“Quando tudo estiver terminado, devem escolher seus rostos sabiamente, pois logo estarão brincando com fogo.”
Graças à última profecia de Agnes Nutter, anjo e demônio haviam escapado com sucesso de suas respectivas punições e poderiam aproveitar a vida mundana novamente, com toda a tranquilidade e sossego até que o céu, o inferno ou ambos decidissem se mover outra vez. Mas antes de passarem por esta última provação, a profecia os colocou numa situação que nunca esperavam viver... Acabaram por estar um na pele do outro, da forma mais literal possível. O importante não era quem teve a ideia e sim que sensações aquela situação trouxe para ambos.
— Nunca me senti tão engomadinho em toda a minha existência! — Crowley resmungou enquanto dedilhava o terno de linho branco.
— Ei, não insulte minha elegância! Sou eu que estou em apuros tendo que andar por ai tão desleixado... — Aziraphale devolveu, incomodado com as vestes negras desalinhadas — Não posso nem ajeitar esta gravata?
— Se fizer isso, não estará sendo eu mesmo... Precisamos ser convincentes, lembre-se disso! — o plano teria que ser perfeito do começo ao fim para conseguirem ser livres com êxito, por isso queria ter certeza de que o outro poderia seguir com a atuação — E não fale nesse tom, você precisa ser mais relaxado, anjo.
— Relaxado... Certo. — automaticamente os ombros ficaram menos rígidos e deu alguns passos, imitando a forma “estilosa” que o demônio costumava ter para andar — Assim está melhor?
— Muito! Lembre-se que precisaremos agir assim até que eles façam algum movimento... Com certeza virão atrás de nós em breve. — colocou as mãos para trás, adotando uma postura mais firme e polida.
Ainda que fosse estranho e até incomodo agirem de forma tão diferente a qual estavam habituados, a vantagem é que conviviam a mais de seis mil anos. Isso com certeza era a chave do sucesso, pois se conheciam tão bem ao ponto de imitarem perfeitamente os trejeitos e costumes um do outro, sustentando com veracidade as aparências externas. Aliás, se verem no corpo um do outro os deixava inquietos de uma forma muito distinta, pois era como se estivessem diante de um espelho que refletia suas imagens, mas que tinha consciência própria e, quando estavam sozinhos, agia de um jeito completamente diferente do original.
— Você poderia mudar o seu penteado de vez em quando, Aziraphale... — passou a mão pelos cachos bem clarinhos no topo da cabeça, sempre teve vontade de sentir como era a textura dos cabelos do anjo e agora tinha uma boa desculpa para fazê-lo — Seis mil anos praticamente com o mesmo corte é tão enjoativo, não acha?
— Eu gosto desse jeito... — se sentia um pouco aflito ao ver a cena. Por mais que fossem a sua imagem e mão tocando nos fios, era Crowley que estava sob o domínio de seu corpo agora — E não fique mexendo! Mesmo que tenhamos trocado nossos corpos, você não pode ficar tocando livremente...
— Oh... E por que não? — o rosto angelical exibiu um sorriso malicioso pela primeira vez — Está querendo esconder alguma coisa de mim?
— Não faça esse tipo de expressão com o meu rosto!! — Aziraphale chegou a ficar emburrado, tornando a expressão do rosto demoníaco muito engraçada — Você nunca ouviu falar em integridade física? Só não quero que faça algo estranho com o meu corpo...
— Hm... E o que eu poderia fazer com ele, anjo?
O tom de voz era de Aziraphale, mas a provocação jorrava completamente do demônio e Crowley viu seu rosto corar pela primeira vez, exibindo um embaraço que era totalmente próprio do anjo. Se já não bastasse toda a divergência da situação, dessa vez era a serpente que se sentia tentada e pretendia continuar com as provocações para ver até que ponto o outro poderia suportar a sua ousadia. Começou pela gravata-borboleta, dedilhando com cuidado antes de desfazê-la e deixar o pescoço alvo exposto, o que fez a fenda dos olhos alheios se expandir em surpresa.
— O que temos aqui...? — Crowley usou os dedos para passear pela região, sentindo a textura com cuidado — Você é vaidoso, cuidando de sua pele dessa forma... Está macia e perfumada.
— Já lhe disse para não ficar tocando como bem entender! — a aflição do anjo se intensificou, sabendo que o intuito daquela provocação era tirá-lo do sério — Tenho que cuidar muito bem deste corpo, não quero que se decomponha ou algo do tipo...
— Duvido muito que isso aconteceria, o meu corpo é tão antigo quanto o seu e não tenho preocupações... — prosseguiu com os toques, começando a desabotoar os primeiros botões da camisa social — Você nunca deixou que o sol tocasse na sua pele, não é Aziraphale?
— Pare já com isso!! — retorquiu outra vez, fechando as mãos em punhos e sentiu que o rosto demoníaco que usava no momento estava ficando mais quente — Não há nada para se ver ai... O sol poderia deixar manchas na pele ou queimar!
— Você é uma criança na praia, por um acaso? — Crowley debochou da resposta, mas os olhos azuis que possuía no momento encaravam o inicio do tronco clarinho enquanto se ocupava de abrir os últimos botões — Não iria te causar nenhum mal se usasse algo um pouco mais... Confortável.
— Estas roupas são confortáveis para mim... As suas são mais abertas e me incomodam! — o anjo voltou a reclamar das vestimentas negras, apesar de que admitia o quanto elas combinavam bem com Crowley — Nem pense em tirar minha camisa, ouviu?
— O que te intimida afinal? Você sabe que quanto mais disser para não fazer, mais eu irei querer. — o demônio concluiu sua tarefa e levou as duas mãos à pele, tocando com firmeza e os dedos vaguearam lentamente pelo peito que sempre pertenceu a Aziraphale — É como desbravar um novo território... Macular um corpo intocado.
— Pare!! — finalmente perdeu a compostura e se aproximou rapidamente, segurando os punhos alheios para impedi-lo de continuar — Por favor, Crowley... Não me perturbe mais com isso, está bem? Não há necessidade para que fique tocando no meu corpo assim...
— Não há? — ergueu uma das sobrancelhas, alterando a expressão provocativa para algo mais sério — Isso não é verdade e você sabe... Há muito tempo que necessito disso. Te tocar sempre foi um desejo meu, anjo.
Se Aziraphale já sentia o rosto quente, este passou a arder pelo embaraço causado por aquelas palavras repentinas e mesmo que tenha aberto a boca para responder, dali nada saiu. Eles haviam construído um relacionamento ao longo do tempo, apesar de serem inimigos naturais, e o definiam como uma amizade na maior parte das vezes. Entretanto, ambos carregavam vontades e desejos que iam além da camaradagem, acabando por deixarem vir a tona através de olhares, pequenas ações e palavras que escapuliam de seus lábios sem que tivessem controle.
— Aziraphale... Me deixe satisfazer essa vontade. Pode ser minha única chance afinal... — o demônio sussurrava com tamanha doçura que causou um arrepio no outro — Eu não ligo se você tocar no meu corpo também, se quiser.
— Não! Isso é tão... Carregar um desejo assim... Você não é um Íncubo ou algo do tipo! — tentou rebatê-lo, embora se sentisse tentado — Além disso, "eles" podem descobrir... Não devemos fazer coisas estranhas, temos que nos manter firmes na atuação.
— "Eles" não tem olhos e ouvidos em todos os lugares ou já teriam nos descoberto muito antes. — Crowley estava determinado a conseguir o que queria e sabia sustentar seus argumentos — Ninguém precisa saber... Ou você repudia totalmente a ideia de um demônio te acariciando?
— Como pode dizer isso?! — Aziraphale negou com a cabeça e chegou a morder o lábio inferior — Quero dizer, se fosse um demônio qualquer, é claro que me incomodaria e muito! Mas... Ver você fazer isso me deixa nervoso...
— E qual é o motivo para se sentir assim, anjo? Nos conhecemos a tanto tempo, na verdade é um espanto que tenhamos tido tão pouco contato físico...
— Não deveríamos nem ter este tipo de desejo! — ignorou a pergunta inicial, tentando se manter firme diante da serpente.
— Oh... Então admite que o desejo é mutuo. — novamente o sorriso malicioso floriu no rosto angelical, aproveitando a distração de Aziraphale para libertar as mãos — Sendo assim, não há motivo para se conter... Toque em meu corpo o quanto quiser, pois farei o mesmo com o seu.
— Crowley!! — se sobressaltou quando viu as mãos do demônio no cós de sua calça clara e decidiu jogar a vergonha para o lado, precisava pará-lo de algum jeito — Se tocar no meu corpo agora, do que irá adiantar?! É você que o está usando nesse momento... Sentirá o seu próprio toque e, não sei como você se sentiria com isso, mas para mim não traria nenhuma satisfação. Do que me adianta estar em seu corpo e tocá-lo? Não é o seu toque que terei! Por favor... Espere até que possamos trocar nossos corpos novamente.
Dessa vez o anjo conseguiu fazer com que o outro parasse, além de ser encarado pelo par de olhos azuis que expressavam surpresa e curiosidade. Aziraphale realmente queria sentir seu toque? Anjos não costumavam mentir ou agir de forma ardilosa, como os demônios, mas ambos se adaptaram tanto ao mundo humano que viviam, sentiam e agiam como eles. Como Crowley interrompeu suas ações, o outro soltou um suspiro de alivio e, apesar de ter dito a verdade, se sentia muito mais inquieto.
Tentar fazer a coisa certa, andar na linha e seguir sua própria natureza passou a ser muito difícil para Aziraphale depois de passar tanto tempo com o outro. Principalmente com as pequenas atitudes do demônio que demonstravam, no fundo, saber ser gentil e lhe dar especial atenção. Como quando Crowley fez com que todos assistissem Hamlet ao pedir a ele por este milagre, ou quando o salvou da guilhotina durante a Revolução Francesa, apesar de ser um risco caso fosse descoberto. E como esquecer da noite em que o demônio invadiu uma igreja, apesar disso lhe causar dor, para resgatá-lo dos nazistas e ainda ter a delicadeza de deixar seus queridos livros intactos?
O anjo só conseguia constatar que, assim como os planos de Deus, seus sentimentos um pelo outro eram igualmente inefáveis. Mas Crowley estava disposto a desvendá-los e dar um fim as barreiras que restavam para ter acesso ao que mais quis ao longo destes seis mil anos... Aziraphale! Mesmo se a Terra tivesse sido destruída, levando consigo seu querido carro, suas plantas e os discos de Queen, não poderia sequer imaginar ficar sem o outro e por isso sofreu tanto quando pensou tê-lo perdido no incêndio da livraria. Ele precisava de Aziraphale de tantas maneiras que seria perda de tempo nomeá-las, mas uma delas já era latente e cada vez mais difícil de conter: precisava tocá-lo, senti-lo e tê-lo, corpo a corpo.
Por mais que houvessem demônios da luxúria, Crowley apostava que nenhum deles entenderia o libido que surgiu e se expandia dentro dele por aquele anjo, aparentemente tão puro e celeste quanto qualquer outro. Mas sabia que ele era diferente dos demais, desde a primeira vez em que conversaram sob os muros do Jardim do Éden, observando as consequências de seus atos através de Adão e Eva. Aziraphale era exigente, guloso e desajeitado de uma forma graciosa, sempre tentando fazer o que é certo e se metendo em confusões por conta disso. Era tão fácil e delicioso tentá-lo a fazer algo fora dos padrões do Céu... Mas nunca conseguiu fazê-lo ceder ao ponto de se entregar aos impulsos mais distintos de sua essência.
— Aziraphale, não brinque comigo... — Crowley soltou um suspiro pesado, pois era difícil conter seus desejos — É claro que o que eu sempre quis foi sentir você, ter o seu toque... Mas você nunca caiu nesta tentação.
— Eu não estou brincando. — o anjo falava de forma pausada e mordeu o lábio inferior antes de prosseguir — Esta é uma tentação a qual eu sequer poderia sonhar, me permitir viver... Você sabe, isso é algo inconcebível para um anjo! Mas...
— Mas?! — o demônio o estimulou a prosseguir, dando alguns passos a frente.
— Mas não posso negar que... O desejo de ceder a isso já me corroeu muitas vezes. — o embaraço do anjo era cada vez mais evidente através de suas expressões e vermelhidão — Se você for paciente... Se conseguirmos enganar o Céu e o Inferno, saindo vivos disso... Não vou resistir ou mesmo te segurar. Eu lhe dou minha palavra, Crowley. — o corpo que usava no momento estremeceu, como um sinal de sua própria vontade com aquela promessa.
— Aziraphale... — sibilou o nome alheio de forma carregada pelo desejo de séculos, se aproximando mais ao ponto de sobrar apenas alguns centímetros entre seus corpos — Está bem, concordo em esperar. No entanto, esteja ciente que irei cobrar esta promessa tão logo nos livremos dos nossos respectivos superiores.
O anjo não precisava ser avisado, sabia bem que Crowley não deixaria passar essa oportunidade e, no fundo, esperava que isso acontecesse o mais breve possível. Por mais que sua essência angelical não permitisse mentiras, chegou a mentir para si mesmo durante tanto tempo para evitar aquela tentação que já havia se tornado um martírio. Por conta da pouca distância entre seus corpos, ainda trocados, seus lábios chegaram a ficar entreabertos, com a vontade de selar aquela promessa com um beijo mais do que aguardado. Porém, isso não aconteceu... Ainda precisavam se controlar, então Aziraphale apenas aproveitou para abotoar sua querida camisa para deixar o outro com a aparência impecável novamente.
Depois disso, anjo e demônio começaram o seu "show" teatral, cumprindo meticulosamente com seus respectivos papeis até o momento o foram encurralados pelo Céu e o Inferno, tendo que enfrentar seus julgamentos. Com toda a confiança e coragem, ambos obtiveram o resultado desejado e, com o medo e hesitação que causaram em seus antigos companheiros, ficaram livres para voltarem a Terra e viver com tranquilidade, pelo menos por um tempo. Estavam tão satisfeitos com o resultado e por voltarem a ter seus verdadeiros corpos que comemoraram com um delicioso almoço no Ritz, mas isto era apenas um pretexto para o que realmente queriam fazer.
Com um estalar de dedos, o carro de Crowley já os esperava na saída do restaurante e, ao entrarem no veículo, decidiram para onde iriam. O demônio queria aproveitar a oportunidade para levar Aziraphale ao seu apartamento, afinal ele nunca havia estado lá para evitar que descobrissem sua ligação. O anjo aceitou, embora começasse a sentir certo nervosismo por saber que a promessa finalmente seria cobrada, mas também sentia-se ansioso para conhecer a morada do outro e cumprir com sua palavra, por seu próprio desejo. Como um prelúdio para os acontecimentos, o demônio sorriu com malícia enquanto dava a partida e a "Don't Stop Me Now" de Queen começou a tocar, acelerando de forma a causar um arrepio no outro. Definitivamente, ninguém poderia pará-los agora.
Merci pour la lecture!
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