O dia ao lado de Senhora Charlotte foi adorável. Nunca vou me esquecer do meu primeiro dia em terra firme, o dia em que comecei a aprender sobre os humanos, com seus jeitos e costumes, até então peculiares, mas únicos. No fim do dia, voltei com Senhora Charlotte para sua casa, onde jantamos com Rodolfo antes que fosse trabalhar, e após muita conversa e olhar todos os belos retratos de família, fui ensinada a me banhar como os humanos faziam.
-Eu preparei um belo banho quente para você, mocinha! - Exclamou Senhora Charlotte, levando algumas toalhas para o banheiro. - Deixei sua vestimenta ao lado das toalhas, se precisar de qualquer coisa pode me chamar, querida!
-Muito obrigada, e desculpe pelo trabalho que têm tido comigo. - Inclinei a cabeça num gesto de respeito, como fazia com minhas irmãs mais velhas no mar.
Ela segurou minhas mãos, e sorrindo me disse - Não é trabalho algum, mocinha! Espero que você tenha uma boa noite, e lindos sonhos! - Ela se recolheu em seu quarto, ainda sorrindo. Era uma mulher doce em cada palavra, e sua bondade me encantava de uma forma absurda.
Ao entrar no banheiro vi, pela primeira vez, uma grande banheira branca cheia de água quente, com algumas flores colocadas no centro, deixadas por Senhora Charlotte.
Rapidamente me despi e adentrei a banheira, me deitando sobre a água relaxante. - Sereias não tem uma hora do dia reservada para o banho, afinal, estamos sempre debaixo da água. E nada de água quente, sempre estamos na água fria, que nunca foi um problema para nós, na realidade. Mas confesso que, desde aquele dia eu tenho dado prioridade a água quente.
Era tão estranho estar debaixo d'água sem minha longa cauda, sem estar nadando entre os peixes, entre as algas, entre minhas irmãs... Será que minhas irmãs teriam notado meu sumiço repentino? Será que estariam me procurando? Que desculpa eu daria por ter ficado afastada durante a noite e o dia inteiro? - Eu preciso ir para o mar... - Eu pensei. Mas eu me sentia em casa, estranhamente. - Me sinto acolhida, abraçada de uma forma. O mar é lindo, mas só nós sabemos o quanto é gelado, vazio... - Eu precisava ir para casa, nunca havia ficado tanto tempo longe, mas e se não pudesse voltar?
Ao invés de colocar os trajes adequados para dormir decidi colocar um dos belos vestidos que haviam no guarda roupas. Me dirigi devagar, sem fazer barulho, para a porta de entrada, a qual abri devagar e deixei para trás rapidamente.
Lembro-me que já era tarde, e mesmo assim a cidade permanecia acordada. As pessoas falavam alto, riam e até dançavam. Todos pareciam felizes! - Ao me ver agora, eles me olhavam como olhariam para qualquer outra pessoa, talvez pelo vestido ser mais adequado dessa vez.
Eu caminhava pelas ruas observando cada detalhe da cidade. As belas casas, os belos portões ornamentados, as flores, as árvores... Era tudo tão diferente e tão bonito. Logo a frente vi Rodolfo, caminhando um pouco mais a frente, cumprimentando todos que passavam por eles, e olhando atentamente ao seu redor. Ele então me viu, e se aproximou, sorrindo.
-Senhorita! O que faz pelas ruas tarde da noite? Algo aconteceu? - Ele franziu a testa, preocupado.
-Não, está tudo bem, não se preocupe! Eu apenas quis passear pela cidade...
-Oh, entendo! Pode me acompanhar então! - Exclamou ele, sorridente.
Ele voltou a caminhar, e eu o acompanhei. Ele apontou para uma construção de três andares, bem iluminada e com flores penduradas ao lado das janelas - Essa é a pousada da senhora Caroll, aqui as pessoas conseguem quartos confortáveis e ótimas refeições, é um belo lugar, muito aconchegante! Aqui, mais à frente, temos o melhor lugar para comprar frutas, verduras e legumes! Charlotte é a melhor cliente deles! - Ele riu.
Caminhamos mais um pouco enquanto Rodolfo me mostrava mais um pouco da cidade, até que um novo ser me chamou atenção por entre as ruas. Era pequeno, com pelos pretos e brancos por todo o corpo, olhos amarelos e orelhas pontudas, e se lambia enquanto sentado entre duas casas.
-O que é isso? - Rapidamente questionei sem nem pensar, completamente tomada pela curiosidade.
Rodolfo voltou a franzir a testa, enquanto olhava para o pequeno ser e depois para mim, repetidamente. - "O que é"? Ora, não existem gatos na Espanha, minha jovem?
Fiquei novamente paralisada, já era a segunda vez naquele mesmo dia. Podia ouvir os batimentos do meu coração como se estivesse em minha cabeça.
-Certamente deve estar perguntando da raça dele, certo? - Ele sorriu - É claro, certamente ainda tem dificuldade em falar perfeitamente nossa língua, tudo bem! Esse é o gato Ed, diminutivo de Edward, nome carinhosamente dado por mim mesmo. Quanto a raça ele é um vira lata; quero dizer, ele é mestiço, não tem raça alguma. É muito manso e simpático, todos aqui cuidam dele. Diferente da maioria dos gatos, Ed não teme cachorro algum! Não é curioso?!
Respirei aliviada pela explicação, mas pensei bem e resolvi não perguntar o que seria um cachorro. No oceano nós sereias não existíamos sozinhas, e sim cercadas por outros animais, então notei que os humanos também eram assim. As semelhanças entre nós eram maiores do que eu podia imaginar.
-Pode acariciá-lo, ele é inofensivo. - Rodolfo se aproximou e acariciou Ed entre suas orelhas, o que ele pareceu gostar ao fechar os olhos e erguer mais a cabeça.
Curiosa me aproximei e fiz o mesmo que Rodolfo. Um pouco receoso, ele respondeu a minha investida e esfregou a cabeça em minha mão. Lembro-me de pensar em quanto aquele momento foi incrível. Meu primeiro contato com um gato, na realidade, meu primeiro contato com um animal terrestre. Mal sabia eu, naquela época, o quanto eu me apaixonaria por esses animais.
Nos despedimos de Ed e continuamos caminhando até um trecho em que eu podia ver o início da praia, as pedras, a areia, e ouvir as ondas quebrando. Aquilo parecia me chamar de uma forma tão instigante, tão forte. Eu precisava voltar, ou poderiam notar minha falta, ou poderiam até mesmo já ter notado. Mas ao olhar em volta novamente, no meio daquela cidadezinha radiante mesmo noite adentro, percebi que estava onde deveria estar. Afinal, o mar podia me esperar.
Já fazia algumas horas que o sol havia ido embora, então eu fui até a superfície. - Eu olhei em volta, e a praia estava deserta, como eu esperava. Então nadei em direção a areia, e quando cheguei na parte rasa me transformei. - Quando nos transformamos, saindo da forma de sereia, nos transformamos nuas. Não é como alguns contos dizem; as roupas não aparecem magicamente, embora eu preferisse isso. - Então mais cedo eu havia jogado um longo vestido branco, bem simples, nas pedras que ficam envolta da praia. Por isso, quando me transformei já tinha o que vestir.
O plano já estava em ação, mas agora vinha a parte mais aterrorizante e em qual eu menos pensei: Eu teria que adentrar a cidade humana, e ter contato direto com eles. Será que eu estava realmente preparada? Já vestida eu caminhei com dificuldade, cega na escuridão, e eu senti algo empurrando meu corpo sutilmente. O que era aquilo? Mais tarde eu descobri algo que eu não conhecia, o vento. Não tínhamos isso debaixo d'água, e era maravilhoso senti-lo. Eu caminhei no escuro por algum tempo, e logo senti que não estava mais pisando na areia macia, e sim em um chão duro e frio. - Eu me assustei, e repensei novamente minhas ações, mas segui em frente.
Avistei então luzes distantes, que eram as únicas coisas que eu conseguia ver com clareza. Eu caminhei nessa direção. - Avistei pessoas andando pelas ruas, que ao me notarem se olhavam e cochichavam. - Talvez eu estivesse com o cabelo muito desarrumado, ou com o vestido de uma cor errada... Eles me olhavam como se eu fosse um animal estranho que ninguém conhecesse. - As mulheres usavam vestidos volumosos e longos, já os homens usavam roupas apertadas e que cobriam o corpo inteiro. Um homem, que estava um pouco mais a frente, foi chamado por algumas mulheres e veio em minha direção. - Senhorita, precisa de ajuda? Eu o olhei por um instante. Ele usava um casaco e uma calça preta, botas bem engraxadas e um capacete engraçado.
- Oi... -Você não é daqui, não é? Parece estar perdida.
-É, todos aqui parecem não gostar de pessoas novas... - Todos continuavam a me olhar.
-Não ligue, são um bando de fofoqueiros e mal intencionados. - Ele riu. - Sou Rodolfo, sou o guarda noturno da cidade. De onde você veio?
-Oi, sou Micaila... - Eu definitivamente não havia planejado nada direito, e agora? - Sou de longe, de uma pequena ilha que fica para lá - Apontei para a direção do mar, e Rodolfo fechou um pouco os olhos, parecendo não enxergar bem onde eu estava mostrando.
-Uma espanhola, ora! Não sabia que ali haviam ilhas, mas que bom que agora nossas nações estão em paz, ou teria de te prender! Devo confessar, fala melhor nossa língua do que muitas mulheres daqui! - Ele gargalhou sozinho. - O que te traz até Penzance, minha jovem?
Embora eu não tenha entendido muito o que ele havia dito, ri junto, o que me deu um tempo para pensar na resposta para ele. - Vim apenas conhecer essa terra...
-Claro, entendo! Mas essa hora da noite não há muito o que prestigiar nessa cidade, querida! Pela manhã sim ela fica belíssima e acolhedora!
Eu o acompanhei por alguns minutos. A cada passo que eu dava me sentia em êxtase. - Todos continuavam a me olhar diferente, e eu já não mais me importava. Eu via homens e mulheres dançando alegres, crianças correndo por todos os lados, luzes no topo de colunas, e via a lua, que nunca pareceu me banhar tanto quanto naquele doce momento. - Entramos em uma rua um tanto quanto apertada, e no final dela havia uma única casa. Era grande mas um tanto mal cuidada. Ao passar pelos portões pude sentir um cheiro delicioso passando pelas janelas entreabertas. -Entre, querida. - Rodolfo abriu a porta e tirou seu capacete. - Charlotte, temos visita! Entre, não se acanhe! A casa em que Rodolfo morava era quente e aconchegante. A sala de estar continha um enorme tapete vermelho felpudo, tomando conta de quase todo o chão do cômodo. Perto da grande lareira de tijolos vermelhos haviam duas poltronas azuis com detalhes florais, e um pequeno sofá de cor creme um tanto desgastado. No teto havia um grande lustre dourado, com velas grossas que iluminavam tudo ali.
-Visita? Oh, a casa está de pernas para o ar, Rodolfo! Devia ter me avisado mais cedo... - Aquela voz fina e calma se aproximava junto com o cheiro delicioso. - Pelo menos tenho esses bolinhos para oferecer! - Então a dona daquela voz adentrou a sala, com uma bandeja de bolinhos quentes erguida. Era uma senhora de uns 50 anos, com cabelos castanhos bem presos em um coque alto, que usava um longo vestido cinza coberto por um avental cheio de farinha. - Olá, querida... - Ela olhou abismada para Rodolfo e logo voltou o olhar para mim. - Onde estão meus modos?! Sou Charlotte!
-Senhorita Micaila, essa é minha irmã! - Ele pegou a bandeja das mãos de Charlotte, que se aproximou de mim.
-Você está tão gelada, querida... E descalça... O que aconteceu com você?- Ela acabou de chegar da Espanha, Charlotte. - Ele abocanhou um dos bolinhos.
-Espanhóis! Não sabem cuidar de uma jovem, me parece! Sente aqui, sente aqui! - Ela me empurrou para sentar em uma das poltronas, e quando percebi já estava coberta com uma grande manta branca. - Aqui, querida! Pegue um bolinho, você deve estar faminta! - O bolinho era de abóbora, e foi a primeira vez que comi algo tão gostoso! Afinal nós sereias só comíamos algas. -Isso é delicioso... - Eu mal conseguia falar com a boca farta daquela gostosura. -
-Que bom que gostou, são bolinhos de Abóbora, - Charlotte respondeu. - minha humilde especialidade! - Ela se sentou na poltrona ao lado da minha - Me diga mocinha, você tem onde ficar aqui em Penzance? Algum familiar ou amigo? Eu abaixei o olhar, um tanto acanhada. - Não, eu apenas decidi vir mas me parece que eu não pensei muito bem em como me viraria por aqui...
-Uma grande tolice, querida! - Exclamou Rodolfo, sendo imediatamente reprovado por Senhora Charlotte.
-Não se preocupe mocinha, vamos te ajudar no que você precisar. Mas você precisa descansar! Venha comigo! - Ela me puxou pela mão, me levando até uma grande escada de madeira, a qual subimos e andamos em um corredor grande com outro grande tapete vermelho, que terminava em uma porta verde-musgo, que Senhora Charlotte quase derrubou ao abrir com tanta euforia. - Este é o antigo quarto de minha sobrinha Sofie, pode dormir aqui enquanto estiver conosco.
Eu descobri naquele momento que os lugares onde os humanos dormiam se chamavam quartos. Eram bem parecidos com os nossos aposentos em Atlântida, mas bem mais aconchegante por conta dos diversos móveis que os humanos colocavam. - Ela não vai se importar de que eu durma no... - Eu me esqueci da palavra - ...Quarto dela? Que bobagem! - Ela riu - Sofie se casou já faz alguns anos, não vem aqui desde então. Ela foi para longe, perto de onde você veio, Portugal! Pode ficar tranquila, esse pode ser seu cantinho! Ah, e aqui tem alguns bons vestidos que devem te servir! - Ela caminhou até um enorme objeto de madeira escura, algo que eu não conhecia, mas hoje conheço muito bem: um guarda roupas! - Aqui, use esse para dormir. - Ela me vestiu com um longo vestido branco com mangas largas e uma bela costura no busto. - Parece que foi feito para você! Agora pode ficar a vontade e descansar, se precisar de qualquer outra coisa pode me chamar, meu quarto fica ao lado, e do Rodolfo em frente, mas ele só chega pela manhã. Boa noite, mocinha! - Ela então saiu, com um sorriso caridoso em seu rosto. Naquele momento eu me sentei na beira da cama, e fiquei petrificada apenas com um pensamento forte ecoando em minha mente, de que os humanos não eram ruins como todas nós achávamos! Comecei então a pensar em várias alternativas para mostrar isso à todas minhas irmãs! Poderia apresentar Rodolfo e Senhora Charlotte à elas, e se encantariam com sua bondade assim como eu me encantei. Poderia trazer todas elas à terra firme para juntas nos apresentarmos em nossa verdadeira forma! - Eu estava maravilhada com todas aquelas possibilidades, mas então eu retomei o pouco do juízo que tinha, e me lembrei de que eu só havia me relacionado com dois humanos, e isso ainda era muito pouco. Como eu poderia ter certeza de que todos os outros teriam a mesma doçura daqueles que me acolheram? Eu já não sabia mais o que fazer. Eu descobri naquele momento que eu jamais deveria fazer planos "mirabolantes", porque eu claramente não me atentava a todos os detalhes. Decidi ficar naquele lugar, naquela bela cidade que era Penzance. Eu teria de conhecer o máximo de humanos que eu conseguisse, para então contar às minhas irmãs o que eu havia feito, e assim mostrar também aos humanos que nós não éramos inimigos. Me deitei na grande cama, um pouco sem jeito. Era muito macia e confortável, então logo peguei no sono.
Na manhã seguinte acordei com a luz do sol clareando bruscamente meu rosto. - Não me levem à mal, eu sempre amei o sol, mas ser acordada com todo aquele brilho... Ouvi passos dentro do quarto, então abri os olhos novamente. Era Senhora Charlotte, que abria as cortinas para o sol clarear ainda mais o quarto. -Acorde, mocinha! Esta perdendo um dia lindo!
Me coloquei sentada na cama, ainda sem conseguir abrir muito bem os olhos. -Aqui, acho esse vestido bem adequado para hoje! - Ela colocou um belo vestido vermelho sobre a cama. - Pode vir me ajudar na padaria, se quiser. Naquela época eu não sabia o que era uma padaria, conseguem acreditar?! Hoje em dia dona Charlotte precisa trancar toda a padaria para que eu não acabe com tudo! - O que é uma Padaria? - Perguntei, e ela permaneceu me encarando, petrificada,
- Você não sabe o que é uma padaria, querida? Como os espanhóis vivem, afinal?! - então se sentou ao meu lado. - Padaria é onde as pessoas podem comprar gostosuras como as que faço, como os bolinhos de abóbora de ontem. Também pães, bolos e diversas outras delicias! Mas fique tranquila, eu vou te mostrar tudo! Agora, vamos vestir você! Naquela manhã dona Charlotte me deu uma atenção que nenhuma sereia jamais teve, um carinho especial, um cuidado... Ela estava sendo para mim o que os humanos costumavam chamar de "mãe". Ela me ensinou a usar sapatos, o que nenhuma sereia jamais havia usado antes. Me ensinou como vestir e usar os enormes e belíssimos vestidos que as mulheres usavam, e que eram muito mais pesados e apertados do que o necessário na minha opinião, mas me deliciei com a experiência. Saímos da casa e voltamos até onde Rodolfo havia me encontrado, então caminhamos um pouco mais, adentrando a cidade. Próximo ao que seria um pequeno bosque havia algo parecido com uma casa, porém mais aberto e arejado, com grandes janelas e uma larga porta de pinheiro, que permanecia aberta. Ao passar pela enorme porta senti um cheiro delicioso, e então me deparei com prateleiras e prateleiras recheadas de gostosuras, que naquele mesmo dia senhora Charlotte fez questão de me apresentar. Haviam belos ramos cor-de-rosa pintados por todas as paredes, o que davam um toque feminino no lugar. - Eu estava feliz por estar ali.
-Rodolfo, já estou aqui! - Exclamou senhora Charlotte.
-Certo, eu vou para casa dormir então. - Ele se despediu dela - Bom dia, senhorita! Conseguiu dormir bem?
-Olá, consegui sim... Estou muito grata por ter me ajudado, não sei nem como agradecer. - Eu podia sentir sua bondade, mesmo que não me falasse nenhuma palavra, ela exalava. -Imagine, senhorita! Temos que ajudar uns aos outros, e por falar nisso, - ele aproximou seu rosto do meu - pode me agradecer escondendo alguns bolinhos de abóbora para mais tarde. - Ele riu. Eu sorri, e disse à ele que faria o possível. Então ele partiu para casa. -Hoje o dia vai ser calmo, ontem tivemos muitas encomendas para a casa Hall.
-O que é uma casa Hall? - Perguntei de imediato, curiosa realmente.
-Não uma casa, a casa. - Ela foi até uma comprida bancada, e começou a decorar alguns bolinhos - A casa Hall pertence ao Duque Archibald Hall, que vive com sua família aqui na cidade. Você pode conhecê-los na próxima festa, que será na semana que vem. Eu ainda não entendia naquele momento o que era uma festa, ou mesmo um duque ou conde. Mas resolvi não lotar a cabeça de Senhora Charlotte com tantas perguntas, afinal ela estava atarefada. - Está bem. - Sorri. - No que posso ajudar a senhora?
-Eu precisava mesmo contratar alguém para me ajudar aqui, fico feliz por ser uma companhia tão agradável como você, Micaila! Venha, venha! Vou lhe ensinar a decorar. - Me aproximei, e ela então me vestiu com o que eu mais tarde aprendi ser um avental, para não me sujar. Ela me ensinou a decorar todos os doces que lá haviam, com sutileza. A cada palavra dita por Senhora Charlotte, ficava clara a paixão que ela tinha pelo que fazia. Parecia uma criança encantada com seus brinquedos, que tratava de mostra-los à todos. Embora eu estivesse entretida com os ensinamentos sobre as gostosuras, meu coração estava no mar. Eu não sabia se até aquele momento teriam notado a falta da minha presença. Talvez Lira estivesse me procurando, preocupada com meu paradeiro. - Eu poderia tê-la avisado, mas ela jamais concordaria com meu plano, e certamente tentaria me impedir. Mas eu não queria deixa-la preocupada, então planejei voltar ao mar naquele mesmo dia mais tarde. Meus pensamentos foram interrompidos com a entrada de uma bela moça na padaria. Ela vestia um longo e volumoso vestido lilás, e um belo chapéu branco com plumas brancas cobrindo parte dos seus belos cabelos louros brilhosos. - Olá, Senhora Charlotte!
-Emily, doçura! O que faz aqui hoje? - Dona Charlotte perguntou.-Vim buscar alguns bolinhos. Afinal, os que a senhora foi nos entregar ontem já foram para o estômago apressado do Jacob. - Ela virou seu olhar para minha direção, e esboçou um sorriso acanhado - Sinto muito, não sabia que estava ocupada, eu espero.
-Ora, onde estão meus modos, sinto muito! - Exclamou Dona Charlotte. - Essa é Micaila, minha nova ajudante e nova na cidade! Micaila, essa é Emily Hall.
-É um prazer conhecê-la, Senhorita. - Ela curvou sua cabeça, em sinal de respeito, assim como fazíamos para cumprimentar as Sereias mais velhas de Atlântida, o que me surpreendeu por ser igual. Então a cumprimentei da mesma maneira. - Olá!
-O que a traz até nossa modesta cidade, Micaila? - Ela perguntou. -Vim apenas conhecer esse lado do oceano. - Respondi rapidamente. -Este lado do oceano?! - Ela sorriu sem entender. - De onde você é?
Para não me enrolar muito como eu provavelmente me enrolaria, disse o que tinha ouvido até aquele momento - Sou da Espanha!
-Uma espanhola, ora! Uma raridade por essas terras, afinal. Gostaria muito de conhecer sua terra, ainda não tive o prazer.
-Ou talvez desprazer! - Exclamou Senhora Charlotte - A jovem Micaila desconhece muitos de nossos objetos, vestimentas e até mesmo nossas comidas! Não sei como vivem nessa tal Espanha! Deve ser um lugar terrível para jovens como vocês! -O semblante de Emily então mudou, se tornando um tanto interrogativo, com grandes rugas na testa - De qual parte da Espanha você é, Micaila? Eu senti imediatamente um nó em minha garganta, que estava seca. Eu mal sabia se teria voz para respondê-la, e o tempo parecia passar rápido enquanto eu estava imóvel em frente à ela - Perto do mar... - Mal pude acreditar que tive forças para responder.
-Ah, entendo. Bom, seja bem-vinda a Penzance. - Ela virou seu olhar à Dona Charlotte - Espero que a traga para a próxima festa em minha casa, será minha convidada, Micaila.
-Claro, eu a levarei com todo o prazer!
Durante horas várias e várias pessoas adentraram a pequena padaria, mas todos só me cumprimentavam à distância, como se tivessem medo de mim. Senhora Charlotte me explicou que eles não estavam acostumados com pessoas novas na cidade, por isso eu recebia aquele tratamento. - Se tinham medo de alguém "como eles", imaginei como seria se eu já tivesse me apresentado como uma sereia. Humanos são engraçados, eles se temem e se desgostam mesmo entre si. Como pode?! Sereias são como irmãs, são como uma grande família, somos apenas um. Claro que não temos o mesmo apego e carinho com todas, mas confiamos em nós. Não tememos nenhuma outra sereia, ou a reprovamos. Pelo menos não que eu já tenha visto. Talvez eu fosse, afinal, a primeira sereia a ser reprovada e odiada por todas da espécie. Eu já imagina meu título: "A sereia que desejava ser humana", ou "A sereia que traiu suas irmãs"; Eu não queria de fato ser uma humana, mas eu queria poder viver com eles como vivia com minhas irmãs. E no fundo eu achava que alguma delas podia ter a mesma vontade que eu, não era possível que ninguém desejasse viver uma vida diferente, uma vida menos solitária e mais livre. Mas, com certeza essa não seria Lira. Ela sempre pareceu ser feliz e contente com a situação que as sereias viviam, e que sempre nos foi dita ser permanente. Ela não gostava de mudanças, isso a incomodava.
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