Primeiro houve um som oco, como uma fruta madura caindo de um galho e atingindo o chão. Depois, o completo e mais assustador silêncio. Não o silêncio opcional, quando as partes envolvidas escolhem por ele, mas o silêncio do vazio, da ausência e o silêncio de quase morte.
Depois disso? O completo desespero.
– O que está acontecendo? – O primeiro perguntou. Aquele que tinha uma pele quase translúcida de tão branca, olhos pequenos e asas grampeadas nas escápulas – Por que ficou tudo escuro?
O segundo que se pronunciou era um dos exploradores, tinha pouco papel além de guiar, mas felizmente, por isso, carregava um lampião a querosene, o qual usou para iluminar o lugar. Vários rostos diferentes e várias feições o encararam de volta, piscando por causa da forte iluminação.
– Acho que ele dormiu. – Disse uma das mulheres. Cabelos longos e ruivos, sardas cobrindo cada milímetro de seu fino rosto.
– Não seja estúpida. Você ouviu, não ouviu? O barulho. Alguma coisa aconteceu.
– Quando ele dorme as luzes não se apagam assim, não totalmente. – Falou o príncipe indiano, usando um dhoti dourado ornamentado e vários anéis de ouro em cada dedo. Ele tinha dificuldades em erguer as mãos por causa do peso – Isso não é comum.
Vozes explodiram de todos os cantos, considerando, refletindo, ponderando cautelosamente ou simplesmente surtando. O explorador tinha pouco a dizer, mas tomou seu lugar no centro, mantendo a única iluminação do grande recinto – grande o suficiente para ser impossível saber onde começava e onde terminava. O príncipe se juntou a um grupo de mulheres para discutir sobre o que poderia estar acontecendo, o homem com as grandes asas brancas ficou mais afastado, pensativo com os dedos beliscando o queixo proeminente.
– Causar essa comoção não nos ajudará a entender o que aconteceu. – Veio uma voz firme do canto esquerdo, onde uma senhora de idade estava sentada em uma cadeira de balanço. Ela tinha em mãos um novelo de lã e agulhas de tricô, mas não havia começado nenhum trabalho recentemente. Seus olhos eram sagazes e experientes enquanto estudava os outros ali presentes.
– E o que sugere que façamos, então? – Questionou acidamente a bruxa de setecentos anos, dando um passo à frente.
A senhora olhou para a bruxa, sem se afetar.
– Os Registros e nosso Manual dos Personagens Imaginários.
Mais uma vez, o silêncio tomou conta. Dessa vez, de surpresa e descrença. Alguém mais ao longe deu uma risada.
– Não ouvimos falar de nenhum dos dois há anos. Os livros se perderam ou viraram poeira e sugerir que os usemos é uma ideia tão absurda quanto tentar procurar o pote de ouro no fim do arco-íris.
Havia um duende entre eles, que se sentiu ofendido com a grosseria.
– Está sugerindo que mentimos sobre o pote de ouro?
– Ele não está – falou a bruxa, revirando os olhos avermelhados – Só que seria uma burrice procurar os livros desaparecidos, tanto quanto tentar achar o pote.
– Ah, bom. – O duende disse em um tom mais dócil – Nesse caso, é mesmo.
Ele bem sabia quantos haviam morrido tentando encontrá-lo. Nas suas histórias, ao menos.
– Os Registros e o Manual não se perderam nem viraram pó. – A senhora falou novamente, com uma expressão séria no rosto enrugado e marcado – Eu sei muito bem onde estão.
O homem de asas se aproximou com cautela.
– Não estamos querendo duvidar da senhora, mas já faz tanto tempo desde que os vimos pela última vez. Como você poderia saber onde estão?
– Porque – a senhora fez uma pausa dramática, olhando para cada um antes de desencostar as costas da cadeira, e tirar de lá dois grandes livros marrons de capa dura – Eu estou com eles.
Seguiu-se sons surpresos de “oooooh” entre todos. Um homem que segurava sua cabeça de abóbora ao lado do corpo andou para perto da senhora, da bruxa e do homem alado. As órbitas vazias da abóbora brilhavam em uma luz laranja e seu sorriso aterrorizador a cobria de uma extensão à outra.
– Você os escondeu de todos nós?
– Eu não poderia nos dar o luxo de perdê-los, em caso de realmente precisarmos dos livros um dia. – Ela deu de ombros – De qualquer forma, foi o melhor a ser feito.
– Mas sem consultar os outros? – Insistiu a face luminosa da abóbora.
– Que direito você acha que tem acima de nós? – Alguém gritou da multidão de outros personagens imaginários.
A senhora nem mesmo piscou.
– Bom, eu fui a primeira personagem já criada por ele. Acredito que por isso eu tenha prioridades. Conheço-o muito mais e por mais tempo que vocês. Agora, se me dão licença, preciso fazer uma leitura.
– Nada disso. Nós leremos esses livros juntos. Todos nós. – O príncipe indiano também se aproximou, decidido. Mal conseguia gesticular, mas tentava mesmo assim.
– Como quiserem – disse a senhora com desdém, passando os livros pesados para o príncipe indiano, que os repassou para a bruxa. Ela começou a ler imediatamente – Mas não esqueçam que eu os li inteiros, uma vez. Sem minha ajuda nunca irão achar a parte sobre apago...
– Achei! Tem aqui no sumário. Barulhos incomuns e apagões. Página 347.
A senhora mais velha bufou.
– Tanto faz. – Disse ela e começou a tricotar.
Os personagens se juntaram todos ao redor da bruxa, que segurava o Manual dos Personagens Imaginários e do homem com asas, com os Registros, iluminados pela luz do lampião Embora esse último fosse importante, somente continha o histórico do homem que havia criado todos eles, suas ocorrências e, como nada assim havia acontecido anteriormente, os Registros não seriam de muita ajuda. Por outro lado, o Manual dos Personagens continha tudo que os personagens pudessem precisar, desde o que fazer quando seu criador está com falta de memória e os esquecendo até em casos como aquele, no qual nenhum dos personagens tinha a menor ideia do que acontecia.
Mas na página 347 logo acharam sua resposta.
– Ele está... desacordado? – A bruxa ergueu os olhos do livro, franzindo o cenho.
– Em coma? Mas... como isso aconteceu? – Perguntou um executivo rico que estava do lado dela, sobre o Manual.
– Aqui diz que ele sofreu algum acidente, por isso o barulho e o apagão geral. – A mulher ruiva leu, com o dedo nas palavras da página em questão – Ele está apagado.
Todos silenciaram, em completo desnorteamento.
– Se ele está em coma, o que isso significa para a gente? – Alguém perguntou.
– Como fazemos para reverter? – O indiano indagou, girando um de seus anéis mais caros no dedo – É possível?
A bruxa voltou a ler novamente e uma luz se acendeu em seu rosto no próximo minuto.
– É claro. Nós só precisamos estimular o cérebro dele.
– E como exatamente faremos isso? – Uma mulher usando um longo vestido do século dezoito perguntou. Ela ostentava um grande penteado que parecia perigosamente prestes a cair para frente e um espartilho tão apertado que mal a deixava respirar.
– Nós precisamos criar algo grande, algo que o jogue de volta para a consciência. Uma história. A melhor que conseguirmos. Temos que ser criativos. – A bruxa fechou o livro em um gesto único – Onde está aquele pirata caolho?
Os personagens se entreolharam por um instante, mas o pirata não estava em lugar algum, nem com a sua tripulação ali presente e nem entre as mulheres que vestiam somente camisolas – onde normalmente costumava estar, com um sorrisão desavergonhado no rosto manchado de sol.
– Pelo amor de Deus, onde é que está esse pirata? – A bruxa jogou as mãos para o alto, impaciente.
Alguém de sua tripulação fez um som discreto com a garganta.
– Ele está em um encontro.
A bruxa espremeu os olhos.
– Onde?
– No barco. Ele nos mandou não interrompê-lo.
– É claro. – Ela riu, mas não havia humor algum em sua voz – Alguém vá buscar aquele bêbado incompetente. Nós precisaremos do barco pirata se iremos fazer algo grande.
Dois de seus homens partiram imediatamente, usando um segundo lampião do explorador para iluminar o caminho. Os que restaram questionaram a bruxa sobre o que poderiam fazer para criar a história.
– Para criarmos uma história grande e chamativa o suficiente que vá acordá-lo do coma, cada um terá que ser o personagem principal. Isso vai causar uma confusão, histórias se entrelaçarão, personagens se chocarão uns com os outros, mundos diferentes serão obrigados a conviver como um só; é exatamente isso que queremos.
Estava claro para todos que seria algo tão impossível que, de alguma forma, poderia dar certo.
Na próxima uma hora uma sucessão de coisas malucas e ridiculamente geniais aconteceram, acarretadas umas às outras, começando primeiramente pela chegada do pirata e seu barco, sendo escoltado por dois homens corpulentos de sua própria tripulação. O pirata tinha um olho de vidro na órbita direita e o olho esquerdo piscava quase que incessantemente, trabalhando por dois. O homem usava uma roupa formal demais para um pirata – embora, ainda assim, considerada velha e suja, toda amassada –, sua camisa branca amarelada estava meio para dentro meio para fora da calça e ele andava aos tropeços, decididamente bêbado demais para dizer algo em sua defesa.
– Bêbado novamente. – A bruxa o estudou com seu olhar mais frio e penetrante – É um milagre que ainda esteja vivo, capitão.
O pirata teve dificuldades em focar a visão na mulher em sua frente, mas quando o fez e a reconheceu, um sorriso caloroso e desajeitado acompanhou.
– Ora, minha querida. A vida é muito chata quando se está sóbrio.
– Imagino que fique maravilhosa quando você mal consegue andar. – Retrucou ela, cruzando os braços e controlando a vontade que estava de esganá-lo. Ao invés disso, canalizou toda a sua insatisfação com o pirata para a história que ainda havia de ser criada. Ela deu as instruções básicas (façam o que vocês foram criados para fazer, recriem seus clímaxes e não parem mesmo ao se deparar com outro personagem. Na verdade, se puderem, se juntem a ele) e a Grande História de Todos por Um foi criada. Com a ajuda da iluminação de muitos lampiões, claro.
Foi uma grande confusão.
O barco pirata se viu infestado por fadas, bichos papões, aprendizes de confeiteiros, uma boa dose de nadadores olímpicos e ainda alguns homens carregando maletas. Esses últimos imediatamente tiveram problemas em se misturar com os demais personagens, pois carregavam mercadoria roubada em suas maletas e tinham ordens secretas para não serem descobertos. Os bichos papões começaram a assombrá-los e as fadas deram um jeito de entrar dentro das maletas pelo seu fecho, fazendo um estrago lá dentro. Os confeiteiros tomaram a cozinha do barco e começaram a preparar bolos com morango e chocolate preto. Os nadadores olímpicos andaram pela prancha de madeira e com muita graça pularam dela e saíram nadando crawl.
Na escuridão, a luz piscou algumas vezes, como uma lâmpada prestes a queimar.
– É isso! Está funcionando, não parem! – Gritou alguém, o que foi seguido por gritos de alegria.
Havia um arco-íris do lado oposto do barco pirata e também havia seu fim. Nele se aglomeravam saqueadores de tesouros, jardineiras e um único duende, desesperadamente tentando proteger seu pote de ouro dos ladrões. As jardineiras – a maioria sênior – usaram seus ancinhos e suas pás para acertar a cabeça dos saqueadores e tiveram êxito em proteger o ouro. Até mesmo a senhora deixou seu tricô e sua cadeira de balanço de lado para ajudar. Como recompensa, o duende deu cinco moedas para cada uma e uma promessa de que iria visita-las em seus sonhos, garantindo-as sorte para o resto da vida.
No interior de um bar típico do Velho Oeste norte-americano que parecia estar caindo aos pedaços de tão velho havia um casino enorme e luminoso onde um garimpeiro e um engenheiro florestal discutiam sobre a economia mundial e sua influência na criação de gado enquanto jogavam pôquer. O engenheiro florestal estava ganhando.
Enquanto essa desordem toda rolava, a bruxa não percebeu a aproximação do pirata caolho, pois estava concentrada em uma briga que acontecia entre o cabeça de abóbora e uma mulher com nariz de cenoura e mãos de alface.
– Você está muito bonita esta noite. – Sussurrou o pirata em um galanteio atrapalhado (afinal, ele ainda estava sob efeito do rum).
A bruxa o olhou com surpresa por instante, somente para fechar o rosto e desviar o olhar novamente.
– Está escuro demais para que você consiga me ver, muito mais para me achar bonita. Me deixe em paz e faça seu papel na história.
– Eu sempre a achei bonita, Doroty. – Insistiu ele, dando mais um passo para ficar ao seu lado – Só nunca encontrei uma maneira de falar com você.
A bruxa soltou um resmungo irritado, ainda sem olhar para ele.
– Você acha todas bonitas. Não me surpreende. – Ela trincou os dentes – E não me chame mais assim, nunca mais.
– Como? – O sorriso do pirata se alargou – Doroty?
– Meu nome é Doroteia, seu imundo incompetente. – Reagiu a bruxa, virando para lhe dar um soco no ombro que o fez cambalear para trás – Você não tem direito nenhum de me chamar assim. Ou mesmo usar meu nome. Ele seria veneno em seus lábios.
O pirata piscou, atordoado com a agressão, mas se recompôs em pouco tempo. Ele nunca teve bom senso.
– Bom, o que seria mais um tipo de veneno para mim?
E então o mundo caiu.
Ou ao menos despencou para o lado alguns metros.
Todos os personagens gritaram de assombro, o barco pirata ficou inclinado, pendendo para trás, os lampiões se apagaram, o pote de ouro caiu no chão e todas as moedas saíram rolando. O pirata perdeu o resto de equilíbrio que ainda tinha e por pouco também não foi ao chão, se não fossem os braços da bruxa que o seguraram a tempo.
O mundo dos personagens imaginários ficou estagnado assim por um tempo, na escuridão e no silêncio. Novamente o silêncio do vazio, da ausência e o silêncio de quase morte.
Ninguém ousou dizer nada por um tempo.
Até que de repente as luzes se acenderam. Os personagens escutaram um som constante de “bip-bip-bip” que vinha de fora.
– Funcionou? – O homem alado perguntou, atônito.
– Logo vamos descobrir. – Disse o príncipe indiano, que estava caído no chão ao lado de um dos nadadores olímpicos.
.
– Meu Deus, ele acordou! Helen, o Anderson acordou!
Dói quando pisco. Dói quando respiro. Na verdade, dói quando faço qualquer coisa, mesmo o menor movimento. Olho em volta para as pessoas ao redor de mim, para o quarto impossivelmente branco e sem decoração, finalmente abaixando meu olhar para o soro que recebo na veia e a máquina ao meu lado, registrando meus batimentos cardíacos. Bip-bip-bip.
– Filho? Está nos ouvindo?
Ergo os olhos para o homem bigodudo e calvo que se inclina levemente em minha direção. Ele tem olhos cansados, embora estejam totalmente alertas, e noto que sua mão está tremendo levemente.
– Não exija tanto dele agora, querido. Foi um choque e tanto, ele deve estar confuso. – Minha mãe disse para meu pai, afagando de leve seu braço – Vamos lhe dar um tempo para se recuperar.
– Mais tempo? – Mirian, minha irmã cinco anos mais velha, olhava para mim como se eu fosse um extraterrestre. E não porque estou todo entubado, não, mas porque esse é o olhar que ela sempre usou comigo. Ela o chama de olhar do irmão mais velho, o que eu acho totalmente sem sentido – Ele esteve em coma por quase duas semanas e vocês querem dar mais tempo a ele?
– Mirian, por favor. Agora não. – Minha mãe a repreendeu e depois voltou-se para mim com muita tranquilidade e doçura – Leve seu tempo, meu amor. Quando quiser...
Pisquei mais uma vez. Dessa vez não dói tanto. Acho que fiz um progresso. Talvez eu até pudesse arriscar falar.
Respiro fundo e sou observado por três rostos ansiosos.
– Alguém poderia me arranjar um caderno e uma caneta? Acabei de ter uma ideia surreal para o meu próximo livro.
Merci pour la lecture!
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