade que sobe queimando o meu corpo, parece querer me controlar. Cada vez pior. Perdi as contas das vezes que precisei me segurar. A cada tentativa de controle fica mais difícil permanecer são. Pergunto-me até quando vou aguentar. Que sacanagem de deus, me separar assim dela. A sensação de ser um trapo inútil nessa situação acaba comigo. A sensação de não saciar a necessidade de segurança necessária ao meu amor... A sensação de estar sem ela, sabendo que isso pode nunca mais ocorrer novamente. Pobre menininha. E eu aqui... preso em meus tormentos.

Como sair, enfim, com esses mortos que andam tão por perto? Penso. Mas penso muito. Penso várias vezes. O desespero vem batendo com força e eu a ponto de cometer uma loucura, impotente, querendo desistir de tudo, quando, por um segundo, só preciso olhar para a loja de doces. Só mais uma vez. Encontrar um sinal de novo indicando que está tudo calmo e bem. Olho pela janela imaginando finalmente encontrar claramente o seu rosto escondido, triste e com medo. Só para machucar mais o meu coração. E então me deparo com a epifania de que não poderia nem cogitar desistir. É uma situação inevitável onde a única saída é um enfrentamento direto. Algo que ainda não fiz. Me esforço. Tento usar todo o meu intelecto, com sorte não muito afetado pela fome, para pensar num plano não tão complicado de resolver esse problema e chegar perto dela.

- Ok, lá vou eu. – Com a penumbra parecendo surgir aos céus a coragem vem. Em semblante confiante, apesar da respiração nervosa afirmar o contrário, tomo atitude.

Tento sair pela porta dos fundos, pois parece ser a única solução. Só sei que preciso ser rápido por já estar a acinzentar o maldito céu. Carrego uma lembrancinha leve para dar de presente para a minha linda menininha do outro lado.

A porta faz um ruído ensurdecedor, o que me assusta bastante. Agora depois dessa não posso mais parar. Sei que o barulho atraiu a atenção das carniças. Do lado de fora aquelas sombras andantes rapidamente alcançam as esquinas por perto confirmando o que digo. Assim me vejo numa situação levemente alarmante. Preciso rapidamente correr para outro lugar seguro. E assim eu vou.

Enquanto corro, BROC, PUMBT. Minha machadinha faz efeito em dois crânios mortos. Foram as minhas primeiras vítimas. Confesso, até gostei. A força que precisa fazer para afundar uma arma dessa na cabeça desses seres medonhos é grande. Libera muita adrenalina a tensão e esse esforço. Já a sensação de vingança por todo o tormento vem como a cereja do bolo. Mais golpes, chutes para afastar e uma certa destreza fazem parte do meu repertório nas ruas agora. Limpar o caminho enquanto corro oferece uma boa e leve sensação de liberdade. Muito prazeroso. E é claro que eu só penso assim ao reparar que eles são meio lerdos.

Estou me aproximando, enfim, da rua principal. Os nossos mundos separados por aquilo. Aqui está o meu mundo. Ali está o da menininha. E no meio... eles. A maior infestação possível de podridão viva. Lembrei-me de repente do cheiro após parar de correr e olhar esse absurdo. Náuseas intensas são tudo que se pode definir. Mas preciso me segurar. Definitivamente não estou acostumado. E ainda nem posso pensar em passar correndo pelo meio da rua. O suicídio é certo e eu desisti desse caminho faz alguns minutos.

Mas que porra de vida! Eu só preciso abraçá-la, dizer que a amo, que ela está segura, que está comigo, que não vamos nunca mais nos separar. Após isso, ok, ok, posso morrer feliz. O nível é desesperador desse jeito. Precisava muito estar com ela novamente, nem que seja por 5 minutinhos.

A lembrancinha que eu tenho em mãos é uma caixinha de música, que toca rock. Olhei para ela com mais atenção e a luz acendeu em cima de mim imediatamente. Sim, era perfeito. Não tinha como essa merda de ideia dar errado. Liguei a caixa de música e, para a minha surpresa e dos carnívoros à espreita, ela tocou uma música de rock pesada num volume bem alto. Que loja de R$ 1,99 eficiente.

Ao perceber aqueles rostos podres virando em direção ao som, que ainda vinha de mim, comecei a correr dando a volta no quarteirão até aparecer na rua principal por um ângulo diferente e mais longe do grande grupo de bestas. Não é que deu certo? Certamente, durante o caminho, a minha machadinha foi eficiente para dar conta de alguns maltrapilhos perdidos. Deu tudo certo. No fim cheguei onde queria. Um ângulo diferente e mais longe do grupo. E a música tocando. O grupo faminto começava a virar em direção ao som. Deixei a caixinha de música no chão ligada. Em seguida, corri todo o caminho inverso contornando novamente o quarteirão. Cheguei ao ângulo inicial e para a minha surpresa a maior parte esmagadora de zumbis se encontravam relativamente longe, por perto da música tocando. E foi ao som do metal que eu senti uma leve pitada de esperança, enfim. Achei ser o suficiente para que eu pudesse adentrar à loja de doces.

Fui abrir a porta do estabelecimento com afinco e alegria, mas foi em vão. A porta estava trancada. Bati na porta com cuidado, de leve, para não chamar nenhuma atenção desnecessária. Só indicando que eu estava ali. O simples toctoc. De repente, prontamente meu coração saiu da quase loucura para um alivio profundo. Puta merda! Era ela. Estava ali, bem na minha frente. Apesar do vidro que nos separava.

A menininha sorriu bonito. Aquela felicidade que me preenche tanto que parece a minha. Ela fez um sinal me atentando para o fato de que não tinha a chave para abrir a porta e apontou para a parede lá atrás. O que rapidamente me remeteu ao seguinte, “acho que já sei como ela entrou aí”.

Os fundos. Só podia ser. Eu precisava ser muito rápido, pois a qualquer momento os zumbis poderiam voltar em peso e o breu ainda apertava mais no céu. A minha visão, apesar de eu enxergar muito bem, estava deficiente pela pouca luminosidade da rua. Céu cinza com nuvens negras. Num pulo o cenário começava a se apagar. Indícios de chuva, que resultam em um escurecimento acelerado lá em cima. Tudo o que eu não precisava.

Resolvi dar a volta na loja para ver se podia mesmo entrar pelos fundos. Para a minha sorte eu vi de fato uma porta. E, melhor, estava realmente destrancada. Ao abri-la me deparo com uma sala de estoques bem grande com um cheiro estupidamente horrível me invadindo. Um ambiente fechado num mundo desses não podia dar em outra coisa. Numa ânsia de vômito, um grupo de 6 zumbis bem decompostos vinham em minha direção com aquela baba e grunhido característicos. Estavam lá dentro, com a menininha. Tadinha. Não conseguia vê-los muito bem, mas era visão suficiente para perceber a localização e a falta de alguns membros. Eu já sonhava com o barulho. Não estava nem aí. Armei a machadinha e fui “dançar” com os meus anfitriões de merda.

Golpes na cabeça em cinco deles. Não foi fácil. O último ainda apareceu bem de surpresa por trás e meti um chute no tórax com tanta força que pensei por um segundo ter partido o bicho ao meio. A adrenalina me fazendo ter forças e lutar. Tudo era por ela. Abri a outra porta que dava finalmente para a loja de doces em si e adivinha?

A minha menininha estava lá, com aquele sorrisão lindo e metálico pronto para me comer vivo de felicidade, no bom sentido e intenções dessa vez. Eu estava da mesma forma. Nos abraçamos e foi um momento feliz.

Atrevo-me a dizer somente a palavra “feliz”, pois não importa o quanto eu dê ênfase a esse momento e sentimento que veio do encontro e do nosso abraço. Ninguém nunca irá sequer ter noção do que sentimos. Não há palavras certas para descrever tudo isso. Todo esse amor existe. Mesmo nessa bosta de mundo. Com ou sem zumbis por perto nós precisamos um do outro, na vida e na morte. Na morte...

Olhando para baixo pude perceber algo espantoso. As minhas lágrimas de felicidade se transformaram em uma tremenda agonia. Um sentimento contrariado de sentido extremamente incômodo. O mundo que me tinha nascido acabara de morrer como um bebê anencéfalo.

Ela estava muito machucada no braço. Uma ferida bem feia. Eu não queria acreditar no que era, nem ver direito. Não tenho problema com sangue, mas caso tivesse já estaria acostumado a essa altura. Afinal, os mortos que andam são piores de lidar. E de fato ela não precisava dizer nada, mas disse.

Desculpa... e obrigada por vir até mim. Você nunca me abandonou. Eu te amo.

Ela parecia conformada, ou satisfeita, porque eu pelo menos estava ali. Minha vida que tinha renascido morreu novamente e eu congelei. Não quis ver mais nada desse mundo, só abracei a minha menininha bem forte e lá fiquei. O momento eterno que eu sonhei. Ouvimos um barulho vindo de trás. Mas eu não estava ligando. Sei que o zumbi que tomou um belo chute meu se levantou e viria em nossa direção. Seria fácil pará-lo, mas não, eu não quero. Chega.

Nem olhei canto algum. Eu só estava ali, chorando de cabeça baixa em seus braços. Eu nem sei qual foi a reação dela com isso. Não pude sequer olhar pra o seu rosto no fim. Mas imagino a sua expressão de compreensão diante do meu rendimento. Ela faria o mesmo em meu lugar. Não havia discussão. Pode-se dizer que isso foi fraqueza, mas tem que ser muito forte para terminar a vida ao lado de quem se ama. Juntos.

E, enquanto divago, os passos tontos e desastrosos ficavam cada vez mais sonoros. Ele chegava perto, eu sei. Seu grunhido estava bem vivo, apesar de ser morto. Cada vez maior, mais intenso e mais forte. O sinal de uma clara aproximação. Acaba logo com isso. A refeição mais fácil da vida dele, se é que ele realmente comeu, pois eu não senti mais nada. Não sei o que houve e, sinceramente, não quero nunca saber. Abracei a menininha e o vazio chegou me preenchendo para sempre.

O mundo tinha acabado há alguns meses e tudo que eu fazia nesse tempo era me negar, não me entregar ao fluxo natural das coisas. Precisei perder a menininha para ver que não tinha como evitar... Esse mundo agora é deles. Eu confesso que não queria ter de lidar com mais perda, mais dor e mais sofrimento. Chega. Não faz sentido. Se não há cura para ela, também não há para mim.

Adeus.

19 de Outubro de 2020 às 19:04 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

Felipe Drummond Um escritor amador. Algumas de minhas obras foram publicadas no formato de contos: - "Aquarela" com o conto "Supremacia dos Mortos" (Editora Andross) - "Amor nas Entrelinhas" com o conto "Mil e uma formas de se amar alguém" (Editora Andross) - "Horas Sombrias" com o conto "O Regurgitar das Almas" (Editora Andross) - "Legado de Sangue" com o conto "Mercado Humano" (Editora Andross) - "King Edgar Hotel" com o conto "Déjà vu Macabro" (Editora Andross)

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