kztironi Karina Zulauf Tironi

Condenada injustamente. Fogo, sangue e segredos. Ser uma boa menina nunca foi tão difícil. "Todos estavam convencidos que eu iria direto para o inferno, mas eu já havia parado de me questionar como o inferno seria há muito tempo atrás."


Histoire courte Déconseillé aux moins de 13 ans.

#mistério #378 #diabo #assassinato
Histoire courte
6
8.0mille VUES
Terminé
temps de lecture
AA Partager

Condenada

A primeira coisa que registrei quando as portas duplas e frágeis de madeira se abriram para a multidão que me esperava, colérica, lá fora, foi a presença de meu pai, bem na frente de toda aquela gente. Segurando um bastão em chamas.

Meu coração nem mesmo tem nem tempo de se encolher em dor quando sou empurrada bruscamente para frente pelo guarda encarregado de me vigiar durante a noite toda. Mas agora já havia amanhecido, o sol se erguia, vermelho e sanguinário como cada e única pessoa no aglomerado, erguendo os punhos em minha direção e proferindo palavras que fariam o Diabo silenciar. E eu saberia bem disso, afinal "amante do Diabo" se tornou meu novo nome na Vila.

Amante do Diabo... Se ao menos soubessem.

O guarda me empurra novamente, dessa vez para que eu comece a andar em em direção meu destino. Sinto-me fraca e com as pernas moles, mas faço o que me é mandado. As pessoas se dividem em dois grupos para que eu possa passar e por um momento de humor macabro a imagem de Moisés abrindo o Mar Vermelho me vem à cabeça. Bom... Eu estava mais para Judas, o traidor.

Imagino que isso possa se comparar a minha situação, de certo modo.

Eu estava andando com minhas mãos amarradas, sendo arrastada para a sentença que todos queriam para mim.

Sou obrigada a parar. Uma das pessoas não se mexeu para me permitir passagem. Ergo os olhos cansados para meu pai e vejo seu semblante duro, frio e, acima de tudo, decepcionado. Não tenho forças nem vontade de tentar, mais uma vez, salvar minha própria pele ou, talvez, limpar meu nome. Eles não acreditariam em mim mesmo, as provas eram claras demais para que sobrassem dúvidas. Então fico ali parada de frente para meu pai, imaginando como ele deveria estar se sentindo - viúvo e sua única filha condenada a fogueira. Por um instante tive pena dele e de seu longo futuro miserável. Mas então lembrei que era eu que estava prestes a queimar até a morte, e a empatia passou tão rápido quanto veio.

- Não se sente no colo do Diabo quando o encontrar. - Ele me olhou, sua expressão iluminada pelas chamas de seu bastão - Você já pecou o suficiente.

Meu pai cuspiu no chão em frente aos meus pés descalços e finalmente deu um passo para o lado, a ausência do calor do fogo me infringindo um forte sentimento de vazio. De morte.

Todos estavam convencidos que eu iria direto para o inferno, mas eu já havia parado de me questionar como o inferno seria há muito tempo atrás.

Novamente levei um empurrão pelas costas.

Arrastei os pés pelo chão pedregoso e decidi que manteria minha cabeça baixa pelo resto do percurso, não importasse quanto a multidão me insultasse ou tentassem jogar coisas em mim.

Sou deixada com meus pensamentos e lembranças. Lembranças de casa, dos meus poucos amigos (que deviam estar ali também, inclusive), de minha falecida mãe... É questão de tempo até as lembranças se tornarem mais recentes. Como a da noite passada.


"De olhos arregalados assisto-o agarrar o homem pelos cabelos fartos e esmagar sua cabeça contra o chão uma, duas, três vezes. Quero gritar, mas o grito está entalado em minha garganta e o som de ossos se quebrando e sangue correndo é o único barulho audível de dentro do celeiro abandonado. Com as mãos cobrindo a boca, comprimo o corpo contra a parede, me vendo incapaz de desviar o olhar, por mais horrenda que a cena fosse. O homem tinha o nariz quebrado e vários pontos em seu rosto sangravam com uma velocidade anormal; logo suas feições foram manchadas de vermelho vivo.

Yvo puxou-o uma última vez pelos cabelos, torcendo seu pescoço para perto de seu rosto, tomado por uma mistura contraditória de raiva e calmaria que eu nunca havia presenciado na minha vida.

- É isso que acontece quando homens asquerosos como você tocam em garotinhas. - Disse com uma voz suave, porém, mesmo da distância em que eu estava, era possível ouvir o rugido escondido, borbulhando e fervendo - Eu queria tanto poder fazê-lo sofrer, meu senhor. Ah, eu adoraria. Primeiro começaria arrancando cada unha e cada dente que lhe sobra, depois pregaria suas mãos e arrancaria sua língua. Quem sabe depois eu até arrancasse fora o seu instrumento de desejo. Mas receio que estejamos ficando sem tempo. Terei que acabar com isso mais rápido do que gostaria, mas tenho certeza que o senhor entende.

O rosto do homem estava irreconhecível agora, mas eu jurava que seus olhos estavam esbugalhados, por baixo de todo aquele sangue. Ele tentou falar, o que fez com que Yvo aproximasse o rosto do dele, adquirido uma afabilidade falsa.

– O que foi? Está querendo opinar sobre sua morte? - Ele riu suavemente para então se fechar numa expressão assassina que me fez enfim fechar os olhos. Eu não queria presenciar aquilo.

O próximo som foi o mais alto de todos, com uma violência antes controlada por Yvo. Me recusei a olhar na direção do homem, certamente morto, quando abri os olhos novamente, e ao invés disso, ergui os olhos para Yvo e me perguntei o que estaria se passando em sua cabeça naquele momento, porque certamente arrependimento não era uma delas.

Engoli em seco com a visão de suas mãos manchadas de sangue. Ele, também, as notou ao mesmo tempo que eu e, antes que eu pudesse ter qualquer pensamento racional, Yvo levou o polegar aos lábios.

O ar me escapou naquele momento e ele ouviu.

Yvo virou parcialmente para mim e pude presenciar seus olhos mudando da cólera para uma passividade sua que eu conhecia. Seu peito subiu com um grande suspiro e ele lentamente andou em minha direção.

– Está tudo bem agora. - Ele disse, parando alguns passos de distância, mas sua boca estava manchada de vermelho - Esse homem não irá mais a incomodar.

– V-você – gaguejei – Vo-você...

– Shhh – Yvo se aproximou calmamente – Não se incomode em pensar nisso agora.

Como eu não pensaria naquilo, no homem morto logo ao lado?

– Escute, ele teve o que mereceu. Homens bons não arrastam meninas para lugares sujos e escuros para tocá-las sem permissão.

Yvo então se sentou ao meu lado, em meio aos blocos de feno, e limpou distraidamente as mãos sujas de sangue na camisa como se não fizesse diferença.

– Além do mais, um pervertido a mais ou a menos no mundo, que diferença faz? – Ele disse isso enquanto um sorriso esplêndido curvava seu rosto e deixava a mostra seus dentes tão brancos e compridos.

– Se descobrirem o que fizemos... – comecei a falar, espiando nervosamente o cadáver, à poucos metros de distância.

– O que eu fiz. – Yvo me corrigiu, tocando meu queixo com delicadeza para que eu voltasse a olhar para ele – Você não teve participação nenhuma. Lembre-se disso.

Balanço a cabeça.

– Ninguém acreditaria. E se nos encontrarem aqui com... com ele...

– Ei – Yvo tocava meu rosto com as duas mãos agora, seu nariz quase tocando no meu. Cada detalhe tão bonito de seu rosto apenas uma respiração de distância – Não vou deixar que nada aconteça com você. Você confia em mim?

Precisei de alguns segundos antes de responder.

Tinha a sensação que aquilo não acabaria bem mas, ao olhar em seus olhos castanhos, tão escuros que parecia estar olhando para um céu noturno, a sensação ia embora.

– Confio."



A lembrança avança para momentos depois, quando Yvo me alertou para que ficasse dentro do estábulo enquanto ele cavaria uma cova para enterrar o homem e foi o que eu fiz. Ele me prometeu que voltaria para mim, mas, enquanto esperava seu retorno, homens derrubaram a porta e me cercaram por todos os lados. Me condenando.

Finalmente levanto o rosto para o pouco caminho que ainda tinha até a fogueira, onde havia um único tronco de árvore e onde eu seria amarrada. Olho em volta mais uma vez, em uma última esperança.

Onde estaria Yvo agora? Será que ele fazia ideia que eu morreria naquele dia?

Isso é tudo que consigo pensar, mesmo quando estou sendo amarrada ao tronco, mesmo quando escuto os gritos da multidão, exigindo minha morte, e mesmo quando eles cessam ao som de uma voz.

– Eu tenho algo a dizer a ela.

Pisco, certa que meus olhos e ouvidos estavam me enganando.

– Yvo? – Sussurro, atormentada, vendo-o subir até a plataforma onde eu estava.

Ele estava vestido com as mesmas roupas do dia anterior, mas agora limpas, sem qualquer sinal do que havia acontecido nelas. Tentei falar alguma coisa, tentei implorar que me tirasse dali e dissesse para todos que eu não tinha culpa nenhuma da morte daquele homem.

Mas não consigo falar. Porque no momento em que abro a boca, Yvo se inclina e me beija.

O mundo para, o tempo para e de repente eu noto uma coisa.

Seu beijo tinha um gosto forte de ferro. De sangue.

Seus olhos encontraram os meus uma última vez. Um sorriso doce brinca em seus lábios rosados e ele faz um carinho tão terno em minha bochecha que parece uma promessa.

– Vejo você no inferno, Alba. Até breve.

11 Novembre 2019 00:01 2 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
7
La fin

A propos de l’auteur

Karina Zulauf Tironi Como escrever sobre mim, quando me torno tantas outras pessoas enquanto estou escrevendo?

Commentez quelque chose

Publier!
Kaline Bogard Kaline Bogard
Olá! Comecei a ler sua história sem saber onde ela me levaria. E isso é um trunfo importante na criação de uma história! Você joga a isca para o leitor e o prende pela curiosidade. Conseguir adivinhar o que acontece as vezes tira um pouco do brilho da história! E isso não aconteceu aqui. A gente fica se perguntando o que aconteceu para ela estar aqui! Meu palpite era "foi acusada de bruxaria"! E eu me surpreendi. A artimanha de colocar a resposta no meio, através de um flashback também foi bem esperta. Responde a questão e ganha a simpatia para a protagonista. Por fim um breve misterio a respeito do Jacan! Mais uma vez fui tapeada. Pensei que ele teria traido e criado uma armadilha, então descobrimos que não! E a história fechou de um jeito arrepiantes. Parabens pela escolha do tema e pelo desenvolvimento. Vi alguns pequenos errinhos com pontuação, nada que a ajuda de um Beta não possa revolver ou que tire a qualidade do texto.
November 25, 2019, 13:47

  • Karina Zulauf Tironi Karina Zulauf Tironi
    Oii, Kaline! Menina, muito obrigada pelo comentário <3 Amante do Diabo não foi exatamente uma história planejada, foi criada para o propósito de participar de um dos concursos de escrita em espanhol. Escrevi em poucas horas, de tão animada que fiquei. Fico muito feliz que tenha gostado e muito aliviada que eu tenha conseguido te surpreender até o final! A questão da pontuação acontece com frequência comigo, devido a minha ansiedade na hora da escrita e algumas coisinhas passam despercebido na correção hahah. Mais uma vez, muito obrigada pelo comentário, significa demaiss! Beijosss e tudo de bom!! November 26, 2019, 00:40
~