“Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.”
Ariano Suassuna – O Auto da Compadecida
27 de junho de 2025, Recife, Pernambuco.
2020... tudo começou naquele ano maldito. Já fazem o quê, 5 anos? Um vírus dizimou o mundo todo, milhões morreram. Ricos, pobres... não houve exceções. E quando pensamos estar próximos da cura, o verdadeiro pesadelo começou. O CORS-23, o flagelo que atormentou o mundo começou a se mutar rapidamente, cientistas ao redor do globo corriam contra o tempo na busca de uma vacina. E estávamos tão perto, tão perto!
No entanto, Brasil e outras economias emergentes ficaram em segundo plano. Nossos governantes brigavam entre si e pouco se lixaram para o povo. Não houve tempo para contenção do infectados com o vírus mutante. Os cemitérios já não comportavam os milhares de mortos, as pessoas eram enterradas em valas, sem qualquer resquício de dignidade. Uma gente esquecida que fora cruelmente enganada com uma falsa esperança. Estes foram os corpos que saíram dos túmulos para aterrorizar os vivos. Os infectados foram chamados de cinzentos. Artigos afirmavam que era consequência direta da mutação e que o sistema nervoso dos que morreram era parcialmente reativado pelo metabolismo do vírus.
Fanáticos religiosos gritavam nas ruas anunciando a penitência: "Arrependam-se! O juízo e o fim estão próximos!" 5 anos... Eu estava no fim do meu mestrado em ciências biológicas. Eu tinha um emprego, uma noiva, uma vida. Mas no fim, tudo isso foi arrancando de mim. A situação ficou crítica, sobretudo no litoral nordestino. Meu pai dizia: "O Norte pode ser uma floresta abandonada, mas o Nordeste é o rabo do Brasil. Ninguém se importa com gente pobre." Ao menos ele morreu antes de toda essa merda acontecer, enquanto eu tento sobreviver nesse inferno. Religião, política, e força de vontade não puderam ajudar ninguém. Tudo que existe agora é sangue e dor. Tenho que lidar com o infortúnio de estar vivo, embora a morte esteja ali na esquina, me esperando de braços abertos como uma prostituta.
Cinza, sempre detestei essa cor. Um meio termo e ambiguidade, ou simplesmente nomeava pedaços queimados de um cigarro ou restos de um ser humano. Essa cor entre as nuvens anunciava que o céu iria chorar em breve. Ah sim, também chove no Nordeste. Recife tem algo bem único: ou você enfrenta um calor infernal ou se previne de chuvas que parecem um segundo dilúvio. Nublado, aquele maldito dia me aguardava. Liguei a moto, uma antiga Honda de 120 cilindradas. O vermelho desbotado deu lugar ao marrom da ferrugem, mas ela tinha duas rodas e era rápida, isso era mais que suficiente. Por agora eu precisava de suprimentos. Os grandes supermercados tinham sido saqueados e depredados. Os mercadinhos de bairro? Eu já vi um ser queimado inteiro. A fome enlouquece as pessoas. A única diferença de um Infectado é que os vivos soltam berros e palavrões.
Minha alternativa era rondar a cidade, verificar casas, postos de gasolina e com sorte, algum mercadinho. Fiz uma pequena horta e conseguia me manter com alguns legumes, mas uma feijoada enlatada até que não seria tão ruim. Ainda que eu não pudesse me dar o luxo de desperdiçar recursos, mesmo que fosse um asqueroso miojo. Além disso, eu procurava por medicamentos, roupas, facas e combustível. Tudo aquilo estava na lista, mas eu sabia que facas boas eram tão raras quanto um achar bife de primeira e armas de fogo como água num deserto.
Parei em frente a um posto de gasolina. O letreiro ainda piscava hesitantemente, mesmo que não houvessem mais concorrentes. Desci e verifiquei as bombas, felizmente ainda havia combustível nelas. Sem perder tempo, logo abasteci o tanque. O preço nas bandeiras era extremamente abusivo, mas ninguém se importava com os impostos e o preço do dólar agora. Consegui encher dois galões e os coloquei no baú da moto. Mas além do tanque, eu também precisava encher o estômago.
Caminhei até a loja de conveniências, notando que a porta de vidro temperado estava quebrada. Um buraco grande aparecia onde outrora havia uma tranca de metal. Ao redor do vidro, manchas de sangue marcavam presença. Secas e com um vermelho escurecido, já estavam ali há algum tempo. Elas decoravam a porta como um convite ruim de boas-vindas. Com a mão esquerda, tirei o facão da bainha de couro improvisada no cinto. Adentrei após empurrar a porta com a mão direita. Não havia ninguém lá dentro, embora tivesse certeza que uma pessoa tinha morrido ali ou no mínimo, saiu gravemente ferida. Brigas por comida geralmente terminavam em morte e aquele cenário não era nenhuma surpresa.
Não sobrou muita coisa na loja. Alguns salgadinhos murchos, doces vencidos cheios de formigas e umas revistas pornô. Olhei no balcão e notei que o caixa aberto tinha grana. Uns 200 reais completamente inúteis. Ninguém que estivesse vivo podia fazer coisa alguma com dinheiro. Hoje, até um pão dormido tinha muito mais valor. E pensar que há pouco tempo pessoas matavam e até vendiam o corpo por esse maldito papel me deixava enojado.
Meus melhores achados foram três garrafas de água e um álcool 70%. Os freezers há tempos tinham pifado, mas água era água, ainda que não tão refrescante. Pouco depois saí da loja e coloquei a faca na bainha. Senti algumas gotas caírem sobre meu cabelo crespo e minha velha jaqueta jeans. As nuvens soltaram suas lágrimas. Estas logo ficariam mais fortes, sinalizando que meu tempo ali tinha que acabar. Então veio um barulho... Um som que escutei bastante ao longo desses cinco anos.
Aquele grunhido ficava mais intenso a cada segundo. Levei a mão direita ao cinto e desenrolei o chicote. Uma longa corda de couro com um aguilhão de metal na ponta, uma lâmina fina e afiada, tal como um ferrão de escorpião. Diante dos meus olhos, lá estava a maldita Peste em carne e osso. Uma mulher com a pele acinzentada e apodrecida estava se aproximando da moto, vindo em minha direção. Olhos cinzentos e sem vida me fitaram. Sua mandíbula era exposta, lhe faltavam dentes e os poucos que restavam na gengiva eram pretos. Ela manteve a boca aberta, rosnando e babando. Comecei a girar o chicote que rodopiava no ar, e em seguida golpeei o chão, fazendo um forte estalo.
O golpe arrancou um pedaço do concreto no processo. Ela reagiu ao som com um urro e correu até mim. Girei o chicote mais uma vez e o lancei. Ele a atingiu como um bote potente de uma cobra, o aguilhão perfurou o olho esquerdo atingindo o crânio. Eu o puxei e a mulher caiu. Pude ver uma parte do cérebro podre cair junto com ela. Dei alguns passos e observei brevemente as margens da estrada. Passei álcool no aguilhão do chicote, o enrolei e prossegui até a moto. No entanto, outra mulher me aguardava. Distante, a silhueta turva feminina ia tomando forma até que tive uma visão nítida dela.
Ao contrário da Infectada, esta tinha uma cor acastanhada bem viva. Era uma mulata bonita, seus cachos negros e volumosos ficavam na altura do pescoço. Se aproximou graciosa e ameaçadoramente pela estrada esburacada e cheia de lama. Trazia nas mãos erguidas um 38 e referiu-se a mim por um nome. Um apelido na verdade, mas não qualquer apelido. Não como aqueles nomes bobos de infância, e sim do tipo se enraíza em você e as pessoas te reconhecem por ele como se fosse seu nome de verdade. Eu odiava esse apelido. Me chamo João, João da Silva. Mas durante esses 5 anos, ganhei um outro nome infame. Enfim, a mulata me perguntou com mais ênfase:
— Responde cacete! Tu é o Lampião?!
Neste universo, uma pandemia fez os mortos saírem dos túmulos ruindo toda organização política e social do Brasil. Enquanto mortos-vivos vagam pelas ruas, facções armadas lutam por sobrevivência e poder. A trama acompanha João da Silva, um sobrevivente que busca desesperadamente uma cura quando se vê envolvido pelos confrontos entre esses grupos. Leia mais sobre O Silêncio dos Túmulos.
Obrigado pela leitura!
Num curto capítulo somos apresentados a nova realidade mundial. Uma narrativa com descrições palpáveis mais equilibradas, ortografia perfeita, vocabulário rico e bem colocado. As ‘nuances’ são bem dosadas oferecendo humor, adrenalina e uma leitura gostosa, o herói é simpático e único. Recomendo!
Sequência incrível, com qualidade de uma narrativa intimista e divertida, por vezes ácida e pessoal. Lampião é mesmo massa!!!
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