Está para fazer três meses que estou de isolamento. Com exceção do meu gato, não tenho outra companhia. Há dias em que me pego sem vocalizar uma palavra sequer, apenas pensamentos. Em outros, a única comunicação possível é com o bichano. Estou trabalhando em regime de home office, mas a ociosidade tem se mostrado uma inimiga maior do que o imaginado. Ainda lembro de quando recebi a notícia. Eu estava acompanhando as notícias do mundo, mas não tinha como imaginar que a pandemia fosse se estender por tanto tempo[1]. Logo os estados foram fechando suas fronteiras e as cidades aderindo ao distanciamento social. A rua aqui do condomínio começou a passar suas tardes assim como passava suas madrugadas: vazia.
Os dias começaram a ser repetitivos e já não havia sentido diferenciar um domingo de uma quinta-feira. Meu apartamento começou a ficar pequeno demais. Mas isso só aconteceu depois de eu memorizar cada infiltração na parede, cada lajota da cozinha. Foi assustador perceber que o lugar que consideramos nossa casa possa ser tão diferente de nós mesmos quando passamos a observá-la por mais tempo. Ou a notar as demandas que surgem por não se ter tempo o suficiente para cuidar de tudo o tempo todo.
Foi aí que eu decidi que mudaria alguma coisa, pelo menos. Quando me mudei para este apartamento, algumas coisas já estavam aqui e eu as mantive, como os balcões da cozinha, o banheiro e um painel para televisão na parede da sala. Decidi que iria trocar o painel: encomendei outro pela internet e está para chegar hoje.
Estou sentado ao lado da janela observando a rua sem movimento e fumando um cigarro. Moro no único apartamento do térreo. Pelo que eu entendi, era para ser o apartamento do síndico, mas aqui quem desempenha essa função é a própria imobiliária. Além de antigo, antiquado talvez, é úmido e o assoalho é de carpete. Itens que baixaram o valor do aluguel significantemente. Não perguntei se alguém havia falecido aqui por medo da resposta. O interfone também não funciona, então toda vez que consigo programar uma entrega fico esperando na janela.
A calçada é o meu pátio. Entre minha janela e a passagem dos agora raros pedestres existe uma porção de uns três metros de terra cercado por uns arbustos muito malcuidados. Se aqui não fosse um bairro relativamente tranquilo e não fosse a rua da Brigada Militar, eu teria mais medo. Mesmo assim, as grades das janelas sempre são trancadas à noite. Às vezes assim permaneciam o dia inteiro. Nunca eu fiquei em casa durante todo o dia, são esses pequenos detalhes funcionais que ignoro o uso correto que me fazem perceber a ausência doméstica que desempenho desde que me mudei para cá e passei a morar só.
Caminhão à vista. Para chegar na porta de entrada do prédio me basta virar à esquerda quando saio do apartamento. Os entregadores usam máscaras assim como eu.
— Edgar da Silva é o senhor?
— Sim. Precisa de documento?
— Não. Só assinar aqui, aqui, aqui. Aqui também.
Deixo-os colocar a entrega na sala, assino os papéis e os entregadores vão embora no caminhão. Me ocupo higienizando tudo. Meu gato vem conferir o que há de novo, cheirando cada detalhe. Aquiles usa um cone de proteção, coitado, acabou de perder as bolas. Completou um ano na semana passada e felizmente a veterinária ainda atende em tempos de pandemia[2]. Ele está muito magro. Até semana passada ele tinha a liberdade de sair pelas janelas para passear no pátio da casa vizinha ao prédio, mas com esse cone ele não irá a lugar algum até completar dez dias de seu isolamento pós-cirurgia.
Já é quase meia-noite e estou removendo o painel antigo. Aquiles dorme no sofá e eu termino a terceira lata de cerveja. Realidades novas para uma quinta-feira. Ao retirar o painel fico diante de uma quantidade absurda de poeira, teias de aranha e, para minha surpresa, um interruptor. Aperto-o para ver o que acontece e nada. Mas para que serve isso? Olho para a porta e vejo o interruptor de luz da sala. Vou até lá e aperto a chave na parede, as luzes se apagam como o normal. Volto ao novo botão na parede e ele revela sua utilidade: acende as luzes da sala. Praticidades ultrapassadas. Geralmente encontro interruptores conectados assim em escadarias. Olho para a sujeira que saiu do painel. Já tenho ocupação para o tempo livre de amanhã. Com sorte, para o resto da semana. Desligo a luz da sala no novo interruptor e sigo para meu quarto. Uma noite sem escovar os dentes não fará mal.
Todos os personagens fazem parte da mesma cidade. Alguns se conhecem, outros nem sonham da existência alheia, e alguns talvez até sejam fictícios! Cabe ao leitor tecer os fios que irão relacionar esses enredos. Leia mais sobre Pelas ruas de uma cidade pequena.
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