A primeira semana de inverno chegou para abalar mesmo. Com a destreza advinda da experiência de trabalhar no último turno da loja de materiais de construção, Amanda trancou o trinco principal da loja com a mão enluvada, subiu o zíper até o pescoço e esfregou uma mão na outra. “Que bosta de frio”, o atrito gerou um calorzinho que a fez pensar no aquecimento de sua casa, no jantar que sua mãe havia deixado pronto, pratos fumegando à mesa...
“Foda-se. Vou cortar caminho pelo parque mesmo". Normalmente ela não fazia aquilo, mas bem, era inverno e seus pés, mesmo com as meias e os sapatos apropriados, pareciam duas bolotas de gelo. Sabendo que alguns postes do parque estavam queimados, ela tentou andar mais rápido, a fim de não dar chance para nada que lhe surgisse nos canteiros mal iluminados.
Dentro de alguns minutos, uma brisa úmida bateu no rosto amortecido de Amanda e seus ouvidos captaram algumas vozes na frente dela, alguns...murmúrios? Sem parar de caminhar, ela concentrou-se nas vozes e percebeu que pareciam vir também detrás dela. “Porra, vou ser assaltada".
Seu coração não perdeu um compasso e o tremelique que sentiu nos joelhos não era de medo, mas de adrenalina. Ela lambeu os lábios ressequidos, as pupilas dilatadas, abriu rapidamente a bolsa e tirou um spray de pimenta (sim, aquilo era proibido, mas dane-se, era sua vida que estaria em jogo numa rua mal iluminada). As vozes, ora abafadas, ora um pouco mais altas, eram carregadas pela brisa de inverno, enquanto Amanda andava a passos largos, suas botas fazendo o som característico pelas calçadas do parque.
Mais à frente havia um poste de luz com uma câmera nele, então ela parou ali. Respiração intensa, pés afastados, corpo em riste. “Se algo acontecer, pelo menos essa câmera pega.” No entanto, Amanda estava era pronta para lutar, se alguém viesse para cima, ela partiria para cima também, com spray, murros, chutes e dentes. Não estava nem aí pelo fato de ser mulher, ninguém tocava nela sem sua permissão. E se morresse, levaria alguém com ela, isso ela jurava de pé junto, e dane-se a caridade cristã que sua mãe pregava!
As vozes se intensificaram novamente com uma brisa que levou seus cabelos para trás das orelhas, fazendo o frio entrar pela gola do casaco pesado. Então, finalmente ouviu passos junto das vozes e uma mulher alta correu até Amanda e parou ao seu lado. A voz pegou-a de surpresa.
– Tudo bem se eu andar com você?
Amanda olhou seriamente para a mulher alta. “Essa guria é bem alta mesmo...se eu tenho 1,80 ela deve ter quanto?” Agitou fracamente o spray de pimenta, como que mostrando para a outra que ela estava pronta para o que der e vier, independentemente de ser homem ou mulher.
– Claro... Tudo bem, eu acho...
As duas andaram separadamente, alguns passos de distância entre elas. E enquanto as vozes continuavam ora mais baixas, ora mais altas, a mulher foi falando de coisas sobre o parque, os jardins e de como o lugar podia ser sinistramente desonesto à noite.
Amanda ouvia e murmurava uma meia-resposta a cada comentário da mulher, sua mente tentava se dividir entre ficar de olho em sua nova “companheira” e enxergar de onde vinham as vozes. Todavia o parque estava realmente um breu, de uma maneira que ela já não sabia dizer se era impressão sua ou não o fato de ele parecer mais escuro do que o normal...
“Merda, já estou pirando...”
Quando chegaram na outra ponta do parque, Amanda parou e um peso do peito se soltou nas luzes da rua vazia; uma loja de conveniência estava aberta e na outra esquina a pizzaria delivery também estava funcionando a todo vapor. Ela se virou para o parque, as vozes tinham parado aparentemente, e olhou para a mulher.
– Você ouviu alguma coisa quando a gente estava no parque?
A mulher alta não tirou os olhos de Amanda, apenas ergueu brevemente as sobrancelhas, já alongando as panturrilhas como que para retomar sua corrida:
– Eu disse lá dentro que às vezes o parque podia ser desonesto de noite, não disse?
– É, é – Amanda ergueu a mão enluvada, que segurava o spray de pimenta – tipo, você falou sinistramente desonesto...
– Sim, então tenha uma boa noite.
E antes que Amanda pudesse dizer algo em resposta, a mulher correu de volta para o parque escuro. Ainda um pouco abismada, Amanda permaneceu alguns segundos olhando para o parque antes de seguir até sua casa, fazendo questão de passar pela pizzaria delivery movimentada, de onde ligou brevemente para sua mãe, apenas para dizer que chegaria dentro em pouco.
A cada esquina que cruzava, seus pensamentos voltavam freneticamente para apenas um: “se aquela mulher não estivesse comigo naquela hora, algo com certeza teria acontecido”; e a sensação vinda daquilo se assentava como pedra em seu âmago.
“Tá certo, é isso. Essa noite eu rezo e amanhã tento achar essa mulher pra agradecer...acho que eu não falei obrigada, falei?”
No dia seguinte, Amanda não encontrou a mulher no parque, nem nas ruas próximas à loja. Tentou mais um dia e nada. Depois de uma semana sem encontrar a mulher, acabou por contar para sua mãe o que se passou com ela no parque, disse ainda que estava tentando achar a mulher novamente apenas para agradecer.
Sua mãe achou aquilo estranho, comentou que aquela mulher parecia dúbia, ela podia ter feito aquilo de boa vontade, ser uma pessoa boa, ou talvez ela pudesse fazer parte de algum grupo de delinquentes que tentava assaltar pessoas no parque, e que quando viu Amanda com o spray de pimenta, pensou melhor e não fez nada com ela.
A filha concordou com o pensamento, mas se fosse a segunda opção, por que a mulher teria avisado ela de que o parque era estranho à noite, ou melhor, “desonesto”, ou ainda “sinistramente desonesto”? Como a mãe também não tinha respostas, só pediu mais uma vez para Amanda evitar o parque a qualquer custo durante o período noturno, ficar sempre junto ao celular e com o spray de pimenta.
Ao final, fazendo um pequeno sinal da cruz na testa (ao que Amanda revirou os olhos), a mãe falou para que caso a encontrasse, que ela entregasse também uma caixa de bombons, porque vai que a mulher seja alguém do bem; “Ou um anjo” a mãe concluiu em pensamentos.
Todavia, durante um ano inteiro, Amanda andou pelo parque todos os dias, sentando-se num dos bancos que havia perto do poste com câmera; quando a caixa de bombons que havia comprado de presente se aproximava do fim do prazo de validade, ela dava de ombros e os comia; a cada mordida Amanda remoía em pensamentos:
“Se aquela era a primeira vez dela aqui, como ela poderia saber que o parque era perigoso à noite? Se ela disse aquilo, na certa tinha a rotina de correr sempre por aqui, mas por que eu nunca mais a vi?”
Jogando o papel de bombom amassado de volta na caixa, Amanda cruzou os braços para o vento do novo inverno que chegava, as sobrancelhas levemente encurvadas expressando uma tristeza oca a que ela não conseguia dar palavras, e um pensamento sinistramente desonesto lhe veio:
“Será que um dia verei ela de novo?”
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