MARIO, DE PIJAMA, COMEÇAVA a esboçar os primeiros rascunhos de um maçante e longo relatório, quando foi subitamente interrompido por uma figura trêmula e pálida. Ela empurrou a porta de seu escritório, projetando seu pequeno e frágil corpo para dentro do escritório, pouco se importando com o horário.
O homem não precisou levantar a cabeça para saber quem era. Não depois do que havia acontecido. Ele sabia que aquele momento — cedo ou tarde — iria chegar e que não poderia fugir de seus demônios, muito menos dos danos do que havia feito. No entanto o pesar em seu coração não o ajudava em nada.
Ainda assim quis acreditar que estava pronto para lidar com quaisquer que fossem as consequências, afinal havia se preparado para aquela situação, é claro.
Mas todas as suas certezas foram por água à baixo quando sua audição captou os sons de passos rastejando tristemente pelo aposento, mesclados a um choro reprimido. O coração falhou uma batida e ele cerrou a mão com força ao redor da caneta. A solução que encontrou naquele momento foi ignorar sua visitante, ocupando-se em observar a luz pálida da lua iluminando o ambiente, tendo como único suporte um pequeno castiçal de velas.
Ele analisou rapidamente suas sombras projetando-se tão insensíveis pelo aposento, notando a distorção que as chamas das velas causavam nos objetos, transformando o lugar em um local macabro e mórbido, enquanto devoravam — um a um — os incontáveis retratos nas paredes, lembrando a Mario de que um dia a sua foto também estaria ali. De que em breve — se as coisas continuassem como estavam indo — ele seria somente mais um daqueles quadros.
No entanto não eram as comparações sinistras que lhe aterrorizavam. Não mesmo. A voz daquela menina, sussurrando em um timbre fraco e doloroso, apavorava o homem mais do que seus pensamentos sombrios.
— Eu soube.
Se Mario pudesse enxergar a si mesmo naquele momento, ficaria surpreso em como parecia tão velho e cansado. O choque provavelmente tomaria conta de seu corpo quando constatasse o quão magro e desprezível se apresentava naquele farrapo desgastado pelo tempo. Os olhos fundos e sem vida o teriam amedrontado, com certeza.
— Eu sinto muito, Sofia. — Respondeu, deixando que seus olhos, enfim, pudessem se encontrar com os da adolescente de cabelos claros e opacos — Eu sinto muito. — Tornou a dizer ao topar com a expressão dela lavada por um luto cruel e devastador.
— Você prometeu. — A jovem sussurrou e sua voz fraca e quebradiça destruiu o coração de Mario. — Você prometeu que todos voltariam bem! — Agora o ódio tomava conta de sua face, distorcendo e transformando a expressão sofrida em algo quase animalesco — Mas você o matou!
Em resposta à declaração, Mario abaixou a cabeça. O silêncio velou seu arrependimento visível, ao passo de que a menina andava de um lado para o outro: as mãos segurando os cabelos no topo da cabeça, enquanto arfava e tentava conter as lágrimas que escorriam por sua face.
— Ele era minha única família. — Sofia desabafou, encarando o homem a sua frente profundamente — Agora não resta mais nada.
O soluço que se seguiu despedaçou o coração de Mario e ele precisou lutar contra si para não envolvê-la em seus braços, protegendo a inocente criança de todo o sofrimento que o mundo cruel em que eles viviam trazia. Ele desejou confortá-la, sussurrando palavras doces e amáveis, cuidando daquela menina como se fosse sua própria filha e amparando-a na tristeza que a envolvia.
No entanto, ele não se moveu.
Como poderia, depois de ter tirado a vida do irmão dela?
Depois de assistir a vida se apagar nos olhos de um menino tão bom?
Mario simplesmente não podia.
Não quando havia sido ele a jogá-nos naquela situação.
O que ele podia fazer?
— Eu sinto muito. — Armando-se com palavras tão comuns, o homem de pijama apenas repetia-as incessantemente, desejando que a minúscula frase bastasse para explicar a morte do rapaz, que a deplorável sentença resolvesse a merda que havia feito e trouxesse a paz que o espírito de Sofia necessitava.
Afinal ele não poderia explicar à uma garota tão nova e inocente sobre a complexidade e o lado obscuro, sanguinário e hediondo de uma guerra daquelas. Mario não queria ser o responsável pelos pesadelos que a assombrariam quando ele narrasse as crueldades que os inimigos haviam feito com o amado irmão da adolescente, em como ele respirava com dificuldades quando o acharam, implorando para que alguém o matasse. O homem de pijama não poderia salvá-lo em tais circunstâncias. Ele não podia sacrificar um batalhão inteiro por causa de um rapaz. Era uma realidade cruel, mas era a verdade que eles precisavam lidar.
Contudo, mesmo com a adrenalina por estar em território inimigo correndo em seu sangue, Mario ainda hesitou em fazer seu trabalho, procurando por meios de ajudar o irmão de Sofia. Seus homens exigiam por ordens e os soldados da outra nação começavam a se dar da existência de seu batalhão.
Respirando fundo, o líder precisou se desfazer de suas emoções e sentimentos para tomar a melhor decisão para o grupo. O arrependimento pesou em cada célula de seu corpo quando ele se curvou na direção do adolescente, o envolvendo em seus braços e o abraçando com ternura. O menino, naquela situação, ainda conseguiu forças para esboçar um sorriso de alívio, murmurando um agradecimento inaudível.
O brilho fosco da arma de Mario foi a última coisa que ele viu, antes do som oco cortar o ar e o projétil alojar-se em seu crânio, sujando os poucos fios dourados que restavam em sua cabeça com um vermelho vivido de seu sangue.
A escolha do homem de pijama tomou da garota a única família que ainda lhe restava naquele mundo, arrancando impiedosamente de suas mãos todos os sonhos e esperanças de que dias melhores chegariam. Logo quando eles necessitavam de toda a fé possível para continuar seguindo em frente.
— Eu odeio você! — A voz colérica de Sofia ergueu-se no quarto. A luz de uma vela iluminou seu rosto pequeno e Mario viu que lágrimas escorriam ali, deixando seus olhos vermelhos e tremulando seus lábios — Eu odeio esse país! — Urrou ao atirar um vaso de girassóis ao chão. As flores se espalharam pelo carpete e a terra sujou seus pés, mas a menina não se importou.
— Eu também. — O homem concordou em seus pensamentos, não a censurando pelo vaso quebrado. A dor queimava nos olhos dela.
— Você que devia estar morto! — Declarou, apontando um dedo na direção dele. Mario desviou os olhos para o chão, tomado pela sensação de que se a menina o esbofeteasse iria doer menos do que aquelas palavras acusadoras — Você que devia estar morto, não ele!
Aquelas eram palavras cruéis, proferidas em um tom quase colérico. No entanto, o homem não discordou da menina de cabelos opacos e manteve-se em silêncio. Ele não tinha nenhum direito de falar qualquer coisa enquanto aquela criança se debulhasse em seu luto dilacerante. O próprio militar daria o próprio mundo para que os dois irmãos pudessem estar junto novamente e sobrevivessem até o fim daqueles tempos cruéis, descobrindo enfim o significado de paz.
Restou a ele desviar o olhar mais uma vez, afundando o rosto em suas próprias mãos. A menina arquejou e continuou a despejar sua fúria no homem de pijama. A Mario foi difícil medir a passagem do tempo, mas quando ele percebeu, Sofia havia se calado e chorava silenciosamente.
Ele a fitou e com o coração pesado, murmurou:
— Eu sinto muito, Sofia.
As palavras pareciam escapar na ponta de sua língua, o limitando a repetir sem parar a mesma sentença. A arrependimento por sua decisão e por ter destruído a vida daqueles irmãos o impedia de falar o que havia em seu interior. Ele sentia-se culpado e ansiava ardentemente voltar ao passado, mesmo sabendo que nada poderia fazer pelo pobre garoto. O rapaz não sobreviveria, não importava o que fizessem.
Cabisbaixo, Mario compreendia que não podia dizer isso a Sofia. Ele preferia carregar a culpar pela morte do irmão da adolescente a contá-la sobre as crueldades que ele havia vivenciado antes de falecer. Pelo menos ele poderia lhe fornecer essa paz.
Por isso apenas ficou ali, parado e cabisbaixo, permitindo que a garota bradasse sua fúria, deixando que ela despejasse o ódio em seus ombros, ouvindo sua voz trêmula e falha, compreendendo sua tristeza e assumindo a posição de um assassino desgraçado.
E por deus, ele merecia tudo aquilo.
Quando Sofia se foi, Mario deixou que sua cabeça desabasse sobre a mesa em sua frente, permitindo que o remorso, a culpa e o luto cravassem suas unhas em seu corpo, abrindo suas entranhas e serpenteando sua garganta, enquanto faziam seu coração de banquete.
Nas paredes os retratos de incontáveis almas o observavam em silêncio.
Ele, o pijama e o esboço do relatório.
Os sorrisos congelados velavam o sofrimento do homem.
Não havia nada que se pudesse fazer.
No fim, aquela era a essência de uma guerra.
Ele havia tomado uma decisão e era justo que lidasse com as consequências. Por mais amargas que fossem.
No fim, a vida continuava.
E Mario precisava terminar o relatório sobre o êxito de sua missão.
A qual custou a vida de um pobre garoto.
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