serpensortia Sasha Sanches

Ariel e Iara preferiam ver o oceano uma única vez e sentir falta dele para o resto da vida, do que nunca terem sentido a areia nos pés e nunca terem escutado o som das ondas.


Conto Todo o público.

#oceano #originais #serpensortia #shiitalk
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Cinza como teus olhos.


Eu prefiro ver o oceano apenas uma única vez
E sentir falta dele pelo resto da minha vida
Do que nunca sentir a areia abaixo dos meus pés descalços
E nunca ouvir o som das ondas quebrarem
(Ocean — Native)

Ariel e eu paramos no calçadão; ele segurava o seu violão com a destra e tapava a frente dos óculos com a canhota, impedindo que as gotas de chuva tocassem as lentes deles — eu não me importei com a chuva dessa vez, mesmo que eu sempre reclamasse que odiava quando meus cabelos ficavam ensopados. Você gostava quando a chuva deixava cachos nas pontas dos seus fios pretos, então eu deveria aceitar aquilo por hoje também. O céu estava completamente cinza e então eu pensei que não poderia ter escolhido o melhor dia para vir aqui com ele; a praia estava vazia, como nós gostávamos, e o ambiente parecia perfeito para a melancolia que pairava no ar. Ariel olhou para mim depois de muitos minutos evitando fitar o mar; ele não queria descer, eu sabia, mas não pude deixar de trazê-lo aqui mesmo que contra sua vontade; eu sentia que nós dois precisávamos disso: o sopro da maresia que deixava as peles grudentas, o som violento das ondas contra o rochedo, a espuma salgada que respingava em nossas vestes e a paisagem semi-morta, quase inexistente, que você admirava tanto.

Franzi as sobrancelhas para ele e o vi dar de ombros; então, ele olhou para o lugar que antecipava, perdendo-se no movimento das ondas que quebravam no raso e nas gaivotas que deixavam pequenas pegadas na parte molhada. Aí, eu percebi; ele não queria chorar, mas queria e aquilo tudo era tão confuso para ele que eu não pude deixar de perceber cada sensação que se apossava de suas entranhas como uma avalanche que derruba tudo em seu caminho. Parecia que ele iria gritar e se desfazer em milhões de pedacinhos minúsculos que sumiriam do mesmo jeito que a água apagava as pegadas daqueles pássaros à beira mar. Parecia, também, que ele não produziria nenhum som, como se não fosse capaz, e então murcharia como uma flor daquelas que sua tia-avó deixava na sala, mas esquecia de pôr na parte ensolarada. Ariel quase deixou o violão cair quando uma onda grande cobriu as rochas que ficavam mais perto da água, como se lembrasse das apostas que você fazia quando isso acontecia. Inesperadamente, ele disse:

“Aposto que a água vai até aquela rocha em formato de coração.”

“Aposto que vai até aquela mais acinzentada” rebati. Então ficamos olhando juntos, sem expressar empolgação ou divertimento ou algum sentimento que não beirasse o tédio e alguma outra sensação que eu não conseguia descrever, mas que esmagava meu coração como um martelo que batia num prego: não tinha graça quando éramos nós que iniciávamos as apostas, parecia uma tentativa barata de copiar o que um dia foi a sua essência; era quase como copiar o seu jeito molenga de caminhar ao lado de Ariel, as palavras que você inventava quando juntava duas outras, sua mania de carregar um violão para todo lugar que ia. Ou seus sapatos rabiscados, as suas unhas pintadas com esmaltes multicoloridos ou as camisas das bandas que você nem conhecia, mas que insistia em usar para parecer legal e maneiro.

“Ganhei” disse Ariel, depois de um tempo — eu nem tinha prestado atenção, minha mente se perdeu em algum momento entre o pensamento pesado que era a sua lembrança e os sentimentos que eu e Ariel sufocávamos naquele momento. Respondi um murmúrio quase inaudível e não sei se ele ouviu aquilo. Torci para que não, pois eu sabia que aquela confirmação tinha saído como um lamento inconformado, não com a derrota no pequeno jogo que fizemos, mas com o fato de que não foi você que iniciou a brincadeira. Eu tinha certeza de que ele queria ir embora, agora mais do que antes, porém eu não podia deixá-lo escapar com a desculpa de ser pesado demais; eu sabia que estar ali era como se submeter a uma espécie de tortura psicológica que arranca sua felicidade com garras compridas e firmes, mas eu também sabia que evitar o choque seria pior do que nunca passar por ele — era como não aceitar e viver na ilusão de que tudo ainda estava como deveria ser, quando, na verdade, sua vida tinha mudado tanto que você nem poderia ter certeza de que seu próprio nome ainda continuava o mesmo.

“Vamos descer.” Eu disse a ele. Ele pousou seu olhar no meu, suas orbes negras como ônix invadindo meus olhos castanhos como se procurasse qualquer motivo que fosse para me seguir; eu sabia que ele estava se perguntando se eu virei uma espécie de masoquista por querer ir até o lugar onde passamos tanto tempo juntos. Mas eu não queria evitar a dor, eu queria senti-la e abraçá-la como uma mãe abraça o filho mesmo que ele tenha quebrado o vaso mais caro de sua coleção. A certeza em meu olhar pareceu convencê-lo — ele trincou o maxilar e começou a tirar os sapatos e deixá-los ali mesmo, descendo o rochedo em seguida. Então, imitei-o.

“Cuidado com a-”

“Rocha lisa” interrompi.

“Isso.”

Ariel se sentou em uma das rochas mais afastadas, onde a água nunca alcançava, embora se esticasse até à última gota para tocá-la, e deixou o olhar longe, navegando no oceano e subindo até chegar na parede de nuvens que cobria o azul do céu. Era tudo cinza, até o mar, as algas e as pedras. Era tudo da cor dos olhos que não podiamos mais olhar; os teus. Sentei ao lado dele, nossos ombros não se tocavam e nossos rostos não se encontravam. Quase temi chamá-lo pelo nome, não parecia que era ele ali; Ariel estava se perdendo naquela única cor, aquela que captava nossa atenção sem ao menos nos darmos conta.

“É tudo cinza aqui” disse ele, eu assenti. “Ele era cinza também, Iara.” Concordei mais uma vez com a cabeça. Ele olhou para mim e eu olhei para ele. Então, ali estava ele, de novo, retornado. Eu conhecia Ariel, assim como eu conhecia você; eu era a única que passava tempo demais observando no lugar de falar — vocês dois eram os que falavam demais. E aquele olhar e aquela expressão me diziam que eu estava certa, que foi certo tê-lo trazido e certa em fazê-lo cair na realidade; agora, ele falaria, mesmo que eu soubesse cada palavra que estraçalhava seu coração.

Em algum momento entre o piar das aves e ondas quebradiças, o som da voz de Ariel se misturou com as cordas do violão que ele puxava inconscientemente, aleatoriamente; era uma mania que ele tinha, falava e mexia as mãos, como se suas palavras fossem tão estonteantes a ponto de fazer com que ele se agarrasse à qualquer coisa que o desse a certeza de que ele ainda estava ali, de que ainda estava vivo e não tinha evaporado como tudo o que proferia.

“Eu não sei o que sentir” disse ele, depois de olhar para mim como se suplicasse por minhas palavras e desistisse. “É como um rolo compressor esmagando cada órgão meu e parece que eu vou explodir. Mas também é como sentir vontade de gargalhar até a barriga doer.” Eu suspirei. Eu sabia, eu sentia. Era como ter uma pedra presa na garganta e como não conseguir respirar. Também, ao mesmo tempo, era como ter vontade de olhar para cima, depois fechar os olhos e sentir a brisa bagunçar os cabelos.

“É tanta coisa e coisa nenhuma.” Eu disse. Ele concordou. De repente, ele pôs o violão em meus braços e segurou o próprio rosto com as duas mãos, esfregando cada centímetro de pele que encontrava abaixo dos óculos, que se entortavam à medida que os dedos dele se arrastavam pelas pálpebras; em seguida, bagunçou os cabelos e estapeou uma bochecha com força moderada — ele queria chorar agora e eu sabia; quis dizer para que ficasse à vontade, mas não consegui. Talvez eu chorasse também e até falasse alguma coisa sobre tudo o que acontecera caso ele se derramasse em lamentações. Então, ele deu um longo suspiro e arrancou o violão de volta para seu colo; ele começou a tocar a única música que conhecia, aquela que você ensinou da última vez em que estivemos aqui juntos; era a mesma música que tinha uma frase que um dia você alegou ser a sua preferida. Eu sabia que Ariel tinha os acordes decorados, mas não fazia ideia de que ele também sabia a letra — e eu, que pensava que Ariel seria aquele quem choraria primeiro por você, fui a primeira a deixar que as lágrimas assumissem o controle e molhassem meu rosto; eu sentia o gosto salgado delas e sentia minha garganta fechar junto com minhas narinas, mas eu não deixei que ele parasse de tocar aquele som que fora algo tão especial para ti. Dessa vez, senti-me realmente como uma masoquista, permitindo que continuassem com aquilo que mais me traria dor, mesmo que eu tivesse parte do poder de fazer tudo aquilo sumir; eu queria chorar e não tinha realizado antes. Não pude pensar em mais nada, nem sentir outra coisa que não fosse sua falta. Mas em momento algum eu desejei que não pudesse senti-la.

“Sobre o que essa música fala?” Ariel me perguntou quando terminou. Eu respirei fundo e fechei os olhos. Ele era péssimo em inglês e você sempre fazia piadas com esse fato. Eu queria que ele soubesse, agora mais do que nunca.

“Eu prefiro ver o oceano apenas uma única vez” comecei, enxugando as lágrimas e tentando controlar minha voz no processo. “E sentir falta dele para o resto da minha vida, do que nunca sentir a areia abaixo dos meus pés descalços e nunca ouvir o som das ondas quebrarem.” Eu olhei para ele e ele olhou para mim; ele não chorava, mas seu rosto estava de um vermelho tão diferente do ambiente, que parecia quebrar o padrão cinzento que se expandia além do horizonte.

“Eu discordo” disse ele. Eu perguntei o porquê. “Porque dói.”

“Então você preferiria nunca tê-lo conhecido?” perguntei. Ele não respondeu, estava pensando, não tinha entendido. A realização da frase pareceu bater nele com tanta força que ele precisou desviar o olhar do meu; seu queixo tremia, suas mãos tremiam, e ele assumiu um frio que não vinha dele. Ele chorou e largou o violão no chão com um baque surdo, entregando-o à areia sem se importar com mais nada que estivesse fora do aperto em seu peito. Ele encheu os pulmões de ar e gritou como eu nunca o vi fazer em nenhum momento de nossas vidas. Ele, então, pareceu iluminar e entender que aquela dor que o consumia seria como a saudade do mar, e que aquilo era melhor do que nunca tê-lo visto diante de seus olhos. Eu concordei e fomos embora.

13 de Outubro de 2020 às 12:26 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

Sasha Sanches hey! eu sou a sasha e: escrevo, corrijo, edito, programo, desenho e procrastino. sou fã de nevershoutnever, novo amor, sleeping at last e johann strauss II. já escrevi sobre bts, mamamo, girls day, harry potter e originais.

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